Lost in dance 3: na(s) fronteira(s)

Trafegar pelo universo da dança é defrontar-se com distintos territórios, sejam eles planetários, galácticos, satélites. Um universo em expansão e cada vez mais passível de viagens, visitações, migrações e intercâmbios. Relações que tornam importante pensar em fronteiras e em como se relacionar com os diferentes territórios que elas tentam estabelecer, sejam eles o da dança contemporânea, o da dança popular, o da dança na Academia, o da dança fora da Academia, o da dança de rua, o do funk, o da dança midiatizada e o da dança elitizada.Talvez pense com insistência nisso, porque aqui, em Porto Alegre, no extremo Sul do Brasil, a idéia de fronteira seja bem presente e tenha historicamente deixado marcas em nossa cultura. A idéia de fronteira está presente tanto nos relatos da defesa do território nacional num passado distante, como em mais recentes idéias separatistas e mesmo em situações prosaicas como a de identificar aqueles habitantes que viviam nas cidades gaúchas vizinhas ao Uruguai e à Argentina: o pessoal da fronteira (incluindo tias, primos, amigos e colegas de escola). Era diferente ser da fronteira ou vir da fronteira. E, antes de defender ou corroborar com esta identificação, quero me aproveitar desta realidade geopolítica para pensar algumas questões de dança que não deixam de implicar em questões geográficas e políticas. Afinal, se até certo tempo aproximar-se das fronteiras era uma opção, nos tempos atuais, mesmo que não saiamos do mesmo lugar, as fronteiras podem avançar até a sala da nossa casa. Uma hora ou outra passamos a ser também “gente da fronteira”.

Estamos num tempo em que estas fronteiras se estabelecem, ainda que provisoriamente, contingentemente, flutuantemente, descentradamente, o que me parece apontar para a necessidade de se tentar pensar nos trânsitos possíveis. Para começar esta reflexão, passo a entender o conceito de fronteiras de maneira simplificada, mas talvez não menos válida para a reflexão do universo da dança, como aquele limite de passagem para o território do Outro, aquele lugar que não domino ou que me interesso em me aproximar ou ainda por onde desejo me aventurar.

Portanto, o que gostaria de pensar é como se estabelece o trânsito pelas fronteiras que se colocam para a dança. Sejam elas fronteiras entre linguagens, como a da dança e a do teatro. Fronteiras entre estilos e gêneros, como o jazz, o balé, a dança de rua, a dança contemporânea (se assim esta pode ser caracterizada). Fronteiras entre saberes, como os da arte e da ciência. Tenho me deparado com os impasses que estas fronteiras suscitam em vários eventos em que o tema se coloca em debate, como a Bienal de Dança do Ceará, o Festival de Dança de Joinville, o Brasil MoveBerlim e o Festival de Dança de Recife. Em todos eles, ficam evidenciadas as preocupações e inabilidades que aparecem de norte a sul do país ou mesmo do outro lado do Atlântico. Em algumas falas nestes eventos, procurei levantar algumas alternativas para se pensar as relações com estas fronteiras, pontuando quatro delas: a guerra, a importação, o turismo e a residência.

A guerra é uma das alternativas para estabelecer a relação com o que está do Outro lado da fronteira. Ela parte do princípio da discórdia e do conflito com o Outro lado. O objetivo é fazer com que o Outro lado siga as mesmas regras do lado de cá da fronteira, seja eliminando as fronteiras ou não, já que o que importa é que, dos dois lados, a mesma ordem seja estabelecida.

A relação com o Outro lado da fronteira pode ser de importação. O território do Outro conta com recursos que interessam ao lado de cá, que não se importa em estabelecer a mesma ordem, mas de poder usufruir destes recursos.

Já o turismo costuma ser mais pacífico (ainda que nem sempre). O princípio que o regula é o da descoberta e do desfrute. Atravessar a fronteira é uma aventura da qual, de preferência, deve-se retornar repleto de lembrancinhas, de souvenirs. É uma relação de curto prazo e, portanto, rápida e fugaz. Por isso a importância de sair carregado de badulaques e registros pra provar que se esteve lá do Outro lado.

A última alternativa que aponto é a da residência. Nesta modalidade, digamos assim, a travessia da fronteira tem como objetivo vivenciar, experimentar, conhecer (e não apenas descobrir). Tal alternativa exige um prazo maior e uma relação mais intensa e aguda. Vai além de um petisco ou meia dúzia de palavras. Pode-se começar a dominar o idioma, preparar pratos, entender condutas. Pode haver nesta possibilidade um intercâmbio enriquecedor para ambos os lados, no exercício do convívio com a diferença.

Mais do que estabelecer uma classificação de modalidades de relação de trânsito pelas fronteiras, meu objetivo é o de refletir de que maneira estamos enfrentando os desafios das fronteiras da dança. Neste cenário é possível ver guerras declaradas ao funk. É possível ver o vocabulário da dança de rua, que aparece a torto e a direito como penduricalho turístico que enfeita coreografias de quem passeou por uma vídeo-aula de poucos minutos. É possível ver batalhas por tudo aquilo que juram desvirtuar a essência (sic!) desta ou daquela dança. É possível ver o bombardeio moralista contra os corpos requebrantes e o próprio bombardeio dos corpos requebrantes sobre os corpos tranqüilos e silenciosos, e, nem por isso menos dançantes. É possível ver a importação ingênua que acredita que tudo do primeiro mundo é melhor, ou ainda o protecionismo tacanho que precisa defender com unhas e dentes o que é da sua terra.

Mas este trânsito também tem revelado o sabor e o valor de se “perder tempo” com o Outro lado, explícito nas trocas que nutrem e alimentam os processos artísticos. Na possibilidade da street dance, valer-se da dança contemporânea e a dança contemporânea da street dance a ponto de não sabermos mais onde esta fronteira ficou. Da dança clássica aprender com a capoeira. Do samba namorar a vídeo-dança. Do pensamento não agarrar-se a uma atitude sisuda e também divertir-se no carnaval. Das diferenças construírem redes de colaboração e solidariedade.

Enfim, nem tudo são flores e a idéia aqui não é de uma manifesto (ou talvez seja) na defesa da garantia de todas as fronteiras. As guerras nunca cessam, a importação muito menos, e o turismo vai a galope em tempos de globalização. Mas em meio a equivocadas alternativas a curto ou longo prazo, o espaço está disponível para reinvenção e inauguração de modos de transitar por estas fronteiras estética e eticamente. Não cruzar a fronteira fica cada vez menos vinculado à nossa vontade, mas como lidar com estas entradas e saídas depende de escolhas nossas.