Inquietudes da dança cearense

O lugar da dança é todo aquele onde ela possa inquietar e inaugurar novos lugares. Foi pensando assim que o Ceará incluiu recentemente as cidades de Paracuru, Trairi e Itapipoca no mapa brasileiro da dança. Entre os dias 25 e 30 de abril, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult) com o apoio das prefeituras locais, promoveu o I Festival de Dança do Litoral Oeste. O lançamento do evento, por si só, poderia ser considerado como uma ação inovadora, mas foi além disso quando decidiu levar dança contemporânea para essas três cidades do Vale do Curu, região onde estão localizadas tradicionais aldeias de pescadores do litoral cearense.

A curadoria cuidadosa de Ernesto Gadelha, Flávio Sampaio, Cláudia Pires, Antônio Alves e Gérson Moreno revelou um pensamento transformador elaborado a partir de ações onde cada uma das peças compreende a coerência do todo. Em primeiro lugar, escolheram cidades que já demonstravam vocação para a dança, seja através de eventos como o Aconchegão das Artes – que desenvolve ações na linha da capacitação profissional, com cursos que contam com apoio do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura –, seja através da Escola de Dança de Paracuru – que recebe mais de 80 jovens, muitos deles filhos dos pescadores da região. Em seguida, souberam equilibrar uma programação que fez conviver de forma harmônica, desde manifestações populares, como o Coco do Iguape e do Alagadiço e o Reisado de Mestre Antônio; passando pelas danças da comunidade indígena de Itapipoca; até trabalhos coreográficos de linguagem contemporânea do Brasil e da França.

A solenidade de lançamento oficial do festival ocorreu no teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, no dia 24, com a apresentação dos trabalhos do sapateador americano Steven Harper acompanhado do músico Bruce Henry, além da Cia. de Dança de Paracuru.

A programação foi apresentada nos palcos montados em praça pública, um em cada cidade. Na dança contemporânea os destaques foram para Staccato (RJ), de Paulo Caldas, apresentando Coreografismos; e Quasar (GO), de Henrique Rodovalho, com o espetáculo Coreografia para Ouvir, criado com base na vida e na carreira de artistas populares do Nordeste. Recife marcou presença com a companhia Icógnum, apresentando a coreografia Forever, de Ivaldo Mendonça, ex-bailarino de Deborah Colker. Do Ceará, foram selecionadas sete companhias das cidades de Beberibe, Guaramiranga e Fortaleza, que dividiram os palcos com três grupos de Paracuru, Trairi e Itapipoca. O festival também prestou homenagem a Hugo Bianchi, um dos pioneiros da dança no Ceará, que completou 80 anos de vida.

Nas atividades paralelas, os convidados dos outros Estados participaram do Café com Passo, uma espécie de bate-papo com troca de informações entre o público e os artistas dos grupos. Além disso, o evento ofereceu, nas três cidades, uma série de oficinas, como: dança contemporânea e moderna, improvisação e composição, percussão corporal, dança de rua e de salão.

Do ponto de vista da reflexão e produção de pensamento, as palestras de Rosa Primo (CE) e minha abordaram, respectivamente, Um Olhar sobre a História da Dança Cênica no Ceará e Breve Panorama da Dança Brasileira Atual; e foram complementares aos debates sobre O Profissional da Dança no Ceará e A Formação em Dança no Ceará, que contaram com a participação dos seguintes profissionais: Andréa Bardawil, Clarice Lima, Edvan Monteiro, Silvia Moura, Cláudia Pires, Júlia Cândida e Isabel Botelho, mediados por Gérson Carlos, Flávio Sampaio e Antônio Alves.

Ainda na programação das atividades paralelas, o festival apresentou a mostra de videodança Dança em Foco, exibida e comentada por mim. O programa contou com filmes do Circuito Videodança Mercosul, uma parceria que reúne obras do Brasil, Uruguai e Argentina. Em Itapipoca, a mostra foi apresentada em condições ideais dentro de uma sala de cinema recém inaugurada. Os vídeos exibidos no telão encorajaram o coreógrafo Gérson Moreno a elaborar um projeto de ocupação parcial dessa sala com programações voltadas para videodança nacional e internacional, além de promover palestras e debates sobre o tema.

Dentro da programação do festival, a Escola de Dança de Paracuru (fundada e dirigida por Flávio Sampaio, desde 2000), abrigou diversas atividades, entre elas a residência, ministrada pela bailarina francesa Julie Nioche e pela cinesioterapeuta Gabrielle Mallet, voltada para jovens dos três municípios sede do evento. O resultado pôde ser visto na montagem da performance Les Sisyphe x 15, uma nova versão do espetáculo Les Sisyphe, apresentado pela bailarina na IV Bienal Internacional de Dança do Ceará, em 2003. No palco, quinze adolescentes e jovens entre 15 a 20 anos (que exercem atividades bem diversas como agricultores, surfistas, pedreiros, pescadores, atores, músicos e bailarinos) enfrentaram os 17 minutos da música This is the end, do The Doors, correndo e dançando no mesmo lugar num ritmo alucinante. Na apresentação de encerramento do evento, em Trairi, a dança transbordou a cena, fazendo com que esses jovens saltassem do palco para a rua empolgando o público que passou a dançar junto com eles.

O lançamento do I Festival de Dança do Litoral Oeste inaugurou também o desafio da sua própria continuidade. Sabe-se que a permanência de um evento é um fator que contribui para a formação de platéia e influencia a produção dos artistas locais. Então, como criar estratégias de perenização que se tornem independentes das gestões dos governos estadual e municipal? Essa e outras questões fazem parte da discussão sobre a necessidade urgente da elaboração de uma política pública para a dança – reflexão que já vem sendo feita em caráter regional pela Prodança e pelo Fórum de Dança do Ceará. Felizmente, a inquieta dança cearense logo encontrará as suas próprias respostas.