Ir para trás, avançar – re-coreografar o sentido do tempo

Quando ficou contundente o tipo de movimento, estava vendo uma menina, pequena, cabelos esvoaçantes, que serelepe, jogava no vazio do vento um objeto, que ia e voltava… ela tornava a pegar e lançar e a coisa ir e voltar. A experiência se dava nesse engajamento do corpo, num avançar brincante pelos retornos do objeto e do corpo ao objeto. É claro que esse indo pra trás para avançar pode ganhar sentidos diferentes. Em outra cena de Laje do Céu, vídeo-dança de Leonardo França, lançado nesse ano em Salvador, um carro segue adiante na rua, ao passo que, a imagem em close, dá a ver um pedaço da janela e o retrovisor esquerdo do carro. O que produz um misto do ver: ir para a frente com foco no que, pelo retrovisor, vai se evidenciando da rua que vai ficando para trás. Esse avançar no retorno já era um atravessante vivido desde o processo de criação em que, Leonardo França junto com o vídeo-maker e amigo Gabriel Teixeira, vão a uma cidade significativa da infância e da família do coreógrafo para co-habitarem com as pessoas e o relevo, desde onde vão surgindo imagens dançadas. No retorno de uma biografia, abdica-se de uma narrativa do “eu” ainda que se faça uma operação de si mesmo e em si : avançar no retorno.

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Nessa abdicação, o que se dá a ver é um dizer sobre um modo de existir para além de si, num tempo presente; e daí a cascata rola:

 

 

A pesquisadora e crítica em Dança, Helena Katz, que por muitos anos ensinou História da Dança, inclusive como formação de artistas em muitos festivais brasileiros, na última década esteve sobretudo imbuída das pesquisas sobre Corpo e Cultura, considerando os nexos inseparáveis entre pensamento e movimento. Numa curva, Helena Katz, no Centro de Estudos em Dança (CED), nesse ano, volta a se implicar com a História da Dança; não a já escrita, mas a pesquisa sobre que modos seriam apropriados ao contar a História da Dança numa abordagem sintonizada aos tempos de hoje. Katz vai avançando, indo pra trás.

 

Marta Soares, artista da dança de São Paulo, na sua última pesquisa, cria uma instalação coreográfica chamada Vestígios. O percurso feito foi de imersão literal em escavações de cemitérios indígenas, no sul do país, chamados Sambaquis. Dos achados de ossos soterrados à paisagem lenta e sossegada, de horizonte alargado, Soares replica na instalação uma mesa com um monte de areia, tal como um Sambaqui mostrado em telões com projeção dessa paisagem horizontal e de tempo suspenso na dilatação. O que se passa é que um ventilador numa ponta da mesa vai soprando o monte de areia, de onde paulatinamente vai-se revelando um corpo desde aí soterrado.  Esse passado, que a artista escava é talvez a mais radical temporalidade, aquela que atravessa uma volta de si, do conhecido, atingindo gerações; uma ancestralidade movida pela condição do mistério, de um tempo que é do “além”, além de uma vida, além de um aqui-agora, lá onde repousa o mistério da morte, onde o corpo é um resto que confirma a existência do que não se sabe e nunca se saberá inteiro.

 

Há dois anos, numa de suas conferências no Rumos Dança 2009/2010, o também pesquisador e crítico em Dança, André Lepecki, chamou a atenção para o trabalho que o americano Richard Move vinha fazendo ao reconstituir performances fiéis da já falecida coreógrafa e bailarina americana Martha Graham, ícone da modern dance. Sem ironia ou sátira evidente, a intenção parecia realmente re-encarnar – o que Lepecki chamara Reenactment; numa busca pela [quase] cópia fiel, atualizando o vivido, numa ressureição inusitada, a partir de um tipo de travestismo coreográfico fiel à personalidade histórica, despindo-se de qualquer cacoete de travesti, para ressuscitar [o valor de] Graham reinventado-a intimamente. O quase da fidelidade faz da volta da cópia, um avanço.

 

Novo, imediato, temporário: ditaduras cotidianamente vividas num tempo de hoje ganha perfurações em loopings como esses, de onde o redimensionamento da relação com o passado enquanto valor não só de patrimônio dado, mas ainda, de produção, de vivacidade, trás para o campo das relevâncias a questão da volta enquanto a possibilidade do avanço. Gera-se alternativas ao regime perceptivo tão empoeirado pelas imposições dos signos de vanguardismo assoprados pela maquinação do progresso como salvação. Já se pode evidenciar algumas convocações a apontarem para uma dimensão de um tempo maior, desse algo além, o que pluraliza as formas de existir diante das verdades aprisionantes do imediatismo e da eloquência da fulgacidade. Redescobre-se o velho, o sábio, o mestre, o sagrado e retoma-se o horizonte como produtor de sentido:

… no ou no ou on no ou on no ou on nu ou  …

 

 

 

Eduardo Rosa, além de colunista desse site, é, em Dança, educador [Escola de Dança da Funceb] e artista [integrante-fundador do Col. Construções Compartilhadas]. Doutorando em Artes Cênicas (PPGAC-UFBA).