Lost in dance 2: Dançando com a mídia

Lost in dance iniciou como uma espécie de diário de bordo cheio de observações, inquietações, angústias e, acima de tudo, dúvidas, das quais tinha o desejo partilhar com outros viajantes deste universo chamado dança. Viajantes que já devem ter se deparado com a galáxia midiática dançante. Afinal, a dança na mídia vem revelando diversificadas facetas deste Universo.

Progressivamente, dos musicais de Hollywood a Embalos de sábado à noite e Flashdance, a dança vem ocupando um lugar singular na mídia. Basta puxar a memória e perceber que, nas últimas três décadas no Brasil, a cada ano, uma nova dança ganhou espaço na mídia: lambada, Macarena, Dança da garrafa, Dança da Lacraia, Ragatanga, Dança da motinho, Dança do Siri. Danças que tiveram seu sucesso impulsionado pela televisão. A mesma que tem investido na dança como tema de teledramaturgia: Dance, dance, dance. Mas não é só na TV que este fenômeno é visível. Um site da web ensina o internauta como se preparar, passo a passo, para o carnaval: queira ele dançar samba ou mesmo frevo. E, se ainda quiser, pode-se escolher a fantasia e curtir a dança no Second LIfe, sem suar a camiseta.

Este breve percurso permite notar que a mídia se coloca hoje como um novo referencial e um espaço privilegiado de circulação de muitas danças, muitas delas que não tinham visibilidade nesta proporção ou não eram experimentadas desta forma. Este fato merece uma reflexão cuidadosa para se pensar como o cenário midiático contemporâneo está estabelecendo novos usos, sentidos, práticas e pedagogias de dança. Processo que não está restrito à esfera simplesmente dos produtos midiáticos mostrarem e exibirem a dança, mas que implica também num novo jeito, numa nova e específica maneira de estabelecer a experiência dançante, borrando fronteiras, entre o local e o global, entre o dito erudito e popular.

Quando ouvimos, por exemplo, o trecho: “Quer dançar/ quer dançar/ o Tigrão vai te ensinar”, da música Cerol na mão, do Bonde do Tigrão,[1] percebemos que ele não faz referência a nenhuma academia de ensino de dança, escola ou instituição educacional, muito menos a qualquer conservatório de belas artes. O cenário no qual a lição de dança proclamada pelo refrão se desenvolve é a televisão, povoada pela coreografia do Bonde do Tigrão, no verão de 2001, que se espalhou de norte a sul do Brasil, fazendo com que o grupo vendesse mais de 300 mil cópias do seu primeiro CD homônimo.

Exemplo como este evidencia que uma nova configuração está se instituindo: as novas salas de aula para a dança são agora também os videoclipes e programas de auditório de televisão, bem como os sites, blogs e comunidades da internet ou os espaços dos jogos eletrônicos, como o Pump it Up, nos shoppings centers.

Um olhar atento percebe que este investimento da mídia na dança vem fazendo a indústria cinematográfica estar sendo pródiga nos últimos anos com títulos como Vem dançar (Take the Lead), Baila Comigo (Marilyn Hotchkiss’s Ballroom), Vamos todos dançar (Mad Hot Ballroom), Dançar – despertar de um desejo (Je ne Suis pas là pour Être Aimé), Dança – Hip-hop no Pedaço (You Got Served), Dança comigo? (Shall We Dance?), A última dança (One Last Dance). E a dança não está presente apenas nos filmes que tematizam centralmente a dança. É só nos lembrarmos de cenas marcantes, seja em Pulp Fiction – tempo de violência (com Uma Thurman e John Travolta embalados por You never can tell, de Chuck Berry), em A pequena Miss Sunshine (com uma garotinha que escandaliza um tradicional concurso com sua coreografia nada familiar) ou mesmo em Madagascar, que encerra colocando toda a fauna africana a dançar I like to move it.

E não pára por aí. A mídia já tem inclusive a sua própria história da dança, basta assistir a Evolution of dance, que está disponível no YouTube e conta com mais de 75 milhões de exibições, em um ano. Além disto, a mídia que criou o megasucesso High School Musical é também a que abre espaço para espetáculos diários, como o STV na dança, com espetáculos de companhias brasileiras, exibidos em horário nobre pela TV Cristal.

Ok. Podemos querer admitir que não somos obrigados a viajar por este planeta e que seguimos outras rotas? Podemos até tentar nos manter alheios, mas será que, de um jeito ou de outro, não acabamos por nos deparar com esta realidade? E que a ela fechar os olhos não a retira do mapa? Uma amiga defendeu-se, dizendo que não se sente afetada pela dança na mídia, pois nem tem televisão em casa. Mas, mesmo sem sentar em frente à telinha, reconhecia uma série de danças lançadas e popularizadas pela televisão e tinha opinião sobre vários filmes que abordavam a dança e se Rodrigo Hilbert (vencedor da ultima edição do Dança dos Famosos) era só bonitinho ou se sabia dançar mesmo.

Mesmo que você não aterrisse no planeta-mídia pode sentir a sua ressonância. O fenômeno da dança na mídia traz mudanças radicais ainda pouco compreendidas. Que corpos são estes apresentados dançando? Que diferenças nas práticas de dança passam a operar midiaticamente? Esta inserção está democratizando a dança? A dança está se homogeneizando em escala global ou se estão abrindo espaços para manifestação que estavam à margem? Estes discursos midiáticos estimulam a padronização e/ou a criatividade? Em que grau e medida? Há uma erotização exacerbada da dança na mídia ou pânico moral com as danças que passam a freqüentar a mídia? A dança está incentivando a liberação dos corpos e/ou o consumo desenfreado de danças? Prazer ou banalização? Mau gosto ou preconceito?

Há alguns anos, nossos avós aguardavam o final de semana que tinha baile, para dançarem e verem os outros dançar. Meus pais, na época de adolescentes, sintonizavam a eletrola para ouvir em casa as músicas que dançavam nas festas e treinar alguns passos. Hoje, vejo minhas sobrinhas ligarem a televisão e terem uma ampla gama de coreografias e não precisam esperar o final de semana para assistirem às danças e para dançarem, o “baile” pode ser ali, naquele momento. Se nossas mães também dançaram na sala na sua adolescência, elas não contavam com a possibilidade de acompanhar cada movimento à sua frente, nem de assistirem a esta coreografia quantas vezes quisessem. Elas tinham de contar com a memória e com um professor. E talvez mais radical do que isto, seja o fato de, além de tudo, ainda se poder colocar essas danças num YouTube, disponível aos quatro cantos do mundo ou aderir no Orkut a uma das milhares de comunidades que veneram ou odeiam dança, coreógrafos, companhias, coreografias ou que enfatizam aspectos desta arte.

O que se observa é a rápida e avassaladora constituição de um novo cenário para a dança que há quatro décadas não existia e que nos últimos anos tem se ampliado tanto na diversidade como na quantidade, trazendo um redesenho nas possibilidades de se vivenciar a dança. Fatores que a mídia produz e que estão promovendo outras relações do público com a dança na contemporaneidade.

Estas e outras questões merecem atenção (e leituras menos superficiais e precipitadas) para quem produz e ensina dança, para quem procura compreender as transformações e implicações que mídia passa a colocar em cena. Enfim, para que possamos transitar pela dança que faz o planeta balançar, e, desta forma, passa a (des)governar os corpos que dançam na cultura de hoje. (Des) governando, nem só para o mal, nem só para o bem, mas num processo ambivalente, complexo e multifacetado.


[1] Tigrão, apelido que significa o rei das gatinhas, é o apelido de Leandro Dionísio dos Santos Moraes, morador há 20 anos da Cidade de Deus, uma das regiões mais violentas do Rio. Ele lançou pela Sony Music, o CD Bonde do Tigrão, que traz além do sucesso homônimo, o hit Tchutchucas..