João Fiadeiro, Fernanda Eugênio AND questões operativas

O coreógrafo e pesquisador João Fiadeiro é um dos criadores do AND_Lab, centro de referência na dança contemporânea mundial localizado em Lisboa, onde desenvolve atividades focadas em pesquisas de estratégias de criação em tempo real. Interessa-se mais pelos processos de criação do que pelos produtos artísticos si. Nos últimos tempos, tem percorrido várias cidades brasileiras, em encontros disputados por coreógrafos, bailarinos e pesquisadores.

Em suas falas, ele destaca que o processo de pesquisa é a relação com o campo real, com o acontecimento, que é muito difícil de representar. Destaca que “a representação, numa lógica da indústria criativa, não favorece ao encontro. A representação cria a impossibilidade da relação”.

Para romper com alguns procedimentos recorrentes, na organização de jogos e situações de criação, Fiadeiro se distancia cada vez mais da ideia de espetáculo. Nesse sentido, destaca que o campo da criação permite que se tenha…

“… a arte como plataforma para pensar o mundo. A pesquisa através da arte permite uma elasticidade de espaços que nos possibilitam o manuseamento dos sentidos. A dedicação aos processos abre portas a um conjunto de ciências e áreas da sociedade que não se encontram num produto, num espetáculo.”

Em seu método de composição em tempo real, Fiadeiro inova ao organizar e reorganizar possibilidades de ação no linóleo, no palco, na vida.  É que cada equação exige um ato de decisão específico e isso “depende de um processamento de estímulos até a obtenção do gesto. Existe, portanto, um deelay. Cada relação tem seu próprio tempo.”.

Assim, é sintomático que o criador divida a palavra composição (com-posição) ao descrever como nomina uma parte de seu processo de trabalho. O termo sugere etapas de ação e, claro, atitudes relacionais: com o outro, com o meio, com as questões que se colocam no processo. Na ação, isso significa condições iniciais, decisões, relações. A imagem do tabuleiro de xadrez é recorrente: pede olhar atento, estratégias de ação, correlações.

“Isso depende muito da capacidade de relacionarmos as relações. São práticas de relação das relações e não de posições. O paradigma do modo de relacionamento processual  favorece a outro tipo de relação que emerge, não é um poder vertical, nem horizontal”, descreve ele, cujo trabalho no AND_Lab é feito em parceria com a antropóloga brasileira Fernanda Eugênio.

“No processo de criação do AND_Lab, a resposta a qualquer questão é sempre uma outra questão.” Ou seja: “no processo de criação do AND_Lab, a questão vem sempre depois da resposta”. Afinal, trabalha-se sempre com instabilidades provisórias. Nessas equações, entram as ciências de sistemas complexos, que abordam a teoria do caos, a neurociência, a neurobiologia, a antropologia. A busca é pelos fractais, não os fragmentos. Nessa equação de referências e recursos, Fiadeiro problematiza as estruturas de poder.

“Há qualquer coisa de perverso que o pós-modernismo gera que, embora ambicione e promova uma maior horizontalidade nas relações, na verdade não permite os encontros. No AND_Lab, o discurso e prática que propomos é o de uma solução metaestável. Não existe nem o futuro fixo do modernismo nem o futuro incerto do pós-modernismo”, diz Fiadeiro.

O pesquisador que integra a chamada Nova Dança portuguesa, com nomes como Vera Mantero e Francisco Camacho, defende que “o paradigma sobre o modo de relacionamentos pressupõe uma ética da suficiência, que cria condições para que o processo se encontre a partir do acontecimento e não do sujeito”.

Assim, aposta num tipo de relação entre intérpretes e pesquisadores onde “o que emerge é o resultado de uma relação reciproca, e não de uma relação simétrica ou complementar:  nem horizontal, nem vertical, a relação está no metaestável”.

“Mesmo quando era uma prática ligada à teoria da dramaturgia, tinha em vista uma teoria sobre a prática do cotidiano, sobre a vida” diz ele, referindo-se a uma transformação em sua forma de trabalhar. Parou de coreografar em 2008, mas é cada vez mais quisto por estes, inquietos pelos rumos da criação coreográfica contemporânea.

“Nos anos 1980, Fiadeiro trabalhou com Rui Horta tendo depois, nos anos 1990, sido muito influenciado pela dança de Trisha Brown e o movimento do Judson Dance Theater, assim como Wanderkeybus e a Nova Dança Belga em geral, derivando, já nos anos 2000, para uma assinatura processual própria. Está disposto aos encontros. Foi assim o seu com Fernanda Eugênio, antropóloga brasileira, numa Bienal do Ceará, em 2009.”

O método etnográfico de Fernanda é um método da relação arte e vida. “Esta questão está em todo lugar, seria um desperdício não contemplá-la. O que temos construído é um lugar de referência para voltar, para continuar um trabalho”, sugere Fiadeiro, armando a instabilidade conceitual, anunciando outra operação dessa com-posição.

Na entrevista que segue, a antropóloga Fernanda Eugênio explana questões em torno do método de pesquisa do AND_Lab, além de teorizar sobre as aproximações entre dança e antropologia, ética e estética.

Como o teu método etnográfico é instrumento dos processos experimentados por vocês?

 Fernanda Eugênio: Enquanto procedimento, a etnografia é eminentemente relacional: é um encontro, uma negociação presencial e “impura” que se dá no plano da convivência continuada e imersiva, um movimento de  disponibilização ao outro como “acidente” e de invenção recíproca processual. Se levarmos a sério essa dimensão de produção coletiva, a etnografia é ato performativo: ela não deixará de ser um instrumento potente para pensar o encontro, mas é fundamentalmente um instrumento para viver o encontro de modo presente, atento e presentativo (e não representativo). É um instrumento que permite produzir com clareza a indissociabilidade entre pensar e fazer. É aí que a etnografia que eu pratico funciona como ferramenta para a investigação conjunta que eu e João fazemos no AND_Lab em torno de duas inquietações comuns (“como viver juntos?” e “como não ter uma ideia?”), toda ela focada no procedimento etnográfico do “re-parar”, que para nós se dá na sua tripla modulação de voltar a parar, notar e consertar-concertar.

A primeira modulação – voltar a parar – é aquela que permite gerar a disponibilidade ao encontro propriamente dita, pois com muita frequência aquilo que sabemos ou achamos nos impede de encontrar. O saber/achar funciona por mobilização infinita e tende a atropelar os encontros com seu imediatismo, e com isso não permite acionar um trabalho de com-posição que inclua o outro e privilegie o acontecimento, e não a opinião que temos ou geramos sobre ele. Por isso o nosso primeiro trabalho incide sobre esse momento que às vezes é chamado de “pré-ação”, no qual é possível negociar conosco mesmo um outro percurso para o movimento que vamos oferecer ao mundo: e isso só é possível se re-paramos, paramos novamente, suspendendo a mobilização infinita automatizada do saber/achar.

A segunda modulação, a do “reparar” enquanto “notar”, torna-se então possível. E ela ativa, no lugar da mobilização infinita do saber/achar, uma mobilização ilimitada: a do encontrar. Esse movimento pode ser descrito de muitas maneiras: é um trabalho de fractalização da matéria do encontro, ou seja, de interromper a tendência a dar sentido-significado àquilo que se apresenta, e passar a etnografar o sentido-direção para o qual o encontro tende. Ativando o movimento etnográfico do reparar, portanto, é possível trabalhar na faixa de frequência das inclinações, e não das intenções.

Por fim, a terceira modulação etnográfica do “reparar” enquanto ato de “consertar-concertar” é o instrumento que nos permite trabalhar pela dimensão duracional da com-posição.  É muito frequente que as composições caminhem na direção do descarte e do desperdício, mas se ativamos uma postura de reparação e de “conserto” podemos conjurar esse “hábito do descarte”, tão presente no mundo contemporâneo, e trabalhar pela contínua reabilitação para o uso do próprio encontro. E este “conserto” do encontro não só convoca todos os envolvidos na com-posição a se responsabilizarem pelo manuseamento continuado do “entre-nós”, como permite que continuemos juntos na duração de modo vital. Ou seja, ao tomarmos a responsabilidade pelo “conserto” continuado do acontecimento comum, entramos em “concerto”, sem a necessidade de um líder/maestro que “coreografe” a com-posição.

Assim, resumidamente, a etnografia funciona como uma potente ferramenta para ativar o “re-parar” nessa tripla modulação que falei, e esse procedimento, por sua vez, permite que a com-posição emerja pela via do manuseamento e não da manipulação.

Qual a relação operativa entre antropologia e dança?

 FE: O ponto de encontro entre a antropologia e a dança é a singular sensibilidade à relação que ambas partilham de modo fundador, e que lhes confere uma espécie de “impossibilidade congênita” de pacificarem de modo definitivo a questão do encontro, do entorno e da alteridade. Por um lado – e por operarem de modo “fundador” na impureza relacional, a antropologia e a dança são dois campos de saber-fazer que nunca se encaixaram por completo no projeto Ocidental mais amplo de produção de certezas. Por outro lado, ao longo das suas fases modernas e pós-modernas, ambos os campos tenderam a organizar este “lugar deslocado” como voz de resistência, deixando diversas vezes escapar a precisão com que poderiam inventar-se enquanto um potente “Fora”, capaz de operar, para além de um continuado loop no continuum resistência-desistência, como plano de re-existência.

Esta percepção espalha-se hoje de um modo cada vez mais agudo, e vêm-se desdobrando em consequência da crítica – cada vez mais onipresente – do privilégio da ontologia e da representação na partilha moderna do sensível. Tal primado funcionou, no pensamento antropológico, como argumento tanto das abordagens universalistas como das abordagens relativistas e interpretativas; e, na dança, sustentou tanto as estéticas modernas (o ballet clássico e a dança moderna) como as danças pós-modernas (o contato-improvisação ou as coreografias de autor).

Tanto a antropologia como a dança habitam atualmente uma clara exaustão em seguir funcionando como lugares de mera resistência à cinética moderna da conquista da verdade. Este limite tem levado os dois campos, por caminhos variados mais sutilmente afinados, a interrogar-se sobre a suficiência das práticas modernas e pós-modernas em efetivar a colaboração criativa e a convivência. E é este potente estado de “duvidação” das próprias práticas que faz da antropologia e da dança contemporâneas, perspectivas privilegiadas para pensar e operacionalizar ferramentas conceptuais e práticas mais precisas para visibilizar uma “ética do comum”, investigar formas de criatividade já não assentes na identidade radical do autor ou do artista, e lidar francamente com a questão do “viver juntos” – inquietações que vêm afetando tanto o plano teórico, metodológico e analítico das ciências sociais como a reflexão e a operacionalização da criação artística.

Como a forma de investigar de João Fiadeiro se complementa com as suas questões investigativas? Como um pesquisador se complementa a partier das questões do outro e vice-versa?

FE: A topografia das inquietações  “como viver juntos?” e “como não ter uma ideia?”, que movem todo o projeto do AND_Lab, emerge do encontro entre os nossos (meu e do João) modos de “fazer problema”, ou seja, das relações-tensão com a antropologia e com a dança que marcaram de modo correlato tanto a minha trajetória como a do João.

A força do nosso encontro está justamente nessa descoberta recíproca de que nós já vínhamos há anos, nas nossas respectivas “áreas”, partilhando uma mesma paisagem de inquietações acerca do problema da representação e da interpretação, assim como vínhamos habitando o atravessamento da paragem com a lógica do produto. Uma paragem que, entretanto, nada tinha que ver com renúncia, mas sim com uma permanência no processo. Parar para reparar no intervalo da relação e do encontro: trabalho pela apresentação em detrimento da representação, pelo encaixe em detrimento do espetacular, pelo sentido-direção em detrimento do sentido-significado.

No meu caso, a “crise” que me moveu a experimentar os procedimentos etnográficos fora do aparato institucional do mundo acadêmico tinha a ver com a “despotencialização” que eu via acontecer quando os discursos antropológicos se deixavam capturar pela “interpretose” analítica.

Ou seja, o que percebi foi que a antropologia, apesar de ter se estabelecido no pensamento ocidental moderno como um contradiscurso de resistência que criticou duramente  o cientificismo objetivista e universalista dominante, tinha, sem notar, incorrido com o seu “relativismo cultural” no mesmo pressuposto do Ser e da representação: o exercício interpretativista de “ler o significado” das experiências vividas reconduzia, ele próprio, à restauração do que se julgava superar. Por um lado, a neutralização da concretude da vivência etnográfica se encarregava de reproduzir, no texto, o efeito explicativo e a coesão da representação. Por outro lado, o protagonismo do investigador e o recrudescimento da função-autor se encarregavam de reconduzir o Outro à posição de objeto.

A sensação de que a resistência tinha antes a ver com um movimento resiliente do que com um movimento “crítico”, “opinativo” ou com uma tarefa hermenêutica, foi o que me levou a me aproximar lentamente das artes performativas e a repensar-repraticar o trabalho da resistência como re-existência. Com isso – e mais fortemente apartir do momento em que passei a colaborar com o João – encontrei um plano no qual era possível experimentar a etnografia como processo continuado, e não como meio para chegar a um produto (uma tese sobre o Outro).

Liberada da “obrigação acadêmica” de conduzir a etnografia a um diagnóstico, a pergunta que então se colocou para mim foi: será possível tornar a etnografia um método que possa levar à sério as suas próprias potencialidades, muito mais ligadas a uma capacidade para se disponibilizar ao acidente e lidar com as consequências circunstanciais do encontro, do que vocacionada a estabelecer causas, motivos e razões para os modos de vida?

O formular dessa questão primeiro se desdobrou numa investigação dos usos da etnografia e das modulações paragem-deambulação como ferramentas para a criação site-specific de paisagens comuns e para a rematerialização do espaço urbano: nesse lugar desenvolvi vários experimentos do que chamei de Etnografia como Performance Situada.

Cerca de três anos depois, encontrei o João, em 2009, durante a Bienal de Dança do Ceará. Assim que nos conhecemos percebemos que estávamos explorando as mesmas questões. A inquietação que tinha me levado a explorar os usos da etnografia fora do quadro em que ela é (só) “o método da antropologia” era a mesma que havia levado o João a suspender a lógica da produção e da circulação de espetáculos a fim de investir no processo, na investigação e no método de Composição em Tempo Real como uma ferramenta para pensar o encontro enquanto ele acontece. Percebemos que o que precisávamos era de um lugar comum onde pudéssemos explorar a contaminação recíproca entre as nossas duas ferramentas e os nossos dois percursos: assim nasceu o projeto piloto do AND_Lab, que durou um ano, e que acabou “tomando lugar”: é agora um centro de investigação e formação, com sede em Lisboa, no qual partilhamos a ferramenta de com-posição que emergiu da mistura dos nossos dois “métodos”, e que chamamos de Modo Operativo AND.

O quanto de vida há que se investigar com a dança? Como se arranjam estas   com-posições que cruzam ética e estética?

 FE: Encontro na dança um lugar muito potente para investigar os processos vitais sem dissociar-se deles, ou seja, sem “domesticar” a própria vida a fim de compreendê-la. A matéria de trabalho da dança é a relação e o encontro, mas, diferentemente de outros campos que também tomam essa matéria para “estudo”, na dança é impossível investigar a relação de modo supostamente “puro”, nas “condições normais de temperatura e pressão” (CNTP). Essa abstração das CNTP é o que geralmente cancela a potência das investigações em outros campos, pois ao postular uma artificialidade como “pano de fundo” para o encontro, é o próprio encontro que é manipulado para caber em automatismos conceituais, é a própria precariedade do vivo que é “ajeitada” artificialmente para produzir coerência.

A pesquisa em dança, ao contrário, é capaz de instalar um “laboratório impuro”, feito de um explorar da precariedade vital do encontro sem manipular as suas condições de possibilidade – isso é “potentícissimo”, um laboratório de investigação da vida que não é diferente  da própria vida, e que permite manusear a matéria da relação sem cancelar a sua precariedade (que é também a sua vitalidade). O que, por sua vez, permite trabalhar não no plano da geração de coerência, mas na produção de consistência.

É claro que esse plano de consistência que a dança é capaz de gerar pode, ele próprio, se desativar ou se desviar. E acredito que essa desativação se dá justamente quando se separa – e isso aconteceu e acontece com muita frequência – a estética da ética. Quando isso acontece a “composição estética” fecha-se, adquire uma condição de resposta ou de pronunciamento autoral, e acaba por tomar muito mais a forma de uma “imposição” do que de uma “composição”. Não esquecer que uma “composição” justa é aquela que leva a sério o que a própria palavra “com-posição” enuncia: trata-se de um “pôr-se com” o outro e o entorno, com os fatores de situação que a cada vez tornam possível a emergência de um processo “criativo”. Mas é muito difícil ou mesmo impossível que cada posição de um “processo criativo” emirja em ato com as outras se se começa por “ter uma ideia”, por “querer fazer um trabalho sobre algo”, por “querer dizer”. No trabalho que eu e o João desenvolvemos no AND_Lab, o modo que encontramos para contornar essa estetização arbitrária tem a ver com um empenho por “não ter ideias”, por trabalhar não pela resposta mas pela pergunta. Ou seja, por não “antecipar” qualquer qualidade estética sob a forma de uma “ideia”, permitindo que ela só emirja como consequência de um procedimento ético e seja indissociável dele – e não o contrário, que faria da ética uma moral ou uma opinião e reduziria a estética a um lugar decorativo.

Do que os processos de criação em dança contemporânea se ressentem hoje? O que falta? Há fragilidades, há consistências? Onde…?

FE: Não costumo abordar nenhum processo sob a ótica “do que falta” – acho que esse movimento é ele próprio o gerador da falta que acusa. Além de pouco generosa, essa postura ativa uma “crítica pela crítica” que só esvazia as possibilidades de realmente nos depararmos com a potência do que outros modos de criação podem nos trazer. Gera distância e desresponsabilização: gera diagnóstico, e foi justamente por desacreditar no diagnóstico que me distanciei do mundo acadêmico stritu sensu. Por isso, prefiro responder a essa questão com uma pergunta situada, que, talvez, possa permitir observar a oscilação entre consistência e fragilidade, entre rigor e rigidez, que cada processo percorre ao se fazer: como os processos de criação em dança contemporânea lidam concretamente com os problemas que eles próprios corajosamente têm gerado, e que tem a ver com o questionar do que move o movimento, do que podem os corpos em relação, e do quão relacional já começa por ser cada corpo?

Como tem olhado para a produção contemporânea brasileira?

 FE: Só posso responder a essa pergunta do lugar em que me encontro hoje: estou fora do Brasil há alguns anos. Por um lado, esse “fator de situação” não me permite acompanhar a produção brasileira com a mesma regularidade de antes, e por isso não me sinto muito apta a falar a partir de uma “visão de conjunto”, ou mesmo a comentar trabalhos isolados. Por outro lado, estar distante tem ativado em mim um campo de reflexão que antes não era tão presente, e que tem a ver com uma atenção a alguns atravessamentos comuns muito vivos que perfazem uma “modulação brasileira de operar”: há um despudor muito positivo em “pôr o dedo na ferida”, há uma agudeza nisso. E também há uma injunção muito peculiar entre a seriedade e a flexibilidade, que gera um corpo muito disponível e muito ágil em se apropriar do que acontece, em trabalhar na precariedade, em fazer com o que se tem. Isso é muito potente, e é um modo de operar que, não sendo exclusivamente brasileiro (e nem sequer redutível a uma “característica cultural”), se manifesta em muito da produção contemporânea brasileira, principalmente se adotarmos um olhar mais transversal e menos setorizado, que não faça distinção entre as áreas artísticas e entre elas e outros campos de atuação. Mas, seguindo com esse mesmo olhar, há também um outro atravessamento comum “brasileiro” que às vezes produz despotencialização e tem a ver com uma tendência a recair, no equilíbrio precário entre resistência e desistência,  mais no “pólo da desistência”, por assim dizer: muitas vezes há um “esvair” na duração, um “retrair” na hora de sustentar a força gerada e de levar às últimas consequências a disponibilidade inicial… Como se houvesse uma força de invenção consequente muito grande mas (felizmente não na mesma medida) uma tendência a, às vezes, equivaler experimentação e inconsequencia e estacionar num lugar que se contenta em reiterar, que se apequena. Mas me recuso a acreditar que isso seja uma sentença. Por exemplo, no fenômeno das manifestações que emergiram por todo o Brasil nos últimos meses, encontro um “re-performar” dessas doses de resistência e desistência completamente outro, que não tende para nenhum dos dois lados, mas antes traz à superfície a hipótese de sustentar na duração o “justo meio da re-existência” – o mesmo que investigamos aqui no AND_Lab.