Moinho da arte e da inclusão

No coração do Pantanal, uma escola de artes vem chamando a atenção de artistas, intelectuais e órgãos como a Unesco pelo seu ineditismo. Um abandonado prédio, que no passado foi uma próspera indústria de farinha e macarrão, localizado na beira do rio Paraguai, área histórica de Corumbá (MS), transformou-se em uma fábrica de talentos. Seu nome revela a grandeza da iniciativa: Moinho Cultural Sul-americano.

Onde havia centenas de operários, sacarias e o cheiro forte da seiva do trigo importado da Argentina pela Hidrovia Paraguai-Paraná, seus amplos salões e labirintos estão hoje ocupados por 260 crianças, de 6 a 12 anos de idade. São brasileiros e bolivianos, filhos de famílias pobres da isolada fronteira oeste do Brasil. Ali, aprendem dança, música, línguas – e exercitam a cidadania e a latinidade na sua plenitude.

Com gestão da Ong Instituto Homem Pantaneiro (IHP), a escola está completando três anos e já mudou radicalmente a vida destes futuros jovens artistas, onde a grande maioria estaria fadada à marginalização numa região sem emprego, com mais de 30% da população vivendo abaixo da miséria – e considerada rota do narcotráfico internacional. São filhos de pantaneiros pescadores, de biscateiros bolivianos, que ganham até dois salários mínimos.

A idéia de transformar o prédio fechado na década de 80 em casa da cultura latino-americana foi do casal Ângelo Rabelo, 47, e Márcia Rolon, 37. Ele, coronel da Polícia Militar Ambiental de MS, ela, bailarina e coreógrafa. Uma união que se deu em 2000, quando ambos ousaram em lançar a Mostra Corumbá Santuário Ecológico da Dança, evento realizado em palco a céu aberto onde pisaram Ana Botafogo, Marcelo Misailidis, Francisco Timbó, Carlinhos de Jesus, Mark McLain (Stuttgart Ballet da Alemanha), Ballet Stagium, Ballet Teatro Guaíra, De Anima Ballet , Ballet Steven Harper, Ballet Nacional de Santiago do Chile, Teatro Argentino de La Plata…

“Estamos construindo uma nova relação de fronteira através da cultura”, diz Rabelo, que se notabilizou na década de 80 ao combater caçadores de jacarés no Pantanal. Seu veio cultural despertou-se pela paixão por Corumbá, cidade de 228 anos e 100 mil habitantes, que foi palco da Guerra do Paraguai e terceiro maior porto fluvial da América Latina. “A ocupação dessa fronteira sempre me fascinou, é um manancial de cultura e natureza”.

A sensibilidade artística de Márcia, que integrou o Grupo Ginga, uma das principais companhias de dança do Estado, incorporou-se a esse militar das artes e nasceu o Moinho Cultural Sul-Americano, hoje mantido pela ong Instituto Homem Pantaneiro. O projeto tem como parceiros o grupo J. Macedo, dono do velho Moinho Mato-Grossense; Vale do Rio Doce, Petrobras e, mais recentemente, a Unesco. Como “padrinhos”, dois pantaneiros: o cantor e violeiro Almir Sater e a ex-bailarina do Stuttgart Ballet da Alemanha, Beatriz de Almeida.

Cultura da Paz

Com o início das aulas em março de 2005, uma atmosfera mágica tomou conta de um lugar habitado por pombos e desocupados, transformando depósitos de sacarias e velhas máquinas em salas de ensaio. O silêncio na velha estrutura inaugurada pelo presidente João Café Filho, na década de 50, deu lugar à alegria contagiante da criançada, entrecortada por sons de flautas, clarinetes, violinos e piano ou movimentos ritmados que nascem nos tablados.

A profissionalização destes jovens da periferia de fronteira virá a longo prazo, em oito anos, estima Márcia Rolon, coordenadora técnica da escola. Eles estão passando por uma fase de descoberta, por uma espécie de laboratório que irradia estímulos. Além de aulas teóricas e práticas de dança, música e línguas (espanhol, português, inglês e francês), as crianças têm reforço escolar e os pais são inseridos em programas de geração de renda, através do corte-e-costura, artesanato e culinária regional.

A Unesco reconheceu no Moinho Cultural uma experiência inovadora, que poderia ser repassada para outros países da América do Sul. De um lado, a inclusão da juventude por meio da promoção artística e cultural e forma de expressão, “poderosos formadores de mentalidades em favor da construção de uma Cultura de Paz”. Também expressa, para a organização internacional, “um exemplo raro de uma prática da diversidade sociocultural”.

Cidadania

A escola de artes tem como co-patrocinador a Petrobras e os seguintes parceiros: Fundação Vale do Rio Doce, Petrobras Bolívia, Grupo J. Macedo, Governo Federal e Prefeitura de Corumbá. Paralelamente à grade curricular, o Moinho implantou a Informática Cidadã (Vale do Rio Doce), o Ponto de Cultura e Casa Brasil (Ministério da Cultura), envolvendo a comunidade brasileira e boliviana residente nesta fronteira.