Meg, a passionária | Meg, a passionária

Texto originalmente escrito para a Revista Obscena #5

Não foi por acaso que Jean-Marc Adolphe, editor da revista Mouvement, apelidou a norte-americana Meg Stuart de “coreógrafa do desastre” (Janeiro 2002) depois de assistir a Alibi, peça marcada, conscientemente ou não pelos ataques às torres gêmeas. “Política no que diz, atual pelo que faz surgir no instante da representação, toda uma genealogia de informações, de energias, de gestos derrotados. É bom verificar que esta encenação de clichês sobre a dominação surge de uma artista americana exilada na Europa depois de dez anos”.

O crítico queria salientar a raridade de um discurso de resistência, de atenção, de desconforto, de coerência que, em vez de súbita e passageira, lhe era intrínseca.
Para Meg Stuart esta idéia de catástrofe é anterior a 2001. “O meu trabalho foi sempre sobre a catástrofe. Quando eu estou no estúdio a trabalhar, sozinha e às voltas, estou sempre a lidar com a recuperação de um acidente, de uma catástrofe… Ou seja, trabalho em busca de uma cura, de uma recuperação… de uma reintegração do corpo que tem um problema de mau funcionamento… mas tudo de uma forma muito profunda, muito implicada com aquilo que me rodeia”.

De Disfigure Study, a peça que a trouxe para a Europa, apresentada em 1991 no Klapstück, na Bélgica, o mesmo festival que firmou a Nova Dança Portuguesa – e é por aqui que começam as relações com vários criadores nacionais, que resultaram, por exemplo, em Blessed, um solo para Francisco Camacho – até It’s not funny!, obra a negro que desmonta a ligeireza dominante com que tendemos a abordar a tragédia, mais próxima ou universal, o centro do seu discurso está na identificação das razões que nos levam a agir desta ou daquela maneira.

Assim, é no seu universo pessoal e referencial – que pode ir, de fato, do 11 de Setembro ao esforço físico do intérprete – que vai buscar a matéria que constitui um dos mais polêmicos e pessoais discursos da cena contemporânea européia. “Continuo a criar o meu mundo, as minhas ligações, as minhas pessoas, os meus projetos… uma espécie de abrigos temporários que por vezes cedem e eu crio novos. Eu vivo num outro espaço que não está dividido por realidades físicas, como teatros específicos ou dependente de relações pessoais”, diz, enquanto parte para mais uma viagem Bruxelas-Berlim, cidades onde se divide. A primeira porque é lá que tem a sede da sua companhia, Damaged Goods; a segunda, porque reside artisticamente na Volksbühne, o ex-teatro nacional de Berlim Leste, fato tanto mais raro por se tratar de uma mulher.

Ser ou não americana, estar ou não na Europa, existir ou não um ponto de vista feminino, ter surgido ou não num momento em que vários outros criadores surgiam, em diferentes pontos da Europa, são questões que, se são circunstanciais e podem introduzir dinâmicas diversas na criação e recepção dos seus espetáculos, não enfermam o seu discurso ao ponto de o condicionaram a uma mensagem. Ela esclarece: “não quero fazer passar nenhuma mensagem, não quero educar ninguém, não faço statements”. E mais: “o meu maior conflito com a idéia de afirmação é que, quem quer fazer afirmações num palco, normalmente esquece-se de fazer um espetáculo e não assume que, simplesmente, não sabe. Há coisas que as pessoas não sabem, que levam tempo a aprender. E não saber faz parte. Antes de qualquer afirmação sobre o teatro ou a dança, é preciso saber-se o que se quer fazer, é preciso ser-se reconhecido, é preciso lidar com os lados negros, com o que é desconfortável… E a maior parte não o quer fazer, razão pela qual o expõe de forma tão evidente no palco. Mas o que é preciso dizer ao público é que, num teatro, eles estão a salvo, não precisam ter medo do que está a ser mostrado”.

Não acreditando num discurso de afirmação tout court, é na exposição de certos vícios – dela, daqueles com quem trabalha, dos que a odeiam e dos que a vêem –, que sustenta o seu trabalho quase sempre em parceria. Do videasta americano Gary Hill ao coreógrafo canadense Benoît Lachambre, do dramaturgo e crítico flamengo Jeroen Peteers ao encenador inglês Tim Etchells, dos Forced Entertainment, já foram muitos os músicos, intérpretes, coreógrafos, ensaístas, artistas visuais e realizadores que com ela colaboraram.

É neste princípio – mais de generosidade e desejo de descoberta conjunta que de simples partilha discursiva – que Meg Stuart, de discurso mais retraído quando tem que falar do seu trabalho, e mais explosivo quando o mostra num palco, procura construir uma dança “do desastre”, certamente, mas sempre na tentativa de entender o trágico, essa condição que nos domina.Texto originalmente escrito para a Revista Obscena #5

Não foi por acaso que Jean-Marc Adolphe, editor da revista Mouvement, apelidou a norte-americana Meg Stuart de “coreógrafa do desastre” (Janeiro 2002) depois de assistir a Alibi, peça marcada, conscientemente ou não pelos ataques às torres gêmeas. “Política no que diz, atual pelo que faz surgir no instante da representação, toda uma genealogia de informações, de energias, de gestos derrotados. É bom verificar que esta encenação de clichês sobre a dominação surge de uma artista americana exilada na Europa depois de dez anos”.

O crítico queria salientar a raridade de um discurso de resistência, de atenção, de desconforto, de coerência que, em vez de súbita e passageira, lhe era intrínseca.
Para Meg Stuart esta idéia de catástrofe é anterior a 2001. “O meu trabalho foi sempre sobre a catástrofe. Quando eu estou no estúdio a trabalhar, sozinha e às voltas, estou sempre a lidar com a recuperação de um acidente, de uma catástrofe… Ou seja, trabalho em busca de uma cura, de uma recuperação… de uma reintegração do corpo que tem um problema de mau funcionamento… mas tudo de uma forma muito profunda, muito implicada com aquilo que me rodeia”.

De Disfigure Study, a peça que a trouxe para a Europa, apresentada em 1991 no Klapstück, na Bélgica, o mesmo festival que firmou a Nova Dança Portuguesa – e é por aqui que começam as relações com vários criadores nacionais, que resultaram, por exemplo, em Blessed, um solo para Francisco Camacho – até It’s not funny!, obra a negro que desmonta a ligeireza dominante com que tendemos a abordar a tragédia, mais próxima ou universal, o centro do seu discurso está na identificação das razões que nos levam a agir desta ou daquela maneira.

Assim, é no seu universo pessoal e referencial – que pode ir, de fato, do 11 de Setembro ao esforço físico do intérprete – que vai buscar a matéria que constitui um dos mais polêmicos e pessoais discursos da cena contemporânea européia. “Continuo a criar o meu mundo, as minhas ligações, as minhas pessoas, os meus projetos… uma espécie de abrigos temporários que por vezes cedem e eu crio novos. Eu vivo num outro espaço que não está dividido por realidades físicas, como teatros específicos ou dependente de relações pessoais”, diz, enquanto parte para mais uma viagem Bruxelas-Berlim, cidades onde se divide. A primeira porque é lá que tem a sede da sua companhia, Damaged Goods; a segunda, porque reside artisticamente na Volksbühne, o ex-teatro nacional de Berlim Leste, fato tanto mais raro por se tratar de uma mulher.

Ser ou não americana, estar ou não na Europa, existir ou não um ponto de vista feminino, ter surgido ou não num momento em que vários outros criadores surgiam, em diferentes pontos da Europa, são questões que, se são circunstanciais e podem introduzir dinâmicas diversas na criação e recepção dos seus espetáculos, não enfermam o seu discurso ao ponto de o condicionaram a uma mensagem. Ela esclarece: “não quero fazer passar nenhuma mensagem, não quero educar ninguém, não faço statements”. E mais: “o meu maior conflito com a idéia de afirmação é que, quem quer fazer afirmações num palco, normalmente esquece-se de fazer um espetáculo e não assume que, simplesmente, não sabe. Há coisas que as pessoas não sabem, que levam tempo a aprender. E não saber faz parte. Antes de qualquer afirmação sobre o teatro ou a dança, é preciso saber-se o que se quer fazer, é preciso ser-se reconhecido, é preciso lidar com os lados negros, com o que é desconfortável… E a maior parte não o quer fazer, razão pela qual o expõe de forma tão evidente no palco. Mas o que é preciso dizer ao público é que, num teatro, eles estão a salvo, não precisam ter medo do que está a ser mostrado”.

Não acreditando num discurso de afirmação tout court, é na exposição de certos vícios – dela, daqueles com quem trabalha, dos que a odeiam e dos que a vêem –, que sustenta o seu trabalho quase sempre em parceria. Do videasta americano Gary Hill ao coreógrafo canadense Benoît Lachambre, do dramaturgo e crítico flamengo Jeroen Peteers ao encenador inglês Tim Etchells, dos Forced Entertainment, já foram muitos os músicos, intérpretes, coreógrafos, ensaístas, artistas visuais e realizadores que com ela colaboraram.

É neste princípio – mais de generosidade e desejo de descoberta conjunta que de simples partilha discursiva – que Meg Stuart, de discurso mais retraído quando tem que falar do seu trabalho, e mais explosivo quando o mostra num palco, procura construir uma dança “do desastre”, certamente, mas sempre na tentativa de entender o trágico, essa condição que nos domina.