Metodologia para estudar dança contemporânea. Existe uma?

Quando falamos em estudo referente à dança contemporânea no âmbito acadêmico, logo advertimos a importância que tem os instrumentos e as perspectivas metodológicas. Estes elementos, que em outras disciplinas gozam de uma definição e uma sistematização mais rigorosa, fruto de anos de tradição acadêmica, se encontram, no caso da dança contemporânea, em um estado ainda embrionário.

Em primeiro lugar, encontramos um fator histórico ao longo da história do Ocidente, que se traduz em uma aversão generalizada do corpo e sua capacidade de gerar especulação teórica e cuja conseqüência mais direta é a falta de tradição em estudos associados à dança.Tal repulsa/aversão, herdada da cultura cristã e reafirmada a partir da ilustração, coloca o corpo e tudo que com ele se relaciona no nível mais baixo da hierarquia intelectual. Mas este corpo é, precisamente, o ponto de partida, o meio de expressão e foco principal do fenômeno que chamamos dança. Estreitamente ligada a este fator histórico, e uma de suas conseqüências mais fatais para o estudo, é a questão das fontes. O investigador que se propõe iniciar um estudo sobre o tema encontra numerosas dificuldades para encontrar e consultar os documentos necessários para realizar seu trabalho. É um fato concreto que as fontes referentes à dança contemporânea, e não à dança em geral, são bem mais escassas, até mesmo frágeis, pouco acessíveis.

Por outro lado, existe um segundo fator que intervém diretamente no estudo da dança a partir de uma perspectiva teórica e que, ao contrário do anterior, surge da própria natureza do fenômeno dançado: seu caráter performativo. A dança é, quiçá, de todas as artes cênicas, a que mais claramente sofre os efeitos resultantes de sua condição efêmera, já que não dispõe de um registro fiel sobre o qual especular, investigar ou reconstruir (o restante das artes cênicas tampouco dispõem de sistemas de registro absolutamente eficazes, mas, no geral, deixam um maior número de indícios sobre em que se basear a investigação. A aparição do vídeo supõe sem dúvida um grande avanço, pois permite registrar e reproduzir a peça dançada em qualidade audiovisual aceitável. Em troca, o vídeo também tem suas limitações, mas não é comparável à experiência ao vivo do ato cênico e reduz a sensação tridimensional, uma vez que oferece um ponto de vista concreto e fixo. Não existe pois, até o momento, nenhuma mídia que possa substituir a autêntica experiência cênica que, ao ser tão física e tão visual, dificilmente se pode traduzir em palavras. Frente a outras disciplinas artísticas como a literatura, a escultura ou a pintura, que têm um suporte de expressão estático, a dança se caracteriza por ser dinâmica, já que se expressa e se manifesta a través do movimento. Isto dificulta enormemente o seu estudo, fazendo difícil sua reprodução exata e veraz, e nos obriga a recorrer a fontes paralelas para tentar compreendê-la.

Outra das peculiaridades próprias da dança, que condiciona sua análise, é a dificuldade de enfrentar objetivamente o objeto de estudo. Isto se deve à presença de uma série de elementos que condicionam a apreciação de uma representação dançada e que esboçamos/formulamos de forma breve/brevemente. Por um lado temos a interpretação, que se faz necessária em toda arte performática e que supõe sempre uma reelaboração, uma criação nova, viva e mutante, que afeta o resultado final da obra. Além disso , o espectador, esperto ou profano, compartilha com o intérprete a experiência do corpo e seus modos de percepção e relação com o que o rodeia. É muito difícil separar o objeto de nosso interesse, o corpo que dança, da experiência corporal própria, porque precisamos sentir, pensar e atuar através do nosso corpo. Como então abordar um estudo destas características absolutamente convencidos de nosso rigor crítico? É a pergunta que fica no ar, constituindo um dos principais objetivos da crítica e investigação da dança. Não obstante, existe uma certa – ainda que escassa – tradição epistemológica referente à dança contemporânea, que resumiremos a seguir. Trata-se de uma série de estudos que, em geral, criaram sistemas metodológicos de outras disciplinas como a História, a Antropologia, os estudos de gênero ou a fenomenologia e os adaptaram com maior ou menor sorte à investigação sobre dança.

Uma das primeiras aproximações ao fenômeno da dança, a partir do âmbito acadêmico, provém dos estudos antropológicos. Este enfoque metodológico é muito adequado para um tipo de investigação ao redor da origem da dança como ritual e sistema de coesão social nas sociedades primitivas. A investigação antropológica se interessa por todos os valores da dança como expressão da espiritualidade e como elemento fundamental de uma estruturação social completa. Mas o certo é que a dança começa a se articular a partir do século XX como um fenômeno com fortes implicações estéticas associadas à modernidade e pós-modernidade, perdendo parte de suas funções originais e assumindo múltiplas e diversas perspectivas, que requerem estratégias de aproximação específicas.

Os estudos históricos também têm tido uma importante presença em determinados focos de reflexão sobre a dança. De fato, a maioria da bibliografia que encontramos atualmente segue esta linha metodológica. A vantagem deste tipo de aproximação é que proporciona um número importante de dados muito úteis para o investigador e os apresenta de uma forma ordenada e exaustiva. Não obstante, os estudos históricos com freqüência caem em uma mera enumeração e em uma presunção de fronteiras estilísticas forçada e fora da realidade. Também é comum que estes estudos acusem uma falta importante de reflexão teórica e de atenção sobre aspectos tão importantes como os motivos de aparição ou as implicações sobre a própria disciplina dancística dos diferentes estilos que analisa. E são muitas as referências a uma série de fenômenos derivados do caráter performativo da dança e da presença do corpo em cena: como a problemática sujeito-objeto, os mecanismos da percepção, a relação entre o físico e o psicológico, etc…, que são básicos para entender o fenômeno da dança contemporânea.

A história da dança como disciplina artística tem estado ligada, ao menos no mundo ocidental, à história das mulheres, pois estas têm sido, em maior grau do que em outras esferas da cultura, quem têm transcendido como bailarinas ou coreógrafas. Tendo em conta este fato, não é de se estranhar que os estudos de gênero têm se ocupado frequentemente em suas investigações das manifestações da arte dançada. Esta classe de aproximações metodológicas, que reivindicam o estudo e a reflexão de certos aspectos associados à feminilidade relegados pela história tradicional, como a sensualidade, as emoções ou a intuição, têm encontrado na história da dança um campo fértil onde desenvolver suas teorias. Neste sentido, o estudo da dança permite pôr em relevo uma série de valores que, ainda que tradicionalmente repelidos pelo mundo acadêmico, apresentam estreitos paralelismos com os interesses da história de gênero, e que tem a ver, fundamentalmente, com uma reflexão mais profunda sobre o corpo e sua história.

Por último, e de um modo especialmente interessante, encontramos os estudos que, a partir do âmbito da fenomenologia, se tem levado a cabo sobre a dança e, em particular, sobre a dança contemporânea. Precisamente deste campo se iniciou, a partir dos anos sessenta, fundamentalmente no âmbito anglo-saxão, uma importante reflexão sobre as estratégias metodológicas no estudo da dança como as suas manifestações mais recentes. A fenomenologia parte da experiência como principal elemento a partir do qual se constrói a reflexão teórica e estuda as transformações que ocorrem na confrontação entre objeto e sujeito. Este método oferece a possibilidade de ter em conta aqueles aspectos que se ativam em nossa percepção no momento da experiência concreta. Estes aspectos, que são tão necessários para a compreensão profunda da dança concebida como um contínuo presente, são dificilmente redutíveis à linguagem da razão, ao qual a maioria dos estudos acadêmicos recorrem. O conhecimento intuitivo proposto pela fenomenologia não pretende formular conceitos fechados, como ocorre em outras disciplinas científicas, sino que trata, através da evocação da experiência, de chegar a uma compreensão mais completa do fenômeno de estudo. Além do que, a metodologia fenomenológica considera os diversos processos e transformações dos fenômenos como uma rica fonte de conhecimento. Isto resulta especialmente interessante no estudo da dança, uma arte que não deixa de ser transformação contínua da idéia de movimento a través do tempo e do espaço. Uma arte que utiliza um instrumento, o corpo, em contínua troca.

Para finalizar, ainda que existam aproximações ao feito específico da dança desde disciplinas acadêmicas tão diversas como as que acabamos de nomear, ainda está por vir o nascimento de uma metodologia para o estudo da dança contemporânea que se origine a partir de suas condições específicas. Em todo caso, e tratando-se de uma disciplina relativamente recente, esperemos que em um futuro próximo possamos vê-la. Estou convencida disso, pois os últimos anos têm sido cruciais para o desenvolvimento de novas perspectivas metodológicas motivadas por um interesse cada vez mais crescente por este fenômeno tão complexo que é a dança contemporânea.