Laboratório Contemporâneo: dança amazonense em foco

Entre os dias 27 e 31 de maio foi realizado o projeto Laboratório Contemporâneo, em Manaus. Durante cinco dias, a capital amazonense assistiu a apresentações de espetáculos – seguidos de debates entre artistas e público – e promoveu análises especializadas com a participação de críticos e teóricos. O evento, patrocinado pela Caixa Econômica Federal, gerou discussões e serviu para fomentar a produção de dança na região Norte (clique aqui para ler mais sobre o evento). Abaixo, o idança publica duas críticas feitas pelo dramaturgo e historiador Jorge Bandeira. Ele escreve sobre os espetáculos Homem de Barro, da Companhia de Intérpretes Independentes, e Rito de Passagem (foto ao lado), da companhia Indios.com, ambos apresentados dentro da programação do Laboratório Contemporâneo.

Homem de Barro, o corpo renasce

O figurativo em dança torna-se às vezes um elemento complicador ao espectador e ao apreciador da obra de arte. Através de ações objetivas este Homem de Barro, da Companhia de Intérpretes Independentes desfaz este mito, sem descambar para uma simplificação da leitura do corpo, mesmo que este figurativo transmute-se em abstrato, captando configurações simbólicas do inconsciente. Não pretendo traçar uma análise acadêmica deste espetáculo que me fisgou até a “medula”.

As projeções plásticas no espaço cênico foram utilizadas com maestria pelos intérpretes, que escapam da nomenclatura de dançarinos, bailarinos ou outra que gere desconforto em alguns. Intérpretes que dançam, que geram emoções, simuladores e ousados seres da movimentação, eis o nome ideal para Risuenho, Yara e Leilane. Isso basta. E não é tudo. O ritmo, muitas das vezes interior, as emoções e os ruídos permeiam esta jornada dançante, teatral, performática destes alquimistas da estrutura corporal, deste corpo que gravita com precisão na procura da forma plástica essencial.

Tabus culturais são quebrados, a nudez analisada pelo componente médico, com belas imagens anatômicas que transbordam via Renascimento Cultural e científico, é o mestre Leonardo que dá o suporte para a total nudez “explicativa” do intérprete. A representação crua de um exame detalhado de musculatura e ossos ultrapassa a si mesma, os instintos são instigados, tudo é possível, menos a indiferença. Na verdade, estamos tratando da essência da própria vida.

O gesto criador é conscientemente repetido, o que provoca uma dualidade entre os executantes e o observador, numa perfeição técnica e plástica, arte escrupulosamente codificada, estranhamente natural, paradoxal, o que só podemos explicar pelo culto ao corpo e a busca de emoções. As etapas desta proposta artística nos remetem a uma falsa assepsia, apesar da clarividência do local branco, mas este branco ofusca nosso olhar, é a magia do movimento.

Mesa ginecológica, livros, objetos médicos, tudo é movimento em Homem de Barro, tudo são idéias, elementos que nos conduzem, de forma não arbitrária, e sim lúdica (não esqueçamos do lúdico presente neste trabalho!) a pensarmos na vida como um falso diagnóstico, um placebo que retarda um sintoma, porém esta caligrafia coreográfica é legível. Diante de uma estética tão elaborada só nos resta sair do coma da passividade, da UTI da mesmice na dança.

Homem de Barro não tem os pés frágeis, não é um gigante de barro. A pesquisa de som e imagens demonstra que estamos envolvidos durante o espetáculo por artistas seguros de suas propostas estéticas, de pensadores da dança, em pleno work in progress. A isso denominamos contemporaneidade. Tudo flui, mesmo que para isso ocorra uma desaceleração dos movimentos em profusão. Poderíamos pensar nos rompantes da Escola Alemã expressionista de dança e sua modernidade, das características introspectivas da mesma, priorizando mais o conteúdo que a forma, que busca no subjetivo o material essencial de sua criação. Homem de Barro vai além. O trio, ou os solistas em seus momentos de protagonistas deste palco alvo, usam símbolos como instrumentos de expressão, onde o objeto faz parte indissociável de uma determinada idéia feita da urgência (basta lembrar da dança com os “intérpretes enfermos” conduzindo cabides com os recipientes de soros!).

O espaço cênico é o espaço vital destes seres pensantes da dança contemporânea. O ritmo, a dinâmica e o desenho transitam e fluem naturalmente nesta expressão demasiadamente teatral e ainda assim moldada pela dança. Através de um fluxo de movimentos, o desenvolvimento do tema faz-se seguro. A respiração, a tensão e o relaxamento dos três intérpretes que dançam é toda amalgamada de lirismos, de uma sátira sutil (o desfile patético e cheio de glamour forçado, a ociosidade de uma mulher que “apara” suas unhas dos pés, para citar apenas duas configurações deste mundo da falsidade, planejado).

O melhor, no entanto, de Homem de Barro é a oportunidade que estes artistas da dança dão ao público: cada espectador interpreta a dança à sua maneira, por seus referenciais, com a ajuda de sua própria sensibilidade. Para quem tem muito pouco, já é uma dádiva da deusa da dança nos ofertar este trabalho, a nós, os que querem as artes libertas de todo dogma, de todo preconceito, de todo faz-de-conta. Yara, Risuenho e Leilane são artífices de uma dança que se abre para o futuro, a pleno passos e pulmões, celebrando o cérebro, o corpo e suas mutações em contato com as artes e a tecnologia.

Homem de Barro

Homem de Barro

Rito de Passagem, abordagem além da dança

As cenas se completam, se revelam e se amalgamam neste rito. A intérprete realiza de corpo e alma seus movimentos, com segurança e destreza, o que torna o espectador um cúmplice privilegiado das imagens reais e transcendentes do espetáculo de pouco mais de 40 minutos. Yara e Risuenho costuram um roteiro feito para galgar alturas além dos passos ritmados e/ou quebrados do movimento corporal, seja no solo ou na verticalidade.

Penso que os processos ritualísticos ameríndios fazem parte de uma cosmogonia, onde temos as antigas referências das danças rituais aéreas meso-americanas recapituladas, com intencionalidade ou não, pelos roteiristas e coreógrafa desta empreitada repleta de suor e reflexão no ato corporal. O movimento é pensado, projetado e não se torna mecanizado. A espontaneidade e naturalidade da intérprete deixam clara a entrega de corpo e alma aos sinais externos e internos desta dança, misto de teatro, pantomima e arte performática. Ainda assim estamos falando de dança, no que a contemporaneidade tem de melhor: o uso equilibrado dos recursos da multimídia. O corpo é o protagonista, e o corpo feito da destreza e espontaneidade na seminudez de Yara Costa, nunca vulgar ou sem o trato artístico, fazem desta ritualística um objeto de arte belo, sensorial e desconcertante, pois aqui o corpo nu volta ao estado natural do índio, sem apelações ou propósitos desviantes resgatando, por absurdo que possa parecer esta assertiva, a nudez perdida de nossos índios, mesmo que não seja a nudez total, porém mais nudez que aquela dos índios dos atuais programas televisivos, meramente com apelos ao exotismo étnico. A dança como reflexão. Eis tudo.

Os elementos cênicos são colocados como apêndices necessários ao encadeamento das situações do corpo, enquanto “contador” de uma história. A seqüência do vôo “juta-pássaro” é um dos momentos etéreos e memoráveis da coreografia. Em nenhum momento sente-se o desconforto dos movimentos, geométricos ou quebrados, espécie de atonalismo corporal, entre a geometria e o caos, construtor. Visões e movimentos se misturam, se completam, se harmonizam neste trabalho, onde as esferas do sonho e do real são parceiros seguros de um esforço de transitar entre o acrobático e o singelo na dança. Um atletismo afetivo, para citar um termo de Artaud*. Belas imagens remetem aos processos de “miração” da ayahuasca, o vinho dos mortos de nossos índios. Dançar e transcender, impossível não visualizar este duo artístico e estético nesta proposta. Voar é um sonho antigo acalentado pelos homens. Yara, nas alturas ou no chão, nos chama a testemunhar múltiplas visões do elemento feminino, calejado, sonhador e deslumbrante em sua jornada dançante, em sua feliz coreografia.
* Antonin Artaud, teatrólogo francês, um dos principais nomes do Teatro do século XX.

Jorge Bandeira é historiador e dramaturgo, especialista em História Social da Amazônia, ator e diretor de teatro.