Mostra Primeiras Obras desafia jovens criadores paulistas

Constata-se, nos últimos anos, certa tendência em premiar artistas iniciantes. Temos, por exemplo, o Prêmio Funarte Petrobras Klauss Vianna de Dança, um edital federal que, caso seja lançado este ano, trará pela terceira vez a categoria “novos talentos”. Nele, prevê-se o financiamento de dois projetos por região, como ocorreu na edição do ano passado – na primeira, em 2011, foi aprovado apenas um por região. O que mais preocupa nesse edital é a ideia de “talento”, que carrega uma visão essencialista de corpo. Parto dessa constatação, para analisar criticamente a Mostra Primeiras Obras, dando atenção não apenas à jovem experiência de seus agentes artísticos, mas também às condições de criação e produção de um espetáculo enquanto obra artística.

Realizado neste mês de agosto, na Sala Renée Gumiel, do Espaço da Fundação Nacional de Artes (Funarte), na capital paulista, o evento trouxe o mesmo nome do seu viabilizador, o edital Programa de Ação Cultural (ProAC) – Primeiras Obras, em sua edição inaugural. Cinco projetos foram contemplados com a difícil “tarefa” de construir uma obra artística, formando uma louvável temporada coletiva, idealizada pela produtora Talita Bretas Arduino, em parceria com o projeto Conexões, de ocupação da sala em que aconteceram as apresentações. Ressalto a boa interlocução com outros artistas, que se desdobrou nesse formato de temporada coletiva, o cuidado e atenção no lidar com materiais de criação e, também, o fato de terem sido criadas interlocuções com artistas orientadores (requisito não exigido pelo edital que os apoiou).

Com títulos inquietantes, dada a criatividade faminta dos criadores em começo de carreira, compuseram a mostra os seguintes trabalhos: “Quem com porcos se mistura farelo come”, com Carolina Minozzi, Juliana Melhado, Julia Monteiro Viana, Isis Andreatta e Patrícia Árabe (Grupo Vão – Campinas/SP); “Para reparar no espelho”, duo de Silvia Razuk e Jéssica Moretto (Verso Cia de Dança);  “Instruções para o colapso”, de Carolina Nóbrega, Fabiane Carneiro e Monica Lopes (Coletivo Cartográfico); “Onde o oposto faz a curva”, solo de Patrícia Árabe (Campinas/SP); e “A imagem como ausência”, solo de Marcus Moreno. Os dois primeiros dançaram quatro vezes; o terceiro, uma; e os dois últimos realizaram duas apresentações.

Dadas essas primeiras vezes, a mostra nos desafiou, e ainda desafia, a refletir sobre uma produção jovem autoral, no que se refere aos assuntos, inquietações, procedimentos, escolhas estéticas, processualidade, colaborações, etc. Trata-se de uma questão que nos é contemporânea, no sentido das simultaneidades dessas tentativas de criação num mesmo ambiente de dança, no caso, o estado de São Paulo, ao incentivar, por meio de edital específico, uma jovem leva de criadores.

Juntas, numa mesma programação, as cinco montagens oportunizaram para esses artistas tanto experienciar como testar a participação em uma temporada. As apresentações de Primeiras Obras se deram em dias alternados, agrupados em pares, com exceção de “Instruções para o colapso” que, além de ter se apresentado apenas no dia 4 de agosto, foi performado no espaço do Centro de Convivência Waly Salomão. Nisso, construíram uma ambiência e também uma evidência: essas primeiras obras tem boas chances de serem obras primeiras, ou seja, de serem trabalhos que impulsionem para segundos, terceiros e outros trabalhos, ou até um só de modo complexificado?

Nesse caso, pensando a presentidade das obras, que entendo como o momento presente em que a ação acontece, há outras preocupações nesse estimular uma produção artística iniciante, que tem a ver com os pressupostos do que vem ou pode vir a ser um profissional de dança. Por exemplo, nesse edital há exigências que obrigam todas as obras a terem a uma duração de 45 minutos e que os artistas, para serem selecionados, não podem ter recebido cachê ou apoio individual até aquele momento, ou mesmo ter pisado num palco. Como, em nosso tempo, alguém consegue chegar à inscrição de um projeto de criação nesse “estado bruto”? Felizmente para sua próxima edição, a comissão julgadora se atentou para esse deslize e mudou tais exigências. Contudo, os selecionados nessa primeira edição tiveram de lidar com isso, o que acabou por “influenciar” na configuração final das apresentações.

A exigência de uma duração igual para todas as obras desconsiderou a relação duração e permanência, ou seja, de que cada ação dançada constrói uma relação com o tempo que lhe é singular. Contudo, tiveram e tivemos de lidar com isso, artistas e público, no partilhar a fruição com os trabalhos, que foram longos e, certamente, exigiu bastante desses jovens artistas em suas primeiras obras. Sabiamente, acabaram aproveitando muito do material produzido, investigado, estudado na criação. Sendo assim, um tipo de mostra de processo com a presença de muitas configurações no mesmo trabalho. Nesse risco, até esperado desse e dessas jovens, dançaram vários inícios e muitos fins, como se dentro de um mesmo trabalho pulsassem outros menores e não menos potentes.

Outro aspecto positivo da mostra é que, mesmo sem ser uma exigência do edital, os projetos selecionados foram realizados com um artista orientador, o que considero uma decisão acertada. Uma vez que se trata de um edital de estímulo, cabe um olhar de alguém mais experiente e que também tenha afinidade estética e artística com aquilo que o projeto propõe como questão ou pergunta. Essa estratégia garante, até mesmo, a oportunidade do público perceber reconfigurações, diálogos, trocas e assinaturas desses orientadores. O grupo Vão recebeu orientação de Renato Ferracini, do Grupo Lume Teatro, que também orientou o solo de Patrícia Árabe, junto com Morena Nascimento e Tadashi Endo. Já a Verso Cia. de Dança foi orientada por Carlos Martins; e o solo de Marcus Moreno teve o acompanhamento de Key Sawao (Key Zetta e Cia) e o Coletivo Cartográfico, dirigido por Alex Ratton, como provocador.

Assim, uma mostra de primeiras obras dentro de um projeto que traz como nome e slogan a conectividade (refiro-me à palavra Conexões que dá nome ao projeto que recebeu a Mostra) tem muito ainda a nos dizer. Dada a louvável iniciativa de “forjar” esse encontro, acaba por qualificar essa ocupação de trabalhos em termos curatoriais. Não simplesmente porque têm apoio público (o que desonera bem o orçamento, sabemos), mas pela qualidade de relação que dá para quem está “iniciando”. O cuidado com o trabalho foi exemplar, regido pela humildade de se reconhecer nesse lugar de “aprendência” em dança; e não como “jovens talentos” ou “revelações”, discursos corriqueiramente enunciados e que tanto nos despotencializam.

Atentar-nos à impressão imediata que temos das coisas, aquilo que nos chega “primeiro” – não como fato, mas como “qualidade intrínseca” – colabora para refletirmos sobre esse olhar inaugural no mundo com o qual nos relacionamos incessantemente. Esse sentimento de “primeira vez” tão precioso, que experienciamos quando crianças e que nos acompanha por toda a vida enquanto potência, é uma espécie de estado embrionário que traz o encantamento das descobertas e o pertencimento dos encontros, principalmente, porque considera o trabalho vivencial indispensável para que um projeto tenha boas chances de se tornar artístico.