Interação e Conectividade em Salvador

Por Nirlyn Seijas

O IC (Interação e Conectividade) é um encontro que em 2015 fez sua nona edição. É idealizado, curado e produzido pelo Dimenti, que é um coletivo de agentes culturais, que, segundo as palavras de seu próprio diretor, Jorge Alencar, vai “além da criação de espetáculos em sequência. Isso tem a ver com o fato de o Dimenti também ser uma produtora cultural que realiza uma série de ações de fomento a encontros e residências artísticas, como é o caso do projeto Interação e Conectividade […] o Dimenti toma forma de uma plataforma de ações de produção e experimentação artísticas”[1]. Vejo Ellen Melo como o coração deste corpo. Leo França, Neto Machado e Jorge Alencar são responsáveis com ela de pensar artisticamente e realizar os projetos próprios.

Esperado com grandes expectativas pela comunidade artística classe média da cidade de Salvador, que vem lotando a casa constantemente, cada ano propõe uma curadoria que foge da hipocrisia da “diversidade” e se debruça sobre um assunto, eixo, estímulo, questão. Nos últimos anos, acompanhei a programação do IC e fui instigada pela conexão rica e fértil que os curadores propõem entre as atividades do encontro. Espetáculos, residências, bate-papos, instalações, exposições, shows, estão vinculados uns aos outros, colaborando para a expansão de todos. Aqui não vemos um cardápio dos mais diversos sabores, mas uma dramaturgia coesa e coerente de elementos que contribuem para alimentar um campo de perguntas. Na minha opinião, esta escolha produz mais atritos, conflitos, convergências, batidas, conexões do que aqueles festivais de arte onde há mais uma escolha estratégico-mercadológica, do que uma artística curatorial. Desta forma, os curadores parecem mais preocupados com desenvolver aquela questão que os ocupa artisticamente, do que com oferecer um ‘panorama’ do estado atual das artes nacionais ou internacionais. Isso é diferencial.

Algumas pessoas discordam desta opção, sobretudo porque ela tem implicado em um protagonismo escancarado e sem vergonha (entenda-se sem vergonha, como quem não tem vergonha mesmo!) dos artistas vinculados afetiva e criativamente ao Dimenti. Todos os anos, a programação é constituída por obras e atividades de convidados nacionais ou internacionais, e dos próprios Dimentis. Não há convocatória aberta (há para atividades como residências, workshops, etc). O que me parece coerente quando assumidamente está se fazendo um uso público das questões artísticas pessoais. Porque vamos falar sério, quem é que não está colocando seu toque pessoal no que produz?

Em alguma medida, mantendo claras tensões, me parece mais honesto, mais aberto, mais claro e com isso exige/permite que a comunidade artística pegue o que é oferecido, que questione, que se coloque e que proponha, que critique. Esta questão é tão poderosa que chegou ser tema de curadoria no ano 2011. Ali a curadoria foi atravessada pelas escolhas afetivas, assim, curadores começaram uma cadeia de afetos, que desdobrava em outros convites por afetos, que desdobravam em outros. Para alguns, nepotismo, para outros, uma postura extremamente politizada e crítica em relação a como é a lógica do ambiente cultural, se expondo sem medo, abrindo as potências dos encontros estético/afetivos, e assumindo seus riscos e contradições.

Há um outro aspecto interessante de considerar quando apresentamos o IC. A comunidade artística que o frequenta, muito transcende os guetos das linguagens (dança, teatro, música). Navega pela programação fazendo alarde de um aspecto fundamental deste Encontro de Artes, a indiscernibilidade do objeto de arte. Nenhuma novidade, a priori, para as artes contemporâneas, mas sim para uma lógica já enraizada na cidade, de continuar defendendo as linguagens como evangelhos. Desta forma, o IC Encontro de Artes atende muito bem aqueles artistas, pesquisadores e fruidores que se despreocupam da separação por disciplinas. Defende sem receios a impossibilidade de discernir, a multiação/multidireção, a confusão, a dúvida, o limite, o risco, a questão. Faz algum tempo que peço aos meus estudantes da Escola Técnica dança da FUNCEB-BA, que escrevam um texto sobre alguma obra do IC, sempre têm vários deles que não conseguem transcender do choque de não poder reconhecer se o que vem é teatro, dança, visual, música. Alguns mais raivosos que outros, sofrem o atravessamento que ainda a fronteira entre linguagens nos produz. Isso me faz entender que ainda é e será até não sei quando, importante defender esse lugar de borrão.

Em 2015, a proposta do IC foi “Arte e Barulho”. Infelizmente só acompanhei a programação de espetáculos dentro do Teatro e perdi os Shows Musicais, que segundo muitas conversas de bar, foram interessantes e explosivos. Foram 5 dias de programação, com 10 ações entre shows e espetáculos, e uma proposta de gastronomia, ao estilo gourmet, que atravessou todos os dias do IC. Os ingressos foram R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia). De novo, uma programação coesa.

Batucada do Marcelo Evelin abriu a programação. Um claro desafio para um encontro de médio porte como o IC. Se juntaram 50 performers, entre artistas da cidade e de fora que vieram com Evelin. Mas o desafio maior acredito não tenha sido de produção mas de inserção no contexto. A casa cheia, 150 pessoas ficaram do lado de fora, na expectativa do que os que entraram, viveriam. Longe de ser um acontecimento chocante, que convocasse a reflexão, a revolta, a mobilização, Batucada foi, na minha opinião, neutralizado pela beleza e pela coreografia geométrica. As pessoas, acostumadas com um certo estado de festa extremo que Salvador vive, por um carnaval que nos ocupa o verão inteiro, e pela exposição do suor, do calor, da sexualidade que tão natural se torna neste contexto, puderam se manter distantes ao questionamento. Embarcaram mais numa brincadeira estética do que numa repulsa necessária. Nos perguntamos entre alguns colegas, será que Salvador deu uma rasteira na Batucada?

Se empreendermos na minha viagem, de que Batucada foi neutralizada, eu devo dizer que, parte da programação também foi. Talvez tenha mais a ver com minha expectativa que com a coisa mesma. Sempre há essa possibilidade. Mas, desta vez, percebi que a programação, arriscada como sempre, teve algumas relações superficializadas pelo contexto onde se apresentaram. De repente, ficar batendo panela perdeu sua potência, talvez até porque a cidade identifica esta ação à direita classe média que hoje exige intervenção militar, um claro risco curatorial, que ao ser testado lançou um resultado. Ou por exemplo, os colegas da Espanha, Jorge Dutor e Guillen Mont, com seu trabalho de suspensão do significado das palavras para abrir a novos sentidos e transformações a partir da ação do corpo, se tornou um interessante jogo formal, que nos atrai por momentos, porém nos distrai por outros.

A dramaturgia destes, foi experimentada no último dia da programação por dois jovens atores baianos, que numa troca que parece ter sido absolutamente amorosa, generosa e profunda, se aventuraram à provar o jogo de palavras, sentidos e sons. Os baianos, se apropriaram com carinho da proposta e a fizeram crescer. Para quem viu as duas apresentações, foi um prazer e um orgulho que os “gringos” não opacaram o talento local. Outra escolha curatorial acertada se tratando de Salvador.

No meu país, Venezuela, temos um ditado para descrever algo bom que te satisfaz, mas que não te mexe do lugar: “Sem pena nem glória”. Já havendo dito, que não acompanhei os “conectivos musicais” que pelos comentários foram muito interessantes e instigantes, confesso que os espetáculos estiveram nesse lugar, sem pena nem glória. Claro que há pontos altos e pontos baixos em qualquer curadoria, sobretudo aquelas curadorias que arriscam, que testam, que propõem algo para além do já provado e comprovado pelos grandes, como é o caso do IC. Isso é poderoso e meu questionamento vai justamente nessa direção, para pensar como foi que esta programação, no contexto em que foi apresentada, foi modificada.

Em vários momentos me percebi questionando a pertinência destes experimentos bem-humorados e bem executados, numa cidade que está sofrendo uma absoluta padronização, higienização e privatização dos espaços públicos (tanto praças, quanto teatros), numa cidade com 80% de população negra que continua à margem da oferta das artes contemporâneas (e infelizmente o IC atende mais à população já privilegiada), numa semana que trouxe às ruas a classe média revoltada para baterem panelas, em um estado em que o apoio à cultura foi reduzido em quase 50% de 2014 para 2015 e com isso a democratização desses recursos é colocada em risco, numa cidade altamente desigual, com uma história cultural tão complexa, só para comentar a grosso modo, alguns tópicos que apareciam para mim enquanto assistia a programação do IC.

Espero seja óbvio que as artes não só atuam politicamente quando discutem direta (ou panfletariamente) certos assuntos sociais. A abertura dos sentidos dos nossos signos, a instauração do paradoxo, a experimentação pela busca de possíveis caminhos, é em si, necessária para que possamos imaginar um mundo que não existe e pode existir, e isso é um dos compromissos da política. Não tenho dúvida disso. Também seria ingênuo, exigir de qualquer curadoria na cidade, abordar a complexidade que se vive em determinados momentos, como é o caso de Salvador agora. Porém, devo compartilhar que minha experiência com a programação foi atravessada por estas questões todas, e, a diferença de outras edições, senti que a programação ficou suspensa, no ar, com pouquíssimo atrito com seu lugar de residência.

Contudo, é assim: mesmo com meu atravessamento, esses cinco dias mobilizaram centos de pessoas entorno das provocações do Dimenti. Isso é um fato. Isso é necessário na cidade. Todas as apresentações estiveram lotadas, gente dentro e fora das portas, se agruparam para acompanhar e experimentar o que esta curadoria estava testando. Isso demonstra um trabalho contínuo, bem orquestrado e bem articulado desta curadoria com seu público específico. Há uma aposta clara de deixar vazar e banhar aos semelhantes com as questões que os tocam. Isso é o princípio de um tecido cultural que se faz com garra, risco e compartilhamento. Vida longa ao IC! Parabéns aos realizadores!

Nirlyn Seijas é Artista da Dança, Criadora e intérprete. Mestra em Cultura e Sociedade (IHAC-UFBA), realiza a Coordenação Artística e Curadoria da Deslimites, mediações artísticas e é Professora de História da Dança e Análise Crítica da Escola de Dança FUNCEB.

[1] Extrato de entrevista para o FIAC-BA, disponível em: http://fiacbahia.com.br/2011/?p=1215

 

Foto: Desastro (C) Leonardo França