Intercâmbio artístico na era pós-colonial | Artistic interchange in post-colonnial era

O pós-colonialismo pode ser definido como um conjunto de estratégias desenvolvidas pelas antigas nações colonizadoras para manter e defender os seus interesses políticos, econômicos e militares nas ex-colônias. É uma espécie de continuação do colonialismo, de maneira menos perceptível e menos interventivo, mas não menos real.

Numa interpretação mais lata, o termo “pós-colonialismo” é muitas vezes usado para descrever a relação de poder/dependência que define os contatos entre os países ricos e os países pobres, entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e o resto do mundo. São tidos como símbolos desta relação, instituições supra-nacionais como o Banco Mundial e a G8, as negociações GATT e da Organização Mundial do Comércio (World Trade Organization) sobre a circulação chamada “livre” de serviços e produtos, as bases militares americanas espalhadas pelo mundo, as intervenções francesas em África, o Commonwealth, etc.

No seu livro famoso The Clash of Civilizations, o acadêmico americano Samuel P. Huntington apresenta uma análise algo inesperada do atual paradigma pós-colonial. Explica como o pós-colonialismo é a última fase de um imperialismo ocidental que nasceu com os descobrimentos portugueses no fim do século XV, cresceu, numa primeira onda, nas Américas, sob impulso de Espanha e Portugal e, num segundo movimento, na África e no Oriente, sob a liderança francesa e inglesa, chegando ao seu apogeu quando, no fim da 1ª guerra mundial, um pequeno grupo de líderes Europeus concordaram em dividir o mundo entre eles na Conferência de Versailles. A partir deste momento, o império colonial vai-se desmoronando pouco a pouco, até chegar à independência das colónias européias nos anos 60 e 70 do século passado, sendo depois substituído pelo paradigma pós-colonialista.

O sistema pós-colonial prolonga a supremacia ocidental, mas Huntington adverte os europeus e o novo super-poder americano, para não se deixar enganar pelas aparências: a sua hegemonia não é mais nem menos do que um capítulo na história da humanidade, com início, meio e fim. Para quem quer ler os sinais, é óbvio que o império ocidental está para chegar ao fim, por razões econômicas, demográficas e civilizacionais. O nivelamento econômico e sobretudo militar vai levar o seu tempo. Dificilmente imaginamos hoje que um dia a China será um dos primeiros poderes econômicos do mundo e que a riqueza do Brasil ou da África do Sul ultrapassarão em muito a riqueza da Grã-Bretanha ou da França. Ainda mais dificilmente prevemos um mundo onde a supremacia militar americana já não será incontestada. São visões do futuro que implicam processos econômicos e de desenvolvimento muito lentos e complicados. Menos longínquo, no entanto, é a emancipação cultural.

As conquistas do Ocidente foram largamente sustentadas pelos avanços tecnológicos e militares impressionantes que se verificaram na Europa, e depois nos Estados Unidos, desde o século XVI. O ocidente assumiu que a sua supremacia econômica e militar implicava também uma supremacia cultural e moral. Foi um raciocínio historicamente talvez compreensível, mas por isso não menos terrível. Numa inversão ideológica brutal da realidade, a conquista real foi descrita como uma libertação moral. A imposição de padrões culturais e crenças religiosas, como a salvação das trevas. A destruição de civilizações como desenvolvimento e progresso. Os colonizadores esqueceram-se habilmente da origem violenta da sua supremacia, mas os colonizados nunca deixaram de a sentir na sua pele.

No início do século XXI ainda é difícil para os ocidentais distingüir claramente entre a sua supremacia militar e econômica (ainda largamente intactas) e a relatividade dos seus valores morais, da sua religião, das suas expressões culturais. A crença na superioridade da cultura ocidental continua a ser a base ideológica que sustenta a ordem mundial pós-colonial. A Europa, que desencadeou duas guerras mundiais, inventou os campos de concentração e lutou inúmeras guerras coloniais, tornando o século XX o século mais sangrento da história da humanidade, desenvolveu um senso histórico mais real e, às vezes, uma humildade refrescante. Nos Estados Unidos, no entanto, um presidente ainda pode condenar povos inteiros por pertencer a um imaginário “Eixo do Mal”, sem ser contestado publicamente. Pode infligir uma guerra santa a uma nação no outro lado do mundo com o objetivo de salvaguardar os seus interesses (o que ele chama “instalar a democracia”) e honestamente acreditar que os seus soldados serão recebidos com ramos de flores. O ressentimento contra a arrogância ocidental é grande, e com razão. O pós-colonialismo está a ser desafiado globalmente ao nível econômico, político e militar, mas sobretudo nos seus fundamentos ideológicos e culturais.

Huntington desenvolve uma tese convincente: a nova ordem mundial está a formar-se segundo antiquíssimos padrões civilizacionais. Abafadas durante oitenta anos pelo conflito entre capitalismo e comunismo, as velhas divergências civilizacionais reapareceram imediatamente depois da queda do muro de Berlim. Por exemplo, com o fim do mundo bipolar, a Iugoslávia (criação da Conferência de Yalta) desfaz-se quase de imediato em territórios civilizacionais: os católicos/ocidentais Eslovenos e Croatas, a Bósnia muçulmana e a Sérvia ortodoxa. Ressurge uma velha intuição: a cultura e não a ideologia define onde pertencemos, quem são os potenciais aliados, quem os inimigos a temer.

Em todas as partes do mundo, continua Huntington, a resistência contra a hegemonia ocidental está a organizar-se à volta dos países mais fortes da cada civilização. Com mais fragilidade e dificuldade na África, onde a África do Sul e a Nigéria são apontadas como potenciais líderes de uma renascença africana, e no mundo ortodoxo, onde o líder natural, a Rússia, atravessa um período difícil. Com mais força e insistência em regiões que não sofreram o colonialismo ou que se libertaram já há muito tempo, como é o caso da América Latina, onde o Brasil claramente assumiu a liderança, da Índia, cujas fronteiras quase coincidem com as da civilização Hindu, e da China, que está em vias de reassumir a sua posição antiga de líder da civilização Sino-Japonêsa. A conclusão de Huntington é terrível: o ocidente deve interiorizar que o seu domínio não perdurará para sempre, unir-se à volta dos Estados Unidos (a atual nação líder da civilização ocidental) e preparar-se para o inevitável “Choque das Civilizações”. Uma visão quase apocalíptica de um novo mundo, não de dois, mas de quatro ou cinco blocos em guerra, fria ou não…

Recuso-me de pensar em termos de choques inevitáveis. Embora a análise de Huntington seja consequente e bem documentada, a conclusão assente em alguns pressupostos discutíveis. A primeira objeção é que civilizações não são entidades separadas. Não são blocos monolíticos e estanques que podem ser colocados sem mais nem menos em campos opostos. A cultura não deve ser encarada como uma série de códigos e ideologias fixos, congelados no espaço e no tempo, mas antes como um sistema em evolução constante, aberto a influências e internamente diferenciado. Um camponês do interior da China não vive a sua cultura da mesma maneira do que um habitante de Shanghai. Aliás, há argumentos para afirmar que o habitante de Shanghai tem mais em comum com os habitantes de outras grandes metrópoles do mundo do que com o seu compatriota do interior. Para quem vive no Mediterrâneo é óbvio que esta região não é necessariamente um campo de batalha entre quatro civilizações. Mais do que isso, é uma rede complexa de tradições partilhadas, padrões culturais importadas e exportadas, influências recíprocas e diferenças graduais. A Turquia candidatou-se para aderir à União Européia. O processo é difícil e lento, mas o fato por si demostra que as fronteiras civilizacionais antigas não são absolutas, nem impermeáveis.

Há um segundo pressuposto que não corresponde forçosamente à verdade. Na tese do “Choque de Civilizações” ressoam os antigos medos das tribos mongóis, das conquistas otomanas, do imperialismo chinês, das atrocidades dos conquistadores, e tantos outros espectros que assombram o imaginário dos povos: medos, muitas vezes provocados por eventos históricos reais, mas depois prolongados e ampliados a dimensões mitológicas, por falta de conhecimento e desconfiança. Num mundo globalizado e interligado pelas novas tecnologias de comunicação, a falta de conhecimento já não é um dado inevitável, a desconfiança já não tem que ser uma atitude generalizada.

São duas áreas, onde a criação artística e a atividade cultural podem e devem atuar. Contatos interculturais são de todos os tempos e têm tido o mérito de provar que civilizações distintas podem encontrar-se sem necessariamente acabar em confronto e animosidade. Têm demostrado que os povos do mundo não se enfrentam como blocos rígidos, mas que encontros são em primeiro lugar encontros entre pessoas, que, apesar de todas as diferenças e divergências, conseguem dialogar. O contato intercultural tem o potencial de aumentar o conhecimento mútuo e de diminuir assim a desconfiança.

Se se está a desenhar um mundo onde os antagonismos se constróem à volta de identidades civilizacionais, ou seja culturais, é na cultura que teremos que encontrar as respostas alternativas. Inesperadamente, a cultura encontra-se no centro do destino do mundo e a importância das políticas culturais ganha uma dimensão nunca imaginada. Se acreditamos na análise de Huntington, vai depender da nossa capacidade de construir pontes interculturais, se o lento processo de emancipação que está em curso acabará em choques civilizacionais ou num mundo mais equilibrado e mais justo. O século XXI será o século das culturas do mundo.

A missão é enorme e os instrumentos que temos à disposição poucos e mal adequados. As políticas culturais oficiais que existem ao nível nacional e internacional são largamente insuficientes e, muitas vezes, até contraprodutivas. No ocidente, as políticas culturais internacionais estão nas mãos de organismos como AFAA, The British Council, Goethe Institut, Pro Helvetia, Instituto Camões e Instituto Cervantes, instituições que estão diretamente ligadas aos respectivos Ministérios de Negócios Estrangeiros e por isso, necessariamente informadas pela agenda política em vigor. Limitam-se geralmente a fomentar a utilização das suas línguas noutros países e continentes e a apoiar a divulgação dos seus produtos culturais nacionais. Em alguns destes institutos já começa a existir uma visão mais ampla das suas funções e uma vontade de apoiar o intercâmbio artístico de maneira mais desinteressada, mas ainda estamos longe de uma política cultural internacional equilibrada. Talvez seja possível criar uma plataforma mais imparcial ao nível da União Europeia? Ou será que a UNESCO pode vir a desempenhar um papel mais dinamizador, par além da preservação do patrimônio?

O problema é agravado pela inexistência de políticas culturais na maioria dos países do chamado terceiro mundo. A cultura é tida como um bem supérfluo e a política cultural muitas vezes reduzida a uma caricatura. Nos poucos casos onde se faz um esforço para desenvolver estratégias e políticas culturais, estas fecham-se geralmente num conservadorismo constrangedor. A conservação de tradições e do património cultural é levado ao ponto de sufocar a criação contemporânea. O que levou o meu colega moçambicano Panaibra Gabriel numa conferência internacional organizado pelo Danças na Cidade em 1999 a queixar-se: “África não precisa de importar cultura, porque tem uma cultura própria. O que África precisa é de atualizar a sua cultura. Não a deixar perder-se no espaço e no tempo. Não a referenciar apenas ao passado. É importante começarmos a olhar para nós como presente. Hoje as formas políticas e a realidade social são outras. Existem novas formas de convivência. É necessário criar coisas novas. Se África continua a ser um espelho do passado, os artistas da nossa geração correm o risco de abandonar o palco sem deixar a sua história para as gerações vindouras” (Práticas de Interculturalismo, Danças na Cidade, Lisboa, 2001, p.52).

À luz da falta de políticas culturais adequadas, a iniciativa está claramente nas mãos das organizações independentes, não-governamentais. São os próprios artistas e organizações culturais que têm que deixar a auto-suficiência e infletir as políticas de inspiração neocolonial dos governos do Norte. São os artistas e agentes culturais que têm que romper o isolamento e ultrapassar o imobilismo dos governos do Sul. Lentamente, está a crescer a consciência nos meios artísticos de que o mundo é, e sempre tem sido, um lugar multicultural, em que várias culturas e civilizações estão continuamente a produzir inumeráveis produtos culturais e criações artísticas. Começamos a reconhecer que os desequilíbrios econômicos que governam o mundo também deixam marcas profundas nas práticas culturais e que a fraca presença de produtos artísticos do Sul no mercado cultural internacional tem mais a ver com o poder econômico e o ostracismo do Norte do que com uma falta de qualidade.

Na nossa própria prática, tudo começa de uma maneira muito simples. Na primavera de 1997, Mano Preto e Zezinho Semedo da companhia de dança cabo-verdiana Raiz di Polon, vêm ter conosco com uma proposta de colaboração que inclui formação, co-produção e a organização de um festival de dança internacional em Cabo Verde. O nome do projeto: “Dançar o que é Nosso”. A proposta do Raiz di Polon surge na hora certa. Poucos meses antes tínhamos organizado a quarta edição do festival Danças na Cidade, o primeiro a ser um festival internacional de dança contemporânea e não apenas um acontecimento a nível nacional. Na avaliação pós-festival destaca-se uma questão central: como podemos chamar o nosso evento um festival internacional de dança, enquanto os nossos contatos e colaborações internacionais se fazem quase exclusivamente com artistas e organizadores do mundo ocidental? Se queremos fazer do nosso festival um lugar de encontro e intercâmbio onde se possam confrontar idéias e partilhar experiências, como podemos deixar de lado a maior parte do mundo?

Por onde começar? O nosso conhecimento é quase nulo e a falta de informação obriga-nos, logo à partida, a tomar uma decisão necessária, mas com a qual nos sentimos algo desconfortáveis. É preciso encontrar um ângulo de entrada para iniciar a nossa investigação. O convite do Raiz di Polon e os laços históricos e culturais de Portugal, levam-nos a optar para começar o projeto com alguns países da Lusofonia: Cabo Verde, Brasil, Moçambique. A opção levanta uma questão inquietante: não estaríamos desde logo a compactar com um dos mais poderosos mecanismos da política neocolonial? Na nossa primeira estadia em Moçambique são vários os artistas e agentes culturais que nos alertam para as implicações duvidosas da palavra “Lusofonia”. Lusofonia, Francofonia, Anglofonia, os prefixos dirijam o olhar: do Norte para o Sul. Um Norte que tenta manter blocos linguísticos e entidades políticas criados pelo colonialismo. Um Sul que se vê dividido pelo olhar do Norte.

Razões práticas, mas sobretudo a curiosidade de conhecer melhor as terras das quais tanta gente viva na nossa cidade, cuja música soa nas discotecas e bares das noites lisboetas, cujas imagens conhecemos das notícias e telenovelas, levam-nos a aceitar a opção lusófona. Num dos primeiros textos sobre o projeto Dançar o Que é Nosso escrevemos: “Encaramos a Lusofonia não como uma realidade fechada sobre si própria, mas uma comunidade aberta à colaboração com o resto do mundo”.

As ambições do Raiz di Polon são grandes, as expectativas exageradas. Em conjunto, decidimos começar pela formação, uma opção que será, um ano mais tarde, também tomada em Moçambique. Mas qual a formação a oferecer aos coreógrafos, bailarinos e agentes culturais africanos? A separação entre ricos e pobres esconde uma outra desigualdade cada vez mais importante e profunda: entre os que têm acesso a informação e os que não têm. Ao querer passar informação, vemo-nos logo confrontado com o problema da seleção. Quem vai ensinar? Que tipo de dança? Que estilo de movimento? O que é mais urgente, mais necessário? O que traz mais benefícios aos bailarinos africanos? O problema não é tanto a necessidade em si de ter que escolher – a definição de objetivos e estratégias faz parte de qualquer empreendimento profissional – mas antes a questão quem decida.

Há dois anos atrás, tive acesso a alguns relatórios de professores de dança americanos que ensinaram a dança contemporânea na Europa no fim dos anos 70. Curiosamente, o conteúdo dos relatórios é quase igual aos relatórios dos coreógrafos que convidamos para ensinar em Cabo Verde e Moçambique no âmbito do Dançar o Que é Nosso. Falam da falta de uma prática diária, de problemas de coordenação, lapsos de concentração, limitações em ler o espaço envolvente, o fraco conhecimento da anatomia e o subsequente risco de lesões,… Até queixas de falta de pontualidade aparecem nos dois casos! Mas louvam igualmente o empenho, a curiosidade, a abertura e a grande vontade de aprender. Também na Europa a dança contemporânea foi importada do estrangeiro, mas há uma diferença fundamental. Nos anos 70 e 80 foram os próprios europeus, que tomaram as opções e decidiram quem convidar e quem não. Iam a Nova Iorque para se informar e para estudar e trouxeram para Europa o que lhes interessava.

Com os nossos parceiros africanos encontramo-nos numa situação radicalmente diferente. Têm apenas uma vaga noção de que exista uma dança moderna, que é diferente da dança tradicional, e que circula num mercado cultural internacional. Quando falamos com os jovens bailarinos e coreógrafos que encontramos em Moçambique, o pedido é sempre o mesmo: “Queremos que nos ensinem passos e movimentos modernos para incorporar nas nossas danças. Assim, poderemos tornar a nossa arte mais contemporânea”. Tentamos explicar que a dança contemporânea não é uma questão de certos passos e movimentos, mas antes uma maneira de encarar a criação artística. Abanam a cabeça, mas vejo que não compreendem. Não têm os meios para viajar e conhecer a dança que gostavam de compreender melhor, os espectáculos não passam nas suas cidades, o ensino artístico é não existente ou muito fraco. Encontramo-nos mais uma vez na desigualdade. Seremos nós a decidir quem vai ensinar e qual a informação a passar. É uma situação infeliz, mas não há alternativas. Pouco depois, escrevo numa publicação: “Os primeiros passos são naturalmente um bocado maljeitosos, mas se não nos mexermos, nada irá mudar. Somos nós – e não eles – que têm os meios para começar a eliminar o fosso. (…) Acreditamos que, tendo oportunidade e tempo, os artistas africanos de dança tornar-se-ão uma voz reconhecida e fonte de inspiração para toda a dança contemporânea”.

O problema torna-se especialmente agudo, porque se trata de um encontro de duas culturas extremamente diferentes. Porquê introduzir a dança contemporânea em países com uma tradição de dança tão forte, tão impressionante, tão vivida? Porquê, como em qualquer lugar do mundo, os jovens estão curiosos e interessados. Querem conhecer outros horizontes, sair do isolamento, saber de novas oportunidades. Ou, como diz o Panaibra, porque querem desenvolver instrumentos para falar sobre o mundo complexo em que vivem, porque as danças que foram criadas nas aldeias do interior já não conseguem transmitir opiniões sobre a vida no metrópole, sobre a droga, a violência, a exclusão social, sobre o que se vê na televisão. David Abílio, o diretor da Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, dá uma outra razão: “Penso que nós no Sul conhecemos melhor o Norte, mas também de uma forma errada. Conhecemo-lo através da Coca-Cola, que chega aos sítios mais recônditos da África, através de Michael Jackson e através dos filmes americanos, mas esse não é o Norte que importa conhecer realmente. No Sul estamos com medo porque pensamos que a globalização é feita numa perspectiva: o Norte é o centro, o Sul a periferia a “globalizar”. Temos medo de sermos “globalizados” antes mesmo de nos revelarmos como uma sociedade e cultura contemporânea próprias.” (Práticas de Interculturalismo, Lisboa 2001, p. 108).

Das conversas que temos com os nossos parceiros em Cabo Verde e Moçambique resulta um formato de residências. Uma ou duas vezes por ano um pequeno grupo de coreógrafos – europeus, brasileiros, africanos –reside por duas ou três semanas no país para trabalhar com a comunidade de dança local. Nos cinco anos de residências diversificamos a oferta, com o objetivo de informar sobre um leque de possibilidades e estilos. Entre 1998 e 2003, têm lugar nove residências de formação em Cabo Verde e quatro em Moçambique. Mais de cinquenta coreógrafos e profissionais de dança internacionalmente reconhecidos passam a dar aulas a centenas de jovens bailarinos cabo-verdianos e moçambicanos.

O que pedimos aos professores é estimular o desenvolvimento de uma prática criativa na área da dança, não através do ensino de técnicas e estilos de dança de origem euro-americana, mas pela aplicação de ferramentas básicas, desenhadas para estimular a utilização criativa de um vocabulário de dança pessoal e baseada na cultura própria: a conscientização do corpo e o alargamento das suas capacidades, o domínio do espaço e do tempo, a aprendizagem de métodos de composição coreográfica, a estimulação do trabalho criativo individual.

Entretanto vamos experimentando com outros formatos. O projeto Alma Txina, realizado em 2002, por exemplo, junta à residência um projeto de criação, em que cinco coreógrafos oriundos da escola de dança PARTS em Bruxelas, ficam mais seis semanas em Maputo para criar cinco coreografias com um pequeno grupo seleccionado dos oitenta bailarinos que participaram nos workshops da residência, dando-lhes a oportunidade de passar por um processo de criação, desde a idéia inicial, até à apresentação pública. Depois da estréia em Maputo, Alma Txina será ainda apresentada em vários teatros portugueses, na Bélgica, na Alemanha e na Suíça.

Um outro projeto de formação nasce da necessidade de ir mais longe com os bailarinos e coreógrafos mais talentosos. De Novembro 2003 a Maio 2004, a organização CulturArte organiza com o nosso apoio o 1º Estágio de Desenvolvimento Coreográfico de Maputo, uma formação de seis meses para um grupo de 15 bailarinos, selecionados numa audição aberta das várias companhias independentes da cidade. O programa desta formação é desenvolvido num seminário internacional realizado no início de 2003 com coreógrafos e profissionais do ensino de dança da ÿfrica e da Europa: Seydou Boro (coreógrafo da companhia Salia ni Seydou, Burkina Faso), Faustin Linyekula (coreógrafo e diretor dos Studios Bamako, RD Congo), Panaibra Gabriel (coreógrafo e diretor da CulturArte, Moçambique), Maria Helena Pinto (coreógrafa na Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique), Boyzie Cekwana (coreógrafo e Professor de dança, ÿfrica do Sul), Theo Van Rompay (diretor da escola de dança PARTS, Bélgica), Elizabeth Corbett (professora na PARTS, EUA/Bélgica), Nganti Towo (coreógrafa, professora de dança e diretora do festival Kaay Fecc, Senegal), Thomas Hauert (coreógrafo, Suíça), Carina Timas (produtora da companhia de dança Raiz di Polon, Cabo Verde), Catarina Saraiva (produtora de Danças na Cidade, Portugal) e eu próprio. Já no terreno, o programa intensivo é orientado por professores de dança que residam durante cinco a sete semanas em Maputo, de modo a poder transmitir conhecimentos mais aprofundados: Boyzie Cekwana e Desire Davids (ÿfrica do Sul), David Zambrano (Venezuela/Holanda), Mat Voorter (Holanda), Francisco Camacho (Portugal) e Faustin Linyekula (CDCongo). Nas minhas visitas a Moçambique percebo que é o caminho certo: os quinze bailarinos que fazem o curso estão extremamente empenhados e continuam a trabalhar e experimentar mesmo fora dos períodos das aulas, o progresso de cada um é impressionante e a oportunidade de estudar com excelentes artistas e professores durante seis meses cria o senso de seriedade e responsabilidade que é a chave para atingir um desenvolvimento sustentado. Estes jovens – tenho a certeza disso – formarão o núcleo duro da futura dança contemporânea moçambicana.

Durante os anos que estamos a trabalhar com os nossos parceiros em Cabo Verde e Moçambique, cresce a convicção de que o desenvolvimento da dança contemporânea em África só pode vir da África, e, mais precisamente dos esforços conscientes dos bailarinos africanos para desenvolver as suas danças e criar conteúdos pessoais. O modo como a companhia Raiz di Polon vai mudando a sua visão sobre a criação é um exemplo. Um espetáculo deles normalmente consistia numa série de danças tradicionais ligadas por uma narrativa simples e adaptadas à perspectiva do palco. Nas suas criações mais recentes, Pêtu, CV Matrix 25, Duas sem três ou Ruínas, há uma liberdade muito maior do artista/autor para seleccionar material e transformá-lo num espectáculo. Ainda usam muito a dança e a música tradicional, mas não têm medo de fazer experiências com elas e moldar os seus contornos rígidos às suas necessidades e conceitos artísticos – e o resultado é convincente porque é honesto e autêntico.

O sucesso notável do Raiz di Polon nos palcos internacionais tem tudo a ver com esta autenticidade e com a indiscutível qualidade do trabalho, mas é também resultado de um esforço contínuo em termos de produção. De 1999 a 2003, Danças na Cidade co-produz anualmente uma nova criação do grupo, arranjando também outros co-produtores internacionais. Já não há falta de interesse na dança contemporânea africana por parte dos programadores europeus, mas há pouca informação, pouca oferta e sobretudo uma grande falta de paciência para investir no futuro. Para Raiz di Polon estas co-produções são passos importantes não só artisticamente, mas também politicamente. Pela primeira vez podem viver da sua profissão em Cabo Verde, embora ainda com muitas dificuldades e privações, e a sua presença nos palcos internacionais traz-lhes um grande reconhecimento no seu próprio país, que, neste ano, se vai converter pela primeira vez num apoio pequeno, mas real, por parte do governo cabo-verdiano!

A história de Raiz di Polon é uma história de sucesso, que, muito rapidamente, começa a revelar o seu lado negro: a criação de uma dependência quase total do mercado europeu. Neste momento, e provavelmente por muitos anos a vir, quase todas as companhias de dança africanas estão condenadas a passar uma boa parte do seu tempo na Europa, de tal modo estão dependentes de contratos e digressões européias para assegurar a sua sobrevivência artística e econômica. As conseqüências negativas são várias, desde a sensação de distanciamento do seu meio ambiente e da sua própria cultura, até ao famoso brain drain: a absorção dos maiores talentos dos países do terceiro mundo pelo mercado europeu, deixando os países de origem apenas mais pobres do que antes. Menos tangível, mas por isso não menos relevante, é a seguinte questão: se os artistas africanos dependem do mercado europeu, será que o seu trabalho se pode manter intacto perante, mais uma vez, o olhar decisivo do Norte?

Estas questões levam-nos a um último tema importante: nada terá valido a pena se não houver progressos estruturais e desenvolvimento sustentável. Estes passam pelo reforço de capacidades profissionais, a criação de bases de financiamento, a disponibilidade de infra-estruturas e a consciencialização dos governos locais da relevância de uma política cultural. São processos complexos e lentos que dependem sobretudo da perseverança dos artistas e agentes culturais africanos.

Na questão das infra-estruturas, conseguimos apoiar os nossos parceiros na sua luta para obter um espaço de trabalho. Raiz di Polon, depois de passar anos na Casa Padja, que se vai desmoronando até a um nível intolerável por falta de investimentos de manutenção, tem agora acesso ao Auditório Nacional para os seus ensaios e espectáculos. Continua com esperanças de que um dia possam voltar à sua Casa Padja, renovada e adaptada à prática da dança. Em 2003, a CulturArte consegue abrir um pequeno Centro de Artes independente, com escritórios, um espaço de reuniões, cibercafé e o único estúdio de dança da cidade com um chão adequado para a dança. Rapidamente o centro torna-se o lugar de encontro das companhias independentes de Maputo.

Para reforçar as capacidades profissionais, organizamos, para além dos cursos de dança, workshops de produção e gestão de atividades culturais. Várias pessoas passam a fazer estágio na nossa organização em Lisboa e à medida que o projeto Dançar o Que é Nosso vai avançando a nossa função desloca-se da própria organização ou co-organização dos projetos em Cabo Verde e Moçambique para o aconselhamento e o acompanhamento.

Para colmatar o problema da falta de informação, decidimos, desde o início, convidar artistas e agentes culturais africanos para virem a Lisboa e conhecerem a realidade artística européia. Todos os anos organizamos um ou dois Encontros Internacionais. Podem ser encontros de produtores e programadores, no contexto de uma conferência ou de um seminário, organizado, de preferência, durante o nosso festival, para dar a oportunidade aos convidados de seguir a programação do festival e ver uma selecção internacional de espectáculos de dança contemporânea (oportunidade que raramente têm). A conferência internacional de 1999 sobre interculturalismo e os seminários euro-africanos de 2002 e 2003 ajudam a criar uma dinâmica de intercâmbio, que depois terá seguimento nas conferências de Bruxelas, Birmingham, Yaoundé e Joanesburgo, patrocinadas pela rede IETM (Informal European Theatre Meeting) e nas publicações eletrônicas Crossroads I e II, editadas por IETM, Africalia e Danças na Cidade e disponíveis nas páginas www.ietm.org e www.dancasnacidade.pt.

Os Encontros podem também ser encontros de artistas, como foi o caso em 1998, 2000, 2001 e 2003. Nestes eventos, juntamos entre 30 e 50 bailarinos e coreógrafos para viverem e trabalharem durante três semanas ou um mês em Lisboa. São momentos de intercâmbio intenso, com workshops, debates, troca de experiências e apresentações informais: um laboratório artístico multicultural. O primeiro Encontro de 1999 ainda é um evento exclusivamente lusófono e junta bailarinos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Portugal. No 7º Encontro, que tem lugar no mês de Agosto de 2003, participam 51 bailarinos, coreógrafos e teóricos de dança de 21 países diferentes: ÿfrica do Sul, ÿustria, Bélgica, Brasil, Burkina Faso, Cabo Verde, Cuba, Egipto, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, Indonésia, Líbano, Madagáscar, Marrocos, Moçambique, Portugal, República Checa e Tunísia. No fim deste evento memorável, a jovem artista Danya Hammoud de Beirute escreve: “O Encontro abriu portas, modos de lidar com o que temos e com o que poderemos ter.”

* Mark Deputter é diretor da Associação Cultural Danças na Cidade e do projeto Dançar o que é nosso, de integração cultural dos países de língua portuguesa.O pós-colonialismo pode ser definido como um conjunto de estratégias desenvolvidas pelas antigas nações colonizadoras para manter e defender os seus interesses políticos, econômicos e militares nas ex-colônias. É uma espécie de continuação do colonialismo, de maneira menos perceptível e menos interventivo, mas não menos real.

Numa interpretação mais lata, o termo “pós-colonialismo” é muitas vezes usado para descrever a relação de poder/dependência que define os contatos entre os países ricos e os países pobres, entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e o resto do mundo. São tidos como símbolos desta relação, instituições supra-nacionais como o Banco Mundial e a G8, as negociações GATT e da Organização Mundial do Comércio (World Trade Organization) sobre a circulação chamada “livre” de serviços e produtos, as bases militares americanas espalhadas pelo mundo, as intervenções francesas em ÿfrica, o Commonwealth, etc.

No seu livro famoso The Clash of Civilizations, o acadêmico americano Samuel P. Huntington apresenta uma análise algo inesperada do atual paradigma pós-colonial. Explica como o pós-colonialismo é a última fase de um imperialismo ocidental que nasceu com os descobrimentos portugueses no fim do século XV, cresceu, numa primeira onda, nas Américas, sob impulso de Espanha e Portugal e, num segundo movimento, na ÿfrica e no Oriente, sob a liderança francesa e inglesa, chegando ao seu apogeu quando, no fim da 1ª guerra mundial, um pequeno grupo de líderes Europeus concordaram em dividir o mundo entre eles na Conferência de Versailles. A partir deste momento, o império colonial vai-se desmoronando pouco a pouco, até chegar à independência das colónias européias nos anos 60 e 70 do século passado, sendo depois substituído pelo paradigma pós-colonialista.

O sistema pós-colonial prolonga a supremacia ocidental, mas Huntington adverte os europeus e o novo super-poder americano, para não se deixar enganar pelas aparências: a sua hegemonia não é mais nem menos do que um capítulo na história da humanidade, com início, meio e fim. Para quem quer ler os sinais, é óbvio que o império ocidental está para chegar ao fim, por razões econômicas, demográficas e civilizacionais. O nivelamento econômico e sobretudo militar vai levar o seu tempo. Dificilmente imaginamos hoje que um dia a China será um dos primeiros poderes econômicos do mundo e que a riqueza do Brasil ou da ÿfrica do Sul ultrapassarão em muito a riqueza da Grã-Bretanha ou da França. Ainda mais dificilmente prevemos um mundo onde a supremacia militar americana já não será incontestada. São visões do futuro que implicam processos econômicos e de desenvolvimento muito lentos e complicados. Menos longínquo, no entanto, é a emancipação cultural.

As conquistas do Ocidente foram largamente sustentadas pelos avanços tecnológicos e militares impressionantes que se verificaram na Europa, e depois nos Estados Unidos, desde o século XVI. O ocidente assumiu que a sua supremacia econômica e militar implicava também uma supremacia cultural e moral. Foi um raciocínio historicamente talvez compreensível, mas por isso não menos terrível. Numa inversão ideológica brutal da realidade, a conquista real foi descrita como uma libertação moral. A imposição de padrões culturais e crenças religiosas, como a salvação das trevas. A destruição de civilizações como desenvolvimento e progresso. Os colonizadores esqueceram-se habilmente da origem violenta da sua supremacia, mas os colonizados nunca deixaram de a sentir na sua pele.

No início do século XXI ainda é difícil para os ocidentais distingüir claramente entre a sua supremacia militar e econômica (ainda largamente intactas) e a relatividade dos seus valores morais, da sua religião, das suas expressões culturais. A crença na superioridade da cultura ocidental continua a ser a base ideológica que sustenta a ordem mundial pós-colonial. A Europa, que desencadeou duas guerras mundiais, inventou os campos de concentração e lutou inúmeras guerras coloniais, tornando o século XX o século mais sangrento da história da humanidade, desenvolveu um senso histórico mais real e, às vezes, uma humildade refrescante. Nos Estados Unidos, no entanto, um presidente ainda pode condenar povos inteiros por pertencer a um imaginário “Eixo do Mal”, sem ser contestado publicamente. Pode infligir uma guerra santa a uma nação no outro lado do mundo com o objetivo de salvaguardar os seus interesses (o que ele chama “instalar a democracia”) e honestamente acreditar que os seus soldados serão recebidos com ramos de flores. O ressentimento contra a arrogância ocidental é grande, e com razão. O pós-colonialismo está a ser desafiado globalmente ao nível econômico, político e militar, mas sobretudo nos seus fundamentos ideológicos e culturais.

Huntington desenvolve uma tese convincente: a nova ordem mundial está a formar-se segundo antiquíssimos padrões civilizacionais. Abafadas durante oitenta anos pelo conflito entre capitalismo e comunismo, as velhas divergências civilizacionais reapareceram imediatamente depois da queda do muro de Berlim. Por exemplo, com o fim do mundo bipolar, a Iugoslávia (criação da Conferência de Yalta) desfaz-se quase de imediato em territórios civilizacionais: os católicos/ocidentais Eslovenos e Croatas, a Bósnia muçulmana e a Sérvia ortodoxa. Ressurge uma velha intuição: a cultura e não a ideologia define onde pertencemos, quem são os potenciais aliados, quem os inimigos a temer.

Em todas as partes do mundo, continua Huntington, a resistência contra a hegemonia ocidental está a organizar-se à volta dos países mais fortes da cada civilização. Com mais fragilidade e dificuldade na ÿfrica, onde a ÿfrica do Sul e a Nigéria são apontadas como potenciais líderes de uma renascença africana, e no mundo ortodoxo, onde o líder natural, a Rússia, atravessa um período difícil. Com mais força e insistência em regiões que não sofreram o colonialismo ou que se libertaram já há muito tempo, como é o caso da América Latina, onde o Brasil claramente assumiu a liderança, da ÿndia, cujas fronteiras quase coincidem com as da civilização Hindu, e da China, que está em vias de reassumir a sua posição antiga de líder da civilização Sino-Japonêsa. A conclusão de Huntington é terrível: o ocidente deve interiorizar que o seu domínio não perdurará para sempre, unir-se à volta dos Estados Unidos (a atual nação líder da civilização ocidental) e preparar-se para o inevitável “Choque das Civilizações”. Uma visão quase apocalíptica de um novo mundo, não de dois, mas de quatro ou cinco blocos em guerra, fria ou não…

Recuso-me de pensar em termos de choques inevitáveis. Embora a análise de Huntington seja consequente e bem documentada, a conclusão assente em alguns pressupostos discutíveis. A primeira objeção é que civilizações não são entidades separadas. Não são blocos monolíticos e estanques que podem ser colocados sem mais nem menos em campos opostos. A cultura não deve ser encarada como uma série de códigos e ideologias fixos, congelados no espaço e no tempo, mas antes como um sistema em evolução constante, aberto a influências e internamente diferenciado. Um camponês do interior da China não vive a sua cultura da mesma maneira do que um habitante de Shanghai. Aliás, há argumentos para afirmar que o habitante de Shanghai tem mais em comum com os habitantes de outras grandes metrópoles do mundo do que com o seu compatriota do interior. Para quem vive no Mediterrâneo é óbvio que esta região não é necessariamente um campo de batalha entre quatro civilizações. Mais do que isso, é uma rede complexa de tradições partilhadas, padrões culturais importadas e exportadas, influências recíprocas e diferenças graduais. A Turquia candidatou-se para aderir à União Européia. O processo é difícil e lento, mas o fato por si demostra que as fronteiras civilizacionais antigas não são absolutas, nem impermeáveis.

Há um segundo pressuposto que não corresponde forçosamente à verdade. Na tese do “Choque de Civilizações” ressoam os antigos medos das tribos mongóis, das conquistas otomanas, do imperialismo chinês, das atrocidades dos conquistadores, e tantos outros espectros que assombram o imaginário dos povos: medos, muitas vezes provocados por eventos históricos reais, mas depois prolongados e ampliados a dimensões mitológicas, por falta de conhecimento e desconfiança. Num mundo globalizado e interligado pelas novas tecnologias de comunicação, a falta de conhecimento já não é um dado inevitável, a desconfiança já não tem que ser uma atitude generalizada.

São duas áreas, onde a criação artística e a atividade cultural podem e devem atuar. Contatos interculturais são de todos os tempos e têm tido o mérito de provar que civilizações distintas podem encontrar-se sem necessariamente acabar em confronto e animosidade. Têm demostrado que os povos do mundo não se enfrentam como blocos rígidos, mas que encontros são em primeiro lugar encontros entre pessoas, que, apesar de todas as diferenças e divergências, conseguem dialogar. O contato intercultural tem o potencial de aumentar o conhecimento mútuo e de diminuir assim a desconfiança.

Se se está a desenhar um mundo onde os antagonismos se constróem à volta de identidades civilizacionais, ou seja culturais, é na cultura que teremos que encontrar as respostas alternativas. Inesperadamente, a cultura encontra-se no centro do destino do mundo e a importância das políticas culturais ganha uma dimensão nunca imaginada. Se acreditamos na análise de Huntington, vai depender da nossa capacidade de construir pontes interculturais, se o lento processo de emancipação que está em curso acabará em choques civilizacionais ou num mundo mais equilibrado e mais justo. O século XXI será o século das culturas do mundo.

A missão é enorme e os instrumentos que temos à disposição poucos e mal adequados. As políticas culturais oficiais que existem ao nível nacional e internacional são largamente insuficientes e, muitas vezes, até contraprodutivas. No ocidente, as políticas culturais internacionais estão nas mãos de organismos como AFAA, The British Council, Goethe Institut, Pro Helvetia, Instituto Camões e Instituto Cervantes, instituições que estão diretamente ligadas aos respectivos Ministérios de Negócios Estrangeiros e por isso, necessariamente informadas pela agenda política em vigor. Limitam-se geralmente a fomentar a utilização das suas línguas noutros países e continentes e a apoiar a divulgação dos seus produtos culturais nacionais. Em alguns destes institutos já começa a existir uma visão mais ampla das suas funções e uma vontade de apoiar o intercâmbio artístico de maneira mais desinteressada, mas ainda estamos longe de uma política cultural internacional equilibrada. Talvez seja possível criar uma plataforma mais imparcial ao nível da União Europeia? Ou será que a UNESCO pode vir a desempenhar um papel mais dinamizador, par além da preservação do patrimônio?

O problema é agravado pela inexistência de políticas culturais na maioria dos países do chamado terceiro mundo. A cultura é tida como um bem supérfluo e a política cultural muitas vezes reduzida a uma caricatura. Nos poucos casos onde se faz um esforço para desenvolver estratégias e políticas culturais, estas fecham-se geralmente num conservadorismo constrangedor. A conservação de tradições e do património cultural é levado ao ponto de sufocar a criação contemporânea. O que levou o meu colega moçambicano Panaibra Gabriel numa conferência internacional organizado pelo Danças na Cidade em 1999 a queixar-se: “ÿfrica não precisa de importar cultura, porque tem uma cultura própria. O que ÿfrica precisa é de atualizar a sua cultura. Não a deixar perder-se no espaço e no tempo. Não a referenciar apenas ao passado. É importante começarmos a olhar para nós como presente. Hoje as formas políticas e a realidade social são outras. Existem novas formas de convivência. É necessário criar coisas novas. Se ÿfrica continua a ser um espelho do passado, os artistas da nossa geração correm o risco de abandonar o palco sem deixar a sua história para as gerações vindouras” (Práticas de Interculturalismo, Danças na Cidade, Lisboa, 2001, p.52).

À luz da falta de políticas culturais adequadas, a iniciativa está claramente nas mãos das organizações independentes, não-governamentais. São os próprios artistas e organizações culturais que têm que deixar a auto-suficiência e infletir as políticas de inspiração neocolonial dos governos do Norte. São os artistas e agentes culturais que têm que romper o isolamento e ultrapassar o imobilismo dos governos do Sul. Lentamente, está a crescer a consciência nos meios artísticos de que o mundo é, e sempre tem sido, um lugar multicultural, em que várias culturas e civilizações estão continuamente a produzir inumeráveis produtos culturais e criações artísticas. Começamos a reconhecer que os desequilíbrios econômicos que governam o mundo também deixam marcas profundas nas práticas culturais e que a fraca presença de produtos artísticos do Sul no mercado cultural internacional tem mais a ver com o poder econômico e o ostracismo do Norte do que com uma falta de qualidade.

Na nossa própria prática, tudo começa de uma maneira muito simples. Na primavera de 1997, Mano Preto e Zezinho Semedo da companhia de dança cabo-verdiana Raiz di Polon, vêm ter conosco com uma proposta de colaboração que inclui formação, co-produção e a organização de um festival de dança internacional em Cabo Verde. O nome do projeto: “Dançar o que é Nosso”. A proposta do Raiz di Polon surge na hora certa. Poucos meses antes tínhamos organizado a quarta edição do festival Danças na Cidade, o primeiro a ser um festival internacional de dança contemporânea e não apenas um acontecimento a nível nacional. Na avaliação pós-festival destaca-se uma questão central: como podemos chamar o nosso evento um festival internacional de dança, enquanto os nossos contatos e colaborações internacionais se fazem quase exclusivamente com artistas e organizadores do mundo ocidental? Se queremos fazer do nosso festival um lugar de encontro e intercâmbio onde se possam confrontar idéias e partilhar experiências, como podemos deixar de lado a maior parte do mundo?

Por onde começar? O nosso conhecimento é quase nulo e a falta de informação obriga-nos, logo à partida, a tomar uma decisão necessária, mas com a qual nos sentimos algo desconfortáveis. É preciso encontrar um ângulo de entrada para iniciar a nossa investigação. O convite do Raiz di Polon e os laços históricos e culturais de Portugal, levam-nos a optar para começar o projeto com alguns países da Lusofonia: Cabo Verde, Brasil, Moçambique. A opção levanta uma questão inquietante: não estaríamos desde logo a compactar com um dos mais poderosos mecanismos da política neocolonial? Na nossa primeira estadia em Moçambique são vários os artistas e agentes culturais que nos alertam para as implicações duvidosas da palavra “Lusofonia”. Lusofonia, Francofonia, Anglofonia, os prefixos dirijam o olhar: do Norte para o Sul. Um Norte que tenta manter blocos linguísticos e entidades políticas criados pelo colonialismo. Um Sul que se vê dividido pelo olhar do Norte.

Razões práticas, mas sobretudo a curiosidade de conhecer melhor as terras das quais tanta gente viva na nossa cidade, cuja música soa nas discotecas e bares das noites lisboetas, cujas imagens conhecemos das notícias e telenovelas, levam-nos a aceitar a opção lusófona. Num dos primeiros textos sobre o projeto Dançar o Que é Nosso escrevemos: “Encaramos a Lusofonia não como uma realidade fechada sobre si própria, mas uma comunidade aberta à colaboração com o resto do mundo”.

As ambições do Raiz di Polon são grandes, as expectativas exageradas. Em conjunto, decidimos começar pela formação, uma opção que será, um ano mais tarde, também tomada em Moçambique. Mas qual a formação a oferecer aos coreógrafos, bailarinos e agentes culturais africanos? A separação entre ricos e pobres esconde uma outra desigualdade cada vez mais importante e profunda: entre os que têm acesso a informação e os que não têm. Ao querer passar informação, vemo-nos logo confrontado com o problema da seleção. Quem vai ensinar? Que tipo de dança? Que estilo de movimento? O que é mais urgente, mais necessário? O que traz mais benefícios aos bailarinos africanos? O problema não é tanto a necessidade em si de ter que escolher – a definição de objetivos e estratégias faz parte de qualquer empreendimento profissional – mas antes a questão quem decida.

Há dois anos atrás, tive acesso a alguns relatórios de professores de dança americanos que ensinaram a dança contemporânea na Europa no fim dos anos 70. Curiosamente, o conteúdo dos relatórios é quase igual aos relatórios dos coreógrafos que convidamos para ensinar em Cabo Verde e Moçambique no âmbito do Dançar o Que é Nosso. Falam da falta de uma prática diária, de problemas de coordenação, lapsos de concentração, limitações em ler o espaço envolvente, o fraco conhecimento da anatomia e o subsequente risco de lesões,… Até queixas de falta de pontualidade aparecem nos dois casos! Mas louvam igualmente o empenho, a curiosidade, a abertura e a grande vontade de aprender. Também na Europa a dança contemporânea foi importada do estrangeiro, mas há uma diferença fundamental. Nos anos 70 e 80 foram os próprios europeus, que tomaram as opções e decidiram quem convidar e quem não. Iam a Nova Iorque para se informar e para estudar e trouxeram para Europa o que lhes interessava.

Com os nossos parceiros africanos encontramo-nos numa situação radicalmente diferente. Têm apenas uma vaga noção de que exista uma dança moderna, que é diferente da dança tradicional, e que circula num mercado cultural internacional. Quando falamos com os jovens bailarinos e coreógrafos que encontramos em Moçambique, o pedido é sempre o mesmo: “Queremos que nos ensinem passos e movimentos modernos para incorporar nas nossas danças. Assim, poderemos tornar a nossa arte mais contemporânea”. Tentamos explicar que a dança contemporânea não é uma questão de certos passos e movimentos, mas antes uma maneira de encarar a criação artística. Abanam a cabeça, mas vejo que não compreendem. Não têm os meios para viajar e conhecer a dança que gostavam de compreender melhor, os espectáculos não passam nas suas cidades, o ensino artístico é não existente ou muito fraco. Encontramo-nos mais uma vez na desigualdade. Seremos nós a decidir quem vai ensinar e qual a informação a passar. É uma situação infeliz, mas não há alternativas. Pouco depois, escrevo numa publicação: “Os primeiros passos são naturalmente um bocado maljeitosos, mas se não nos mexermos, nada irá mudar. Somos nós – e não eles – que têm os meios para começar a eliminar o fosso. (…) Acreditamos que, tendo oportunidade e tempo, os artistas africanos de dança tornar-se-ão uma voz reconhecida e fonte de inspiração para toda a dança contemporânea”.

O problema torna-se especialmente agudo, porque se trata de um encontro de duas culturas extremamente diferentes. Porquê introduzir a dança contemporânea em países com uma tradição de dança tão forte, tão impressionante, tão vivida? Porquê, como em qualquer lugar do mundo, os jovens estão curiosos e interessados. Querem conhecer outros horizontes, sair do isolamento, saber de novas oportunidades. Ou, como diz o Panaibra, porque querem desenvolver instrumentos para falar sobre o mundo complexo em que vivem, porque as danças que foram criadas nas aldeias do interior já não conseguem transmitir opiniões sobre a vida no metrópole, sobre a droga, a violência, a exclusão social, sobre o que se vê na televisão. David Abílio, o diretor da Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique, dá uma outra razão: “Penso que nós no Sul conhecemos melhor o Norte, mas também de uma forma errada. Conhecemo-lo através da Coca-Cola, que chega aos sítios mais recônditos da ÿfrica, através de Michael Jackson e através dos filmes americanos, mas esse não é o Norte que importa conhecer realmente. No Sul estamos com medo porque pensamos que a globalização é feita numa perspectiva: o Norte é o centro, o Sul a periferia a “globalizar”. Temos medo de sermos “globalizados” antes mesmo de nos revelarmos como uma sociedade e cultura contemporânea próprias.” (Práticas de Interculturalismo, Lisboa 2001, p. 108).

Das conversas que temos com os nossos parceiros em Cabo Verde e Moçambique resulta um formato de residências. Uma ou duas vezes por ano um pequeno grupo de coreógrafos – europeus, brasileiros, africanos –reside por duas ou três semanas no país para trabalhar com a comunidade de dança local. Nos cinco anos de residências diversificamos a oferta, com o objetivo de informar sobre um leque de possibilidades e estilos. Entre 1998 e 2003, têm lugar nove residências de formação em Cabo Verde e quatro em Moçambique. Mais de cinquenta coreógrafos e profissionais de dança internacionalmente reconhecidos passam a dar aulas a centenas de jovens bailarinos cabo-verdianos e moçambicanos.

O que pedimos aos professores é estimular o desenvolvimento de uma prática criativa na área da dança, não através do ensino de técnicas e estilos de dança de origem euro-americana, mas pela aplicação de ferramentas básicas, desenhadas para estimular a utilização criativa de um vocabulário de dança pessoal e baseada na cultura própria: a conscientização do corpo e o alargamento das suas capacidades, o domínio do espaço e do tempo, a aprendizagem de métodos de composição coreográfica, a estimulação do trabalho criativo individual.

Entretanto vamos experimentando com outros formatos. O projeto Alma Txina, realizado em 2002, por exemplo, junta à residência um projeto de criação, em que cinco coreógrafos oriundos da escola de dança PARTS em Bruxelas, ficam mais seis semanas em Maputo para criar cinco coreografias com um pequeno grupo seleccionado dos oitenta bailarinos que participaram nos workshops da residência, dando-lhes a oportunidade de passar por um processo de criação, desde a idéia inicial, até à apresentação pública. Depois da estréia em Maputo, Alma Txina será ainda apresentada em vários teatros portugueses, na Bélgica, na Alemanha e na Suíça.

Um outro projeto de formação nasce da necessidade de ir mais longe com os bailarinos e coreógrafos mais talentosos. De Novembro 2003 a Maio 2004, a organização CulturArte organiza com o nosso apoio o 1º Estágio de Desenvolvimento Coreográfico de Maputo, uma formação de seis meses para um grupo de 15 bailarinos, selecionados numa audição aberta das várias companhias independentes da cidade. O programa desta formação é desenvolvido num seminário internacional realizado no início de 2003 com coreógrafos e profissionais do ensino de dança da ÿfrica e da Europa: Seydou Boro (coreógrafo da companhia Salia ni Seydou, Burkina Faso), Faustin Linyekula (coreógrafo e diretor dos Studios Bamako, RD Congo), Panaibra Gabriel (coreógrafo e diretor da CulturArte, Moçambique), Maria Helena Pinto (coreógrafa na Companhia Nacional de Canto e Dança de Moçambique), Boyzie Cekwana (coreógrafo e Professor de dança, ÿfrica do Sul), Theo Van Rompay (diretor da escola de dança PARTS, Bélgica), Elizabeth Corbett (professora na PARTS, EUA/Bélgica), Nganti Towo (coreógrafa, professora de dança e diretora do festival Kaay Fecc, Senegal), Thomas Hauert (coreógrafo, Suíça), Carina Timas (produtora da companhia de dança Raiz di Polon, Cabo Verde), Catarina Saraiva (produtora de Danças na Cidade, Portugal) e eu próprio. Já no terreno, o programa intensivo é orientado por professores de dança que residam durante cinco a sete semanas em Maputo, de modo a poder transmitir conhecimentos mais aprofundados: Boyzie Cekwana e Desire Davids (ÿfrica do Sul), David Zambrano (Venezuela/Holanda), Mat Voorter (Holanda), Francisco Camacho (Portugal) e Faustin Linyekula (CDCongo). Nas minhas visitas a Moçambique percebo que é o caminho certo: os quinze bailarinos que fazem o curso estão extremamente empenhados e continuam a trabalhar e experimentar mesmo fora dos períodos das aulas, o progresso de cada um é impressionante e a oportunidade de estudar com excelentes artistas e professores durante seis meses cria o senso de seriedade e responsabilidade que é a chave para atingir um desenvolvimento sustentado. Estes jovens – tenho a certeza disso – formarão o núcleo duro da futura dança contemporânea moçambicana.

Durante os anos que estamos a trabalhar com os nossos parceiros em Cabo Verde e Moçambique, cresce a convicção de que o desenvolvimento da dança contemporânea em ÿfrica só pode vir da ÿfrica, e, mais precisamente dos esforços conscientes dos bailarinos africanos para desenvolver as suas danças e criar conteúdos pessoais. O modo como a companhia Raiz di Polon vai mudando a sua visão sobre a criação é um exemplo. Um espetáculo deles normalmente consistia numa série de danças tradicionais ligadas por uma narrativa simples e adaptadas à perspectiva do palco. Nas suas criações mais recentes, Pêtu, CV Matrix 25, Duas sem três ou Ruínas, há uma liberdade muito maior do artista/autor para seleccionar material e transformá-lo num espectáculo. Ainda usam muito a dança e a música tradicional, mas não têm medo de fazer experiências com elas e moldar os seus contornos rígidos às suas necessidades e conceitos artísticos – e o resultado é convincente porque é honesto e autêntico.

O sucesso notável do Raiz di Polon nos palcos internacionais tem tudo a ver com esta autenticidade e com a indiscutível qualidade do trabalho, mas é também resultado de um esforço contínuo em termos de produção. De 1999 a 2003, Danças na Cidade co-produz anualmente uma nova criação do grupo, arranjando também outros co-produtores internacionais. Já não há falta de interesse na dança contemporânea africana por parte dos programadores europeus, mas há pouca informação, pouca oferta e sobretudo uma grande falta de paciência para investir no futuro. Para Raiz di Polon estas co-produções são passos importantes não só artisticamente, mas também politicamente. Pela primeira vez podem viver da sua profissão em Cabo Verde, embora ainda com muitas dificuldades e privações, e a sua presença nos palcos internacionais traz-lhes um grande reconhecimento no seu próprio país, que, neste ano, se vai converter pela primeira vez num apoio pequeno, mas real, por parte do governo cabo-verdiano!

A história de Raiz di Polon é uma história de sucesso, que, muito rapidamente, começa a revelar o seu lado negro: a criação de uma dependência quase total do mercado europeu. Neste momento, e provavelmente por muitos anos a vir, quase todas as companhias de dança africanas estão condenadas a passar uma boa parte do seu tempo na Europa, de tal modo estão dependentes de contratos e digressões européias para assegurar a sua sobrevivência artística e econômica. As conseqüências negativas são várias, desde a sensação de distanciamento do seu meio ambiente e da sua própria cultura, até ao famoso brain drain: a absorção dos maiores talentos dos países do terceiro mundo pelo mercado europeu, deixando os países de origem apenas mais pobres do que antes. Menos tangível, mas por isso não menos relevante, é a seguinte questão: se os artistas africanos dependem do mercado europeu, será que o seu trabalho se pode manter intacto perante, mais uma vez, o olhar decisivo do Norte?

Estas questões levam-nos a um último tema importante: nada terá valido a pena se não houver progressos estruturais e desenvolvimento sustentável. Estes passam pelo reforço de capacidades profissionais, a criação de bases de financiamento, a disponibilidade de infra-estruturas e a consciencialização dos governos locais da relevância de uma política cultural. São processos complexos e lentos que dependem sobretudo da perseverança dos artistas e agentes culturais africanos.

Na questão das infra-estruturas, conseguimos apoiar os nossos parceiros na sua luta para obter um espaço de trabalho. Raiz di Polon, depois de passar anos na Casa Padja, que se vai desmoronando até a um nível intolerável por falta de investimentos de manutenção, tem agora acesso ao Auditório Nacional para os seus ensaios e espectáculos. Continua com esperanças de que um dia possam voltar à sua Casa Padja, renovada e adaptada à prática da dança. Em 2003, a CulturArte consegue abrir um pequeno Centro de Artes independente, com escritórios, um espaço de reuniões, cibercafé e o único estúdio de dança da cidade com um chão adequado para a dança. Rapidamente o centro torna-se o lugar de encontro das companhias independentes de Maputo.

Para reforçar as capacidades profissionais, organizamos, para além dos cursos de dança, workshops de produção e gestão de atividades culturais. Várias pessoas passam a fazer estágio na nossa organização em Lisboa e à medida que o projeto Dançar o Que é Nosso vai avançando a nossa função desloca-se da própria organização ou co-organização dos projetos em Cabo Verde e Moçambique para o aconselhamento e o acompanhamento.

Para colmatar o problema da falta de informação, decidimos, desde o início, convidar artistas e agentes culturais africanos para virem a Lisboa e conhecerem a realidade artística européia. Todos os anos organizamos um ou dois Encontros Internacionais. Podem ser encontros de produtores e programadores, no contexto de uma conferência ou de um seminário, organizado, de preferência, durante o nosso festival, para dar a oportunidade aos convidados de seguir a programação do festival e ver uma selecção internacional de espectáculos de dança contemporânea (oportunidade que raramente têm). A conferência internacional de 1999 sobre interculturalismo e os seminários euro-africanos de 2002 e 2003 ajudam a criar uma dinâmica de intercâmbio, que depois terá seguimento nas conferências de Bruxelas, Birmingham, Yaoundé e Joanesburgo, patrocinadas pela rede IETM (Informal European Theatre Meeting) e nas publicações eletrônicas Crossroads I e II, editadas por IETM, Africalia e Danças na Cidade e disponíveis nas páginas www.ietm.org e www.dancasnacidade.pt.

Os Encontros podem também ser encontros de artistas, como foi o caso em 1998, 2000, 2001 e 2003. Nestes eventos, juntamos entre 30 e 50 bailarinos e coreógrafos para viverem e trabalharem durante três semanas ou um mês em Lisboa. São momentos de intercâmbio intenso, com workshops, debates, troca de experiências e apresentações informais: um laboratório artístico multicultural. O primeiro Encontro de 1999 ainda é um evento exclusivamente lusófono e junta bailarinos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Portugal. No 7º Encontro, que tem lugar no mês de Agosto de 2003, participam 51 bailarinos, coreógrafos e teóricos de dança de 21 países diferentes: ÿfrica do Sul, ÿustria, Bélgica, Brasil, Burkina Faso, Cabo Verde, Cuba, Egipto, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, Indonésia, Líbano, Madagáscar, Marrocos, Moçambique, Portugal, República Checa e Tunísia. No fim deste evento memorável, a jovem artista Danya Hammoud de Beirute escreve: “O Encontro abriu portas, modos de lidar com o que temos e com o que poderemos ter.”

* Mark Deputter é diretor da Associação Cultural Danças na Cidade e do projeto Dançar o que é nosso, de integração cultural dos países de língua portuguesa.