Laban por ele mesmo

Katia Salvany F. Alvares é artista plástica, arte-educadora, mestranda em Artes pela Escola de Comunicação e Artes/USP.

Impresso pela primeira vez em alemão, em 1935, essa versão em inglês conta com a tradução e anotações de Lisa Ullmann, colaboradora durante anos do autor Rudolf Laban. A autobiografia A Life for dance. Reminiscences (London: Macdonald & Evans LTD, 1975, 193p.) abrange o período entre 1879 a 1930, dividindo-se em três partes: Infância, juventude e início da carreira profissional , distribuídas em 11capítulos. O autor apresenta parte dos processos de transformações, concepções artísticas e os eventos que marcaram sua trajetória, elementos integrantes da construção de sua visão particular e revolucionária sobre a dança.

Nomes de familiares, colaboradores, instituições, lugares geográficos e fatos históricos raramente são citados, salvo as referências fornecidas pela tradutora. Por outro lado, um rico universo de seu imaginário se nos apresenta e percebemos uma narrativa, revestida de tons idealistas, que aos poucos se consolida com as escolhas e os difíceis caminhos que o levam à maturidade. Fato que ilustra a proposição de que “a psicologia do sujeito e sua passagem pelos ciclos da vida, marcados biológica e culturalmente, serão sempre resultados de uma configuração complexa de processos de desenvolvimento que é absolutamente singular” (Oliveira & Teixeira, 2002:45).

Um leitor desavisado, ou não conhecedor de suas bases teóricas e projeto profissional, poderá talvez não se maravilhar diante desses depoimentos repletos de fantasias e emoções. As relações, os impactos e as impressões causadas pelas pessoas e os lugares, principalmente aqueles próximos à vida selvagem, somam-se à fantasia onde duendes, monstros, reis, titãs, demônios, princesas, bárbaros dançam e celebram a vida.

No primeiro capítulo, O espelho do bobo (The fool’s mirror), fica claro, segundo BRUNER (1997:111), como a modelagem, distribuição e construção do “si-mesmo” operam nas práticas da família dentro de um contexto cultural, ilustrado na importância que as relações entre os pais, a avó e o tio ovelha-negra exerceram sobre Laban, assim como o papel fundamental de suas brincadeiras de teatro na infância. Há poucos relatos sobre a escola, revelando sua pobre relação com a mesma, se comparada ao seu rico universo de vivências fora dela.

Certamente sua escola não possuía um programa de ensino que contemplava as diferenças individuais e grupais (OLIVEIRA:1997), onde sua incontrolável imaginação criadora pudesse ser acolhida. Ao dedicar-se às artes plásticas, para escapar às imposições disciplinares e ao tédio, aprende a respeitar o valor do ofício artístico e aos 16 anos se encarrega da organização de um tableaux vivants para a chegada do governador, realizando uma verdadeira dança grupal. Nascia o “dance master do futuro.

No capítulo dois, A terra (The earth), apresenta a natureza como sua fonte inspiradora e relata sobre a influência do espaço arquitetônico e da natureza sobre os seres humanos. No terceiro capítulo, descreve as marcas positivas e negativas, que as reações das primeiras pessoas lhe deixaram, sobre o seu projeto de ser artista, e descreve ainda as experiências Parisienses inspiradoras para A noite (The night).

Em O aprendiz de feiticeiro (The sorcerer’s apprentice), o quarto capítulo, Laban narra sua vida de cadete, incentivado pelo pai militar, entre 1899 -1900, onde logo percebe a ameaça da máquina destruidora de almas, tanto no sentido figurativo quanto na vida real, optando por combatê-la através da Arte do movimento.

No quinto capítulo, O tigre (The tiger) Laban retorna ao início de sua difícil carreira, sem dinheiro e muitos questionamentos, em Paris. Cedo Laban percebe que estava sozinho na concretização de suas aspirações, e o que poderia ter se tornado uma história de fracasso, por diversos motivos, reverte-se em uma história de sucesso, forjada em uma forte determinação pessoal.

O violinista (The fiddler), sua primeira obra totalmente direcionada para a dança, é descrita no sexto capítulo, junto à memória nostálgica de sua vida romântica e a tristeza pela morte, em 1907, de sua primeira esposa. No capítulo O templo da dança (The swinging temple), relata a vida exaustiva das montagens para os festivais em Munique e a importante ida de seu grupo de dança à colônia de Monte Veritá em Ascona, nos Alpes suíços, para a realização de pesquisas e contato com a natureza.

Em 1923, ganha o reconhecimento como o grande pioneiro criativo e revolucionário do teatro e da dança alemã, por parte de admiradores e críticos. Ilusões (Illusions), segundo capítulo da parte dois, abrange a década de vinte, quando seu grupo decide permanecer com o mestre até as últimas conseqüências. Neste período e pela primeira vez, Laban consegue seu próprio espaço de trabalho, no restaurante do zoológico de Hamburgo.

Apesar das crescentes dificuldades (frio, fome, falta de dinheiro, grave crise econômica e social), Laban e a companhia apresentam vários trabalhos em pequenas turnês para desfazer-se em seguida, em 1924. Em Titã (The Titan), terceiro capítulo da segunda parte, Laban comenta as diferenças entre os Estados Unidos e a Europa, por ocasião de sua ida à América, em maio de 1929, para a realização de estudos etnográficos e realiza um balanço sobre a dança-comunitária.

Em A vida cotidiana e o festival (Everyday life and festival), primeiro capítulo da terceira parte, Laban relata seu intenso ritmo de trabalho e grandes responsabilidades, como organizador de eventos. Em Estradas para o futuro (Roads to the future) capítulo dois, da última parte, ele apresenta um pequeno balanço das possibilidades de seu trabalho em outras áreas artísticas, relembra seus dias de juventude e experiências com o teatro e reflete sobre a importância dos primeiros Congressos de Dança.

Laban nesta interessante autobiografia nos presenteia seus sonhos e se nos apresenta enquanto um homem visionário, irrequieto, atento às mudanças histórico-sociais e econômicas de seu tempo, sem no entanto deixar-se intimidar. Alternando momentos de angústias e alegrias, o autor constroe seu longo percurso prático e reflexivo na busca do entendimento das possibilidades expressivas do movimento, tanto na dança quanto no cotidiano.

Recomendamos também a leitura da biografia realizada pela Valerie Preston-Dunlop, Rudolf Laban: uma vida extraordinária (Rudolf Laban: an extraordinary life) enquanto uma minuciosa referência, contextualizada históricamente ,sobre a carreira e as parcerias de Laban.

As duas obras aqui citadas são fundamentais para quem quiser conhecer e entender a importância de Laban no cenário da dança moderna e se iniciar nos estudos e fundamentos do movimento pesquisado pelo autor: Labanotação (sistema de anotação do movimento), Eukinética (estudo das qualidades expressivas do movimento) e Corêutica (estudo das organizações espaciais do movimento).

Diante das multiplicidades das manifestações artísticas contemporâneas, onde o corpo deixa de ser apenas tema para se apresentar enquanto a própria obra, ou seu instrumento de realização, preocupa-me pensar como o corpo entra na sala de Artes, dentro de instituições onde muito provavelmente delineiam-se práticas de disciplinamento do corpo, em detrimento da prática de uma autêntica experiência criativa e criadora do movimento.

É preciso aprender a aprender com o coração, a alma, a intuição, com todo o corpo que se move e dialoga com o espaço e com outros corpos, com os diferentes saberes, com o meio (cultural, social, religioso, etc.) ao qual estamos inseridos e com as novas e crescentes transformações e rearranjos de conhecimento e pontos de vistas que a ciência e a tecnologia promovem a cada nova descoberta.

Neste sentido pesquiso há alguns anos as possibilidades de relações entre o uso do movimento no aprendizado e ensino de Artes, a partir da filosofia do movimento de Rudolf Laban, visando o desenvolvimento das capacidades criadoras e harmônicas do indivíduo, considerando sempre os projetos pessoais, que se consolidam em manifestações expressiva repletas de significados, que se utilizam das técnicas, ferramentas e suportes tradicionais ou não, incluindo-se também o próprio corpo, assim como da reflexão contextualizada da história da arte e das inquietações de nosso tempo.

Bibliografia:
BRUNER, J. Autobiografia e si-mesmo. In: Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, pp. 89-121.
OLIVEIRA, M.K. de. Sobre diferenças individuais e diferenças culturais: o lugar da abordagem histórico-cultural. In: AQUINO, J. G. (org.) Erro e fracasso na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1997, pp.45-61.
OLIVEIRA, M. K. de e TEIXEIRA, E. A questão da periodização do desenvolvimento psicológico. In: OLIVEIRA, M.K. de; SOUZA, D.T.R. e REGO, T.C. Psicologia e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002, pp. 23-46.

Bibliografia recomendada:
LABAN, Rudolf. Modern Educational Dance. Second edition, revised by Lisa Ullmann. London: MacDonald and Evans, 1963.
_____________and LAWRENCE, F.C. – Effort- Economy of human movement. London: MacDonald and Evans, 1974.
_____________. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1978.
_____________. Dança Educativa Moderna. São Paulo: Ìcone, 1990.
PRESTON-DUNLOP, Valerie. Rudolf Laban: An Extraordinary Life. London: Dance Books Ltd, 1988.
PRESTON-DUNLOP, Valerie. A handbook for Dance in Educaton. Second edition, London: MacDonald and Evans, 1980.
RENGEL, Lenira. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume, 2003.