Memórias do Norte nas Bibliotecas Universitárias | Memories of the North in University Libraries

A recente leitura de alguns manifestos surgidos na história da arte me entusiasmou a pensar em uma atitude política sobre as memórias da região norte. Um manifesto, uma declaração pública, sobre o conhecimento especializado e a viabilização de acesso da informação sob o ponto de vista de nossas bibliotecas universitárias. E para começar, podemos pensar que é bom, é muito bom, que existam acervos digitais como o Recordança, o Klauss Vianna, ou a base de dados Rumos Dança do Itaú Cultural (clique aqui para ler reportagem sobre acervos produzida pelo idança).  Melhor ainda que em 2007-2008 questões sobre memória e história tenham sido objeto de eventos como o I Encontro de Pesquisa sobre Memória da Dança Brasileira, em Minas Gerais, e publicações, como os Seminários de Dança – História em Movimento: biografias e registros em dança, os quais propiciaram encontros frutíferos entre os profissionais da área. Mas qual o papel e a situação de nossas bibliotecas universitárias nesta complexa construção cultural?

Apenas para relembrar, na década de 1970 foram criados dispositivos institucionais comprometidos com a preservação do patrimônio documental brasileiro. A visão dominante buscava a identificação e valorização das particularidades regionais. O próprio Ministério da Educação e Cultura estimulava e financiava esse tipo de iniciativa recomendando a criação desses centros, definindo como papel da universidade a preservação e organização dos acervos documentais brasileiros. Assim, os centros de memória e documentação tornaram-se característicos das instituições universitárias, preservando o patrimônio arquivístico, assumindo papel fundamental na criação de condições para a prática e o exercício da pesquisa, viabilizando o crescimento de produção intelectual a partir da reunião de pesquisadores em torno de suas temáticas de especialização e, democratizando o seu acesso tanto para os usuários internos quanto para o público externo de pesquisadores, mesmo aqueles não vinculados à comunidade acadêmica.

Na Região Norte, entretanto, basta uma consulta rápida nos sites das bibliotecas universitárias para se perceber que, nos dias atuais, apenas o patrimônio bibliográfico foi mantido como principal atividade. Situação que se agrava quando nos referimos à aquisição de títulos sobre artes e se amplifica quando o assunto é dança. Considere-se ainda que não costumam fazer parte as coleções históricas de jornais locais ou regionais, ou mesmo, coleções iconográficas e, principalmente, midiatecas, as quais poderiam ser objeto de tratamento dessas unidades. Realidade que não difere muito das outras regiões brasileiras. Portanto, é importante pensar também sobre as linhas de acervo de nossas bibliotecas, seu status enquanto unidade universitária e os recursos financeiros que a elas são destinados, os quais garantem os suportes físicos de instalação e manutenção, a contratação de recursos humanos especializados, a reprodução de fontes de pesquisa originais e, principalmente, o planejamento e a realização de programas de divulgação e exposição dos acervos. Itens fundamentais para que se possa garantir excelência no aproveitamento de seu potencial.

Convivemos com situações diversas na região amazônica, entre tempos e espaços que incluem a celeridade da internet em suas capitais, mas que não dispõem, ou dispõem precariamente, em seus municípios mais distantes, destas ferramentas tecnológicas e mesmo de atividades educacionais de maior solidez, imersos que estamos em situações políticas de autoritarismo, corrupção e descaso, longe de ser uma questão simples de se resolver. Neste contexto político e social, a produção de conhecimento torna-se condição indispensável para a produção de autonomia a fim de evitar o apaziguamento intelectual que, segundo o sociólogo Boaventura Santos, nos leva ao conformismo e à passividade. Trata-se, portanto, de emancipação cognitiva, na qual verifica-se em jogo, entre outras coisas, a nossa capacidade de autogerenciamento e a produção de qualidade de vida para as nossas cidades. E, neste sentido, a implementação dos cursos de ensino superior na área artística e a otimização de suas bibliotecas tornam-se fatores de extrema relevância para o desenvolvimento cultural da região.

A criação do curso de graduação em dança (bacharelado e licenciatura), em 2001, na Escola Superior de Artes e Turismo da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) nos serve de exemplo. Em Manaus, o ambiente acadêmico, desde os seus primeiros anos, expôs a fragilidade e a escassez de documentação referente à dança, evidenciando ausências que incidiriam diretamente na fundamentação dos trabalhos acadêmicos. Problemas entre produção e circulação que, é óbvio, não se resolveriam somente a partir dos serviços oferecidos pela biblioteca central, mesmo porque um acompanhamento mais próximo de suas atividades possibilitou observar uma política de banho-maria, com recursos financeiros mínimos para infra-estrutura e aquisição de novos títulos,  resultando em número insuficiente de funcionários para atender a demanda regular de catalogação e disponibilização do acervo e menor ainda para alçar vôos criativos de parceria com os eixos universitários de pesquisa e extensão.

Apesar deste quadro, foi possível o surgimento de projetos como o Fique em Cartaz, que visava fomentar a doação de material de divulgação dos espetáculos locais, e a realização de uma exposição dos títulos referentes especificamente à dança com o intuito de estimular a consulta pública ao acervo. Atividades que foram complementadas com  projetos de iniciação científica, tal como o Cidade, memória e processos evolutivos da dança, que buscava o mapeamento dos registros sobre dança nos jornais manauaras do final do século XIX e ao longo do século XX. Estas iniciativas, de certo modo, comprovaram a eficácia de se optar por uma estratégia de trabalho em parcerias, bem como a necessidade de se insistir na realização de ações a fim de se vencer a inércia institucional, o que não significa é claro que a realidade atual esteja satisfatória.

Então, retornando à idéia de manifesto. A biblioteca universitária já é um dispositivo institucional constituído e o que se precisa é externar nossas inquietações e expectativas por meio de veículos apropriados e direcionados às instâncias de decisão. Precisamos compor forças com seus diversos estratos hierárquicos deixando clara a necessidade de criação de espaços adequados aos nossos objetos de conhecimento e que, sendo assim, viabilizem paralelamente ao resgate e a organização documental tradicionais a existência de ambientes de exposições e performances que proporcionem movimentos os mais diversos. E não esquecer de solicitar frequentemente – com veemência – a criação de midiatecas. Aliás, item que poderia tornar-se constante nas plataformas dos centros acadêmicos de dança. Tudo isso se constitui em um forte aliado na hora de sensibilizar os gestores para a importância dos centros universitários de documentação e chamar a atenção para o fato de que o passado não é apenas um antes em relação a um depois, mas uma forma de vitalizar nosso presente e abrir perspectivas para o futuro. Nossas memórias agradecem… e por curiosidade, qual é a situação da biblioteca de sua universidade?

Ítala Clay de Oliveira Freitas. Jornalista, formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Mestre em Comunicação e Semiótica: Artes, pela PUC-SP onde atualmente é doutoranda. Foi coordenadora pedagógica do Curso de Dança da Escola Superior de Artes e Turismo da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) no período de 2001-2007 e coordenadora do Programa Arte na Escola – pólo Manaus (2005-2006).

Recently, reading some manifests that emerged in the history of art encouraged me to think about a political attitude about the memories of the north region of Brazil. A manifest, a public declaration about specialized knowledge and the availability of information from the perspective of our university libraries. To get started, we could think that it´s good, very good, that there are digital collections such as Recordança, Klauss Vianna, or the Rumos Dança of Itaú Cultural database. Even better, in 2007-2008 questions about memory and history have been the subject of events like I Encontro de Pesquisa sobre Memória da Dança Brasileira em Minas Gerais (1st Meeting of Research about Memory of the Brazilian Dance in Minas Gerais) and publications like Seminários de Dança – História em Movimento: biografias e registros em dança (Dance Seminars – Moving History: biographies and dance records), which enabled some very fruitful encounters between professionals of the dance field. But what are the role and the situation of our university libraries within this complex cultural construction?

Just a reminder, in the 1970’s, institutional mechanisms were created in commitment to the preservation of the Brazilian document heritage. The dominant view searched for the identification and valorization of regional peculiarities. The Culture and Education Ministry itself stimulated and financed this kind of initiative recommending the creation of those centers, defining the preservation and the organization of the Brazilian document collections as role of the universities. Thus, the memory and documentation centers became characteristic of the higher education institutions, preserving the archive patrimony, assuming an essential role in the creation of conditions for the practice and exercise of research, making possible the growth of intellectual production with the reunion of researchers around their specialty subjects and democratizing the access both for internal users and for outside researchers, even those who are not affiliated to the academic community.

In the north region, however, it only takes a quick search in the university library websites to realize that only the bibliographic patrimony is currently maintained as a main activity. The situation is worse when we talk about the acquisition of titles about art and even worse when dance is the subject. Considering that dance documents are not usually part of the historical collections of local or regional newspapers or even iconographic collections and specially media libraries, which could be an object of concern for those units. The reality is not so different from that of other regions in Brazil. Therefore, it is important to think about the collection lines of our libraries, their status as university units and the financial resources that are destined to them, which guarantee the physical supports of installations and maintenance, the hiring of specialized human resources, the reproduction of original research sources and, mainly, the planning and production of publicizing programs and the exhibition of the collections. Items that are essential for guaranteeing excellence in the good use of their potential.

We live with diverse situations in the amazonian region, between times and spaces that include the speed of the internet in the capitals, but without counting, or counting precariously in the most distant cities, on the technological tools or even on more solid educational activities, as we are immersed in authoritarian political situations, corruption and negligence, a situation that is far from being resolved. In this political and social context, the production of knowledge becomes an indispensable condition for autonomy, in order to avoid the intellectual appeasement that, according to sociologist Boaventura Santos, leads us to conformism and passivity. Therefore, we are talking about cognitive emancipation, in which it is possible to observe that our capacity for self-management and the production of quality of life for our cities is at stake. In this way, the implementation of higher education courses in the artistic field and the optimization of their libraries become extremely relevant factors for the cultural development of the region.

The creation of a dance graduate course in 2001, at Escola Superior de Artes e Turismo da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) is an example. In Manaus since the first years, the academic environment have been exposing the frailty and the scarcity of documents related to dance, making evident absences that directly affect the foundations of the academic work. Problems in production and circulation that obviously would not be solved just through the service offered by the central library, since a closer examination of their activities enabled the observation a ‘water bath’ policy, with minimal resources for infrastructure and acquisition of new material, resulting in an insufficient number of workers to meet the regular demand of cataloguing and making the collection available and even smaller to engage in creative enterprises for partnership with the university research programs.

In spite of this situation, it was possible the creation of projects like “Fique em Cartaz”, intended to foment the donation of advertising material of local shows and the production of an exhibition of specifically material related to dance, with the purpose of stimulating public consultation of the collection. These activities were complemented by scientific initiation projects, such as “Cidade, memória e processos evolutivos da dança”, which seeked to map records about dance in the newspapers from Manaus in the end of the 19th century and throughout the 20th century. Theses initiatives in some ways proved the efficiency of choosing a work strategy of partnerships, as well as the need to insist in actions to fight institutional inertia, which of course does not mean the current situation is satisfactory.

So, coming back to the idea of a manifest, the university library is already an established institutional mechanism and what we need is to externalize our discontentment and expectations though appropriate media, directed to decision-making entities. We must gather strength with the different hierarchical layers, making clear the need for the creation of spaces adequate to our knowledge goal and that make possible the existence of environments for exhibitions and performances that render the most diverse movements parallelly to the rescue and the traditional document organization. And we should not forget to frequently request – with vehemence – the creation of media libraries. By the way, the item should become constant in the dance academic centers platforms. All this constitutes a strong ally when it is time to convince managers of the importance of the academic centers for the documentation and to draw attention to the fact that the past is not merely a ‘before’ in relation to an ‘after’, but a way to make our present alive and open perspectives for the future. Our memory would be grateful … and just out of curiosity: what is the situation of the library in your university?