Pelo a Menos no País das Maravilhas / Foto: Alessandra Haro

Manter a ação

Existe o tempo de plantar, de colher, de ver os frutos brotarem. Mas há um momento que este ciclo todo precisar ser realimentado, num esforço meio que darwiniano de manutenção das espécies. Esta perspectiva vai indicar evolução, trocas, reorganização de materiais e informações, renovando o fôlego desse procedimento, acionando outras cadeias estéticas. Entre os dias 23 e 26 de fevereiro de 2011, em Curitiba, o Couve-flor Minicomunidade Artística Mundial entrou nesse processo de aragem, de replicação de sua estética, estreando o Couve-Flor Manutenção Coletiva, patrocinado pela Petrobras. O projeto revirou memórias, acervo e repertórios do grupo curitibano, renovando seu campo de atuação, inaugurando novas ações, realimentando seu fôlego inventivo.

Várias frentes foram executadas a partir da proposta de manutenção. No Tête à Tête, encontros e diálogos formatados através de entrevistas com e entre artistas curitibanos, num circuito planejado de 12 encontros. A proposta começou com a coreógrafa Gládis Tripadalli convidando o artista plástico Luiz Rettamozo para uma espécie de entrevista orientada, algo além de uma roda de bate-papo. Sede desta ação, o segundo andar do Cafofo Couve-flor viu o público perguntar respondendo. Como? É que os procedimentos sugeridos por Gládis propunham ações corporais e espaciais de todos, numa experiência dinâmica de troca de opiniões, revelações, tomadas de posição. Depois, com sua verve performática, Rettamozo falou de seu processo de criação, produzindo ali, com, de novo, a participação do público, uma de suas pinturas/decalques/vestígios sobre o mundo – um olhar nele -, e as pegadas de seus habitantes. Algumas primeiras apreensões desta atividade do projeto Manutenção: uso do espaço sede do coletivo, reforçando sua presença na geografia cultural da cidade, interferência sobre ele e orquestração/envolvimento do público nele.

A engenhosidade do Tête à Tête, que tem curadoria de Neto Machado, implica na sequência da ideia com Rettamozo escolhendo alguém para entrevistar, num circuito de 12 encontros, cujo final pressupõe entrevista com Gládis Tridapalli, que acionou a mecânica do jogo dialógico sobre quem ouvir, a quem olhar, sobre qual obra ou artista se debruçar. O trânsito entre os novos criadores da cena local e figuras que tenham uma trajetória construída saúda, por seu viés, uma disposição ao aprendizado das duas partes, desarmadas de seus a priori, mas com desejos de descobrimento do outro.

Nas Ocupações Performáticas, convites a artistas locais para uma nova troca. Para o start, Ricardo Marinelli chamou Renata Roel, que mostrou a performance Baixo Ventre, e Margit Leisner, com Sem Título, Ensaio Sobre Um Certo Tema. No primeiro trabalho, uma pesquisa corporal que expõe processos de dilatamento e contrações musculares que, por sua expansão, instalam ressonâncias no ambiente, distendendo também as possibilidades de envolvimento com o que ali se opera. Na ação de Margit, espécie de instalação de procedimentos, explicitação de não-ideias, experimentos “in process”, que conectavam artes plásticas, videoarte, transições sobre o acabado, o incompleto e as soluções possíveis quando estes dados são operados em intermitência cruzada com a globosfera.com. As páginas e páginas de proposições superpostas pela obra exigem downloads de história da arte e de ambientes de informações produzidas virtualmente, no live PA da própria ação.

Os sentidos múltiplos da realização sequencial dos dois trabalhos falam de ambientes, linguagens, confluências sobre a arte em construção, resíduos de informações, agora antepostas e questionadas à luz de novas proposições. Se, na pertinência da exposição de um trabalho “do ambiente da dança” com outro “do universo da performance”, a curadoria explicita uma opção que exige vocabulários específicos e um certo refinamento de repertório, por outro lado aposta num movimento pendular que oscila entre acúmulo de sugestões e o esvaziamento de conceitos prévios, forjando outro contexto de fruição. Mesmo parecendo ter um quê de hermetismo, o diálogo entre as duas instâncias estéticas teve a potencialidade de acionar novos circuitos de trocas: corpos voláteis, energias intra e extra corpóreas, interrupções de circuitos e fluência das fronteiras artísticas e estéticas se enfeixaram nesta instância.

A Mostra de Repertório representa um momento precioso do projeto. Agora, dialoga-se com a memória e os vestígios da presença da minicomunidade mundial na macrocomunidade local, versa-vice. A pertinência desta janela da programação é rica de significados. Fala do que repercute num contexto, das trocas, da polissemia de diálogos, de coautorias, das possíveis construções de linguagens e estéticas, de uma trajetória, de uma história num lugar. Na programação, o trabalho que Cândida Monte encenou pela primeira vez em 2006, Descoisas, Pré-Coisas e, no Máximo, Coisas; Pelo a Menos No País das Maravilhas, criação de 2004 de Ricardo Marinelli, e Adaptação ou Estudo Para Um Plástico Amarelo, que Elisabete Finger tem em seu repertório desde 2006.

Na reapresentação de sua primeira direção, percebe-se que Cândida explora corporeidade e linguagem, trabalhando com propriedade, já atenta à hibridação possível entre dança e teatro, irrigando sua obra com a poesia fértil e tátil da obra de Manoel de Barros. No vaivém cênico, descobre-se relações possíveis entre as duas linguagens, inaugurando um caminho que refuta enquadramentos e reduções, mas alarga possibilidades de criação. Com seu corpo-memória, Marinelli trama lembranças e ações, fazendo do porta-retrato pessoal matéria de sua dança. Por esta moldura, segue ampliando um procedimento que explicita argumento autoral para questões também de gênero, que têm começado a transitar com mais fluência na cena contemporânea brasileira. Ao revisitar, ou se reapropriar, da performance de Deborah Hay, como o fez após um período de trabalho com a criadora, em 2006, Elisabete põe novo olhar para sua própria atuação, numa generosa de disposição coreográfica, partilhada com o público. A contundência deste olhar tateia – e encontra! – eco no contexto em que se insere. É como se o material amarelo que serve de invólucro (parangolé?!) para sua ação clareasse as muitas nuances e camadas de significados que atravessam toda a obra. Uma retomada com o viço das primeiras vezes.

Nas três peças artísticas revisitadas, o Couve-Flor aposta e aponta para as diversas possibilidades de se inserir numa comunidade cultural, abrindo frestas e frentes de diálogos, instaurando conversas artísticas. Daí que, ao se pensar em repertório, naquilo que repercute e, por sua capacidade de ser ouvida e instaurar movimento no entorno, é preciso aplaudir as ousadias da trupe. E registrá-las como uma operação adversa ao contexto da sobrevivência dos coletivos de trabalho, numa conjuntura cultural refém de editais e políticas públicas instáveis. Por isso, inclusive, deve-se saudar a possibilidade deste projeto.

Ao revisitar repertórios, os couves põem em ação sua rede colaborativa, uns servindo de assistentes dos outros, opinando, complementando, apoiando e trabalhando em conjunto pelas propostas de cada integrante. Nesta perspectiva, são agentes de trocas artístico-sociais, atuando como referência organizativa para uma comunidade, e, ao mesmo tempo, sugerindo a esta novos procedimentos. É quando emerge, com significativa importância, o conceito de coletivo artístico, com suas tramas e redes de ação, tangenciando bordas e rompendo bordas e margens, inaugurando novos mecanismos e recursos para a criação, exibição e circulação de obras.

Estas ações se inserem, ou são produtos, de um ambiente de dança contemporânea favorável. A existência da Casa Hoffmann, por onde parte dos couves passou, é vetor que acionou investigação, ousadia, disposição para o experimento desta, digamos, nova geração artística curitibana. Mas o trabalho deles são se restringe ao circuito paranaense. Na pertinência da imagem do fractal, sugerida pelo ícone gráfico da trupe, agem como todo em parte e, em partes, num todo contemporâneo global. Não à toa, a programação da Manutenção Coletiva inclui mostra de vídeos em Nova York, residências e parcerias nacionais e internacionais. É na irradiação de propostas e na irrigação dessas ideias que a trajetória da Minicomunidade Artística Mundial ganha arejamento e contundência.

Os jeitos de atuar na cena contemporânea artística brasileira e internacional exigem disposição constante para atualização. Inquietos e atentos ao seu entorno, mas também em sintonia com tais contextos, Cândida Monte, Cristiane Bouger, Elisabete Finger, Gustavo Bitencourt, Michelle Moura, Neto Machado e Ricardo Marinelli não cuidam só de sua horta. A experiência de gestão cooperativada do Cafofo, que existe deste 2007, e, em paralelo, a criação, produção e execução de diferentes frentes de atuação, dão envergadura à experiência que vem sendo implementada desde 2005. Por isso, este Couve-Flor Manutenção Coletiva vem renovar e fortalecer a experiência em curso. Os couves são corpos artísticos de vigor próprio, organizando pensamentos que contribuem para a enriquecer as cenas em que se inserem.

No contexto das pesquisas em torno do corpo como produtor de significados estéticos, um corpo elabora e comunica pensamentos, tenho usado a expressão “corpo de recomeços”. É uma das nuances com a qual se pode ler e descrever a atuação deste coletivo. Quando a dança se encurrala, valem-se da performance. Quando a cena está óbvia, arranja-se um recurso arrojado para desestabilizá-la. Quando o palco parece virar limite, toma-se a rua e as praças para este transbordamento de ideias e ações. Eis, portanto, um viés de entendimento sobre o grupo e da pertinência de sua bem arejada vontade de “manter a ação”.

A foto é do espetáculo Pelo a Menos No País das Maravilhas, de Ricardo Marinelli. Crédito: Alessandra Haro.

Carlinhos Santos é historiador, jornalista, crítico de dança, especialista em Corpo e Cultura: Ensino e Criação pela Universidade de Caxias do Sul e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação (UCS). Também é titular da coluna 3por4, do Jornal Pioneiro, em Caxias do Sul, RS.

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