LOUPPE EM PORTUGUÊS, resenha da obra “Poética da Dança Contemporânea”

Laurence Louppe, francesa nascida em 1938, foi uma das mais importantes historiadoras e críticas de dança da França. Sua obra mais importante, Poéticas da Dança Contemporânea, foi traduzida para o português por Rute Costa e publicado em 2012, pela Orfeu Negro (Lisboa, Portugal), no mesmo ano da morte da autora. Louppe escreveu para o jornal Libéracion nos anos 1980 e para a revista Art Press. Foi professora nas universidades de Lille III (França) e na Université du Québec à Montréal (Quebec). Além desse currículo formal, a presente obra dela foi e é referência nos estudos de dança na Europa e, um pouco menos, nos Estados Unidos, principalmente desde sua tradução para o inglês, em 2010.

A obra foi lançada depois do Reading Dancing – Bodies and Subjects in Contemporary American Dance, que também merece uma tradução para o português, publicado em 1986, da Susan Leigh Foster. Esse livro foi um marco no trato teórico e na reflexão sobre a dança contemporânea. Nele, Foster, que à época já era ex-dançarina, interpretou o trabalho de alguns importantes artistas, seus trabalhos de composição, problematizou um pouco alguns termos, observou alguns temas dentro da história e ensaiou sobre a dramaturgia do espectador (sem usar essa expressão, que é atual) em relação a alguns artistas. Louppe vai na esteira da Foster e, claro, também a cita. Originalmente publicado em 1997, ganhando um segundo tomo, la suíte, em 2007, Poética da Dança Contemporânea está, agora, acessível, na sua versão final, em português. A editora acrescenta à obra original quais obras que são referidas no livro se apresentaram em Portugal, onde no país e quando. Esse trabalho tem crédito de Maria José Fazenda, a mesma que assina o prefácio.

Embora, não tenha nenhuma menção a textos ou danças oriundas do Brasil, esse livro é de extrema importância para os estudos e práticas de dança para nós, brasileiros. O debate de conceitos é vital para o desenvolvimento de pensamento e da linguagem, ou seja, ele articula somas e subtrações. Mesmo que sejam complexos, conceitos precisam ser claros para que a comunicação aconteça com vigor, fluência e alguma objetividade.

Por isso, é bom observar que a palavra ‘contemporâneo’ tem um significado que, no caso, carrega uma ambiguidade que pode atrapalhar. Pois toda arte elaborada atualmente é contemporânea; toda arte é contemporânea de outra arte produzida na mesma época – e todas as obras ou peças de arte pertencem a uma época, que são as suas respectivas. Todavia, esse não é o sentido que esta se utiliza nesse caso.

A arte contemporânea, seja qual arte for, assim é qualificada quando ela foi gerida, quando ela está muito contaminada com questões do pensamento contemporâneo e com os problemas atuais e glocais intrínsecos da arte. Então, arte contemporânea, ao mesmo tempo em que é um conceito (portanto, histórico), também é um guarda-chuva para as obras, para fenômenos poéticos cujas formas desejam se instaurar no mundo como desdobramentos e, quem sabe, como acontecimentos. E, talvez, o seu recurso mais forte para tanto é que a arte contemporânea, no geral, se dá na rejeição do uso de vocabulário prévio, ou seja, ela não se subordina ao que lhe antecedeu e, possivelmente, contesta, em algum nível, as tradições e o status quo, mesmo que isso se restrinja à técnica exercida. Por conseguinte, a dança contemporânea só existe no singular como conceito estético e momento histórico. Ainda está mantido o regime de tentativa de instaurar configurações inéditas, assim como desde o Renascimento, quando se começou o entendimento geral de arte que, aproximadamente, hoje temos.

A filosofia de um conceito também pode ser um projeto, ou seja, um lançamento de ideia que requer agenda e procedimento para se concretizar. No caso, Louppe trabalha uma leitura da dança cênica que se instaura a partir da norte-americana (Ângela) Isadora Duncan (1877 – 1927). Foi ela quem começou a quebrar, no ocidente, o entendimento de dança como sinônimo de balé. Duncan afirmava que a mesma dança não poderia pertencer a mais de uma pessoa. Tinha um conceito chamado “dança do futuro”, que seria o dançarino (a) que, para se harmonizar com uma natureza romantizada, resgataria um movimento que seria uma dança sacra e que instauraria, de acordo com ela, no ente dançante uma comunhão, caducada desde os gregos antigos, entre o corpo, o cosmos, a vida, a comunidade. Hoje, considerando que há pouquíssimos registros fílmicos dela dançando, a leitura dela como transgressora foi um acontecimento historicamente bem mais impactante do que o conceito específico que ela expressou pelos seus discursos e pela sua dança.

Louppe lembra que a dança contemporânea nasce de “visionários que se depararam com a dança nas suas próprias investigações” (página 55). Os alemães Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) e Richard Wagner (1813 – 1883) pensaram, de modos mais ou menos parecidos, uma dança comprometida com o corpo que dança, com seus desejos e que se libertasse de algumas amarras dos movimentos do corpo ocidental civilizado, que eram esteticamente rígidos.

No pensamento filosófico, o francês Michel Foucault (1926 – 1984) e o italiano Giorgio Agamben (1942) são importantes e, claro, também são citados por ela, como pensadores que pertencem a essa linhagem e desenvolveram críticas sobre o corpo humano como signo de forças desejantes e, especialmente, receptor de forças opressoras. Já o francês François Delsarte (1811 – 1871), “questionava de maneira radical o papel do corpo e do movimento em relação à função simbólica do sujeito.” (página 58). E por aí vai.

A discussão sobre semântica afeta, no caso da dança, além da leitura da dança e suas relações com mundo, também o fazer do corpo, para onde aponta o desejo; como a musculatura (tanto os órgãos quanto suas moléculas) deve proceder, tencionar-se; como lidar com colegas de cena, coreógrafo, objetos de cena, cenografia, figurino, iluminação, dramaturgia, mercado, pedagogia. A partir dos ambientes das experiências que ela viveu e dos relatados na bibliografia, Louppe trabalha, com muita erudição e discernimento, como esses tópicos, entre outros, são tratados na dança contemporânea e, principalmente, as consequências poéticas deles. Na dança, é o corpo, que pelo seu trabalho, comunica o seu trabalho. Por isso, ela se equivoca quando afirma que a dança do gigante coreógrafo norte-americano Merce Cunningham (1919 – 2009) não comunica (página 41). Ela comunica, sim, embora não seja uma linguagem codificada.

Cunningham é, muitas vezes, para ela, um modelo para as “ferramentas” da dança contemporânea listada por Louppe em seus subcapítulos: “O corpo como poética”; “Respiração”, “Os quatro fatores: O peso, Poéticas do movimento, Estilos e Leituras do tempo”; “A poética dos fluxos: As tensões como poética e A acentuação”; “O espaço: Leitura do espaço, Espirais, curvas, esferas”; e “Composição”. De fato, ele desenvolveu ideias e obras que são férteis e consistentes para serem lembradas, louvadas e questionadas. Entretanto, os artistas da dança contemporânea os japoneses Kazuo Ohno (1906 – 2010) e Tatsumi Hijikata (1928 – 1986), ambos do butô, e a alemã Philippine Bausch, mais conhecida como Pina Bausch (1940 — 2009) também têm um peso e rastros artísticos importantíssimos. Louppe poucas vezes cita a Pina e o butô, mas nenhuma vez cita nominalmente nem a dupla japonesa.

E pior: não os coloca na gênese conceitual da dança contemporânea. Se os argumentos dela para a elaborações do livro atravessaram o Atlântico, ela tendo sido espectadora contumaz e leitora ávida para ser uma grande intelectual da dança como foi, é muito estranho que não os considere tanto quanto deveriam, que quase não os explorem como exemplos. Na página 28, é citado o russo Roman Jakobson (1896 – 1982), um dos maiores linguista do século XX. Lá esta escrito que ele definiu “a poética como o estudo das motivações que favorecem uma reação emotiva a um sistema de significação ou de expressão”. Então, repara-se que Louppe desconhece em absoluto a dança no Brasil, pois, pelo menos aqui, aqueles três artistas (e seus grupos) deixados por ela à margem em seu livro, causaram enorme comoção e contaminaram nosso pensamento em dança. E em outros países também.

O corpo humano da dança contemporânea é um corpo crítico. Louppe afirma, mesmo que não com essas palavras, que esse corpo precisa ser específico, ou seja, ele precisa treinar e se envolver com seu tema, suas ferramentas, seus objetos. A reação emotiva da poética pode estar no espectador, mas ela deve estar no artista. Quem dança precisa de envolvimento, precisa absorver/desenvolver o que sua dança almeja. Então, mesmo uma queda tem a sua técnica. Esse o corpo também não é pautado pela narratividade e pode vir a convidar o espectador para um mundo que aquele configurou e que venha ser utópico, que não seja representativo e, ainda assim, ser um corpo crítico no sentido mais rigoroso do termo.

Todavia, mesmo que a dança contemporânea se projete, se afirme como inauguradora de si mesmo e, seus artistas, como fiadores de si mesmos, ela tem um passado histórico anterior que é importantíssimo e que, embora não seja tema do livro, é preciso relembrar e tentar entender. Essa seria uma grande diferença entre ler Poética da Dança Contemporânea e estudá-lo.

*Arthur Moreau é artista, bacharel em Comunicação das Artes do Corpo, da PUC-SP, e estudante de Filosofia, na USP.