Os deslugares do Musicanoar

O Grupo Musicanoar comemorou 20 anos de trajetória com o espetáculo “Deslugares”, apresentado entre os dias 8 e 12 de maio, na Galeria Olido, em São Paulo. Além do espetáculo, o grupo lançou a exposição de fotografias “Rastros deslugares”, concebida pela fotógrafa Inês Correa, e o  livro “Musicanoar, 20 anos: deslugares?”, escrito em colaboração com seis pesquisadores e artistas em dança.

Criado por Helena Bastos, em parceria com o músico Rogério Costa, em 1992, hoje o Musicanoar é integrado por Helena e Raul Rachou. “Dois é a estratégia mínima de grupo, né?”, diz Helena deixando escapar um sorriso largo.

 

Deslugares

O vazio ganha destaque quando é gerado por uma ausência. Essa sensação é provocada ao longo do espetáculo quando bastões vermelhos vão demarcando distâncias entre os dançarinos. De repente já não estão mais lá, mas a distância é mantida entre eles. Os bastões se transformam em chão movediço, em jogo de palitos, em parangolé. A música gerada pelo movimento no ar é composta por ações simples, na relação daqueles corpos com os objetos cênicos.

Helena Bastos e Raul Rachou em "Deslugares" (2013). Foto: Inês Correa.

Helena Bastos e Raul Rachou em “Deslugares” (2013). Foto: Inês Correa.

“Como é comemorar os 20 anos do Grupo com essa temática dos deslugares?”, perguntei aos intérpretes. “Esse nome tem a ver com o sentido de pensar a relação entre processo-produto em tempo real. Conversando com você agora, o tempo inteiro, a gente está nesse espaço realmente testando questões no corpo que tem uma proposição de se organizar em dança”, explica Helena.

“Estamos sempre buscando um lugar que ainda não existe, não há uma fórmula conhecida para seguir. A gente arrisca e tenta construir novos lugares, novos espaços que vão reconfigurando o tempo todo.”, diz Raul. Para ele, os deslugares estão implicados no processo criativo do Grupo, que começa com um impulso, com uma ignição, e vai dar em lugares diferentes do que esperavam de início.

A obra se transforma até mesmo depois de se apresentar. No dia seguinte da estreia de “Deslugares”, o final assumiu nova configuração. “Essa imagem que virou logomarca de toda nossa comemoração (foto abaixo), por exemplo, não está mais no espetáculo. Se você vir a nova versão vai pensar “puxa, me enganaram, eu não estou vendo essa cena (risos).”.

"Deslugares" (2013). Foto: Inês Correa.

“Deslugares” (2013). Foto: Inês Correa.

 

Movimento no ar, Musicanoar.

O Musicanoar celebra 20 anos. Uma militância se delineava num combinado de boca de urna. Eu, Helena Bastos, e Raul Rachou sussurrávamos entre ouvidos… lá, lá, lulala, lá no Itaim, bibi biiii! Eram eleições para presidente em 1989. Nosso candidato não ganhou… uuuuh! Três anos depois, no metrô, em São Paulo, estação Vergueiro, entre papos e achados, direção – “Estação Sé”, comício no Anhangabaú, dois sujeitos confabulam sobre um nome. Surge aí o Musicanoar. Nasce em trânsito. Um dos sujeitos era o músico Rogério Costa. O outro… já mencionei.

 

Raul administra, desde 1979, o estúdio de dança de sua mãe, Ruth Rachou. Apesar da herança artística, Raul só começou a dançar depois dos 40 anos, quando integrou o Grupo Ruth Rachou e, depois, o Musicanoar, em 1993.

Helena, que hoje é professora de dança do departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP), fez parte de movimentos importantes da dança paulistana, como o Movimento Teatro-Dança (década de 1990); a criação da Cooperativa Paulista de Bailarinos e Coreógrafos (1995); e da Cooperativa Paulista de Dança (2005), que contribuiu para a implementação do Programa de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo (2008). Além disso, Helena participou de um dos primeiros grupos independentes de dança da cidade que optaram por se organizar entorno da “criação coletiva”.

Helena Bastos em "A dama de Bambuluá" (1992). Foto: João Caldas.

Helena Bastos em “A dama de Bambuluá” (1992). Foto: João Caldas.

Rosa Hercoles, eutonista e pesquisadora, explica mais sobre esse contexto da dança independente em seu artigo “A singularidade no modo de criar do Musicanoar”, publicado no livro “Musicanoar, 20 anos: deslugares?”:

Somente a partir dos anos 80, os grupos surgidos pela associação de artistas com interesses comuns, de fato estabelecem relações produtivas colaborativas, eliminando a dualidade entre aquele que decide daquele que executa. As fichas técnicas do período são evidência dessa nova paisagem, onde para o crédito – concepção – encontramos a expressão “criação coletiva”.

E é por isso que, em vez de convidar um diretor, o Musicanoar convida, a cada nova criação, um “provocador coreográfico”, um olhar de fora que questiona as escolhas dos intérpretes-criadores e os ajuda a colocar pingos nos is. “Quando chamamos alguém é para compartilhar algo mais direcionado, dentro de uma proposta que a gente já descobriu”, explica Raul.

Passada a etapa de concepção, a provocadora coreográfica tem elementos para pôr a mão na massa. “Conforme a gente vai convivendo, vai havendo um fluxo de troca, por isso que chamamos pessoas em quem temos confiança para não cair naquelas questões de autoria. Ao mesmo tempo que há uma clareza (do papel de cada um), esses lugares são porosos. É como a gente trabalha, como a gente cria.”, complementa Helena.

Rosa Hercoles se sentiu à vontade ao assumir esse papel no espetáculo “Deslugares”. Segundo ela “nós três temos um temperamento cooperativo, então é tranquilo falar as coisas mais difíceis, é tranquilo falar as coisas mais legais, não vira cabo de guerra em nenhum momento.”.

Rastros desse “temperamento cooperativo” podem ser percebidos também no livro que, ao mesmo tempo em que celebra os 20 anos do Grupo, aponta contradições e até tentativas que não foram bem-sucedidas. Além da autorreflexão, o entusiasmo e o bom humor parecem ser condições importantes para as criações e produção de conhecimento do Musicanoar.

A criação artística do Grupo foi integrando investigação acadêmica e artística, um diálogo estimulado por cursos de pós-graduação e participação na consolidação do Centro de Estudos em Dança (CED), coordenado pela crítica e pesquisadora Helena Katz.

***

“Deslugares” fará, ainda, três apresentações: sexta-feira (17 de maio), sábado (18) e domingo (19), na sala Reneé Gumiel, Espaço Funarte, em São Paulo. Essa comemoração contou com a décima segunda edição do patrocínio do Programa de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo.

 

Espetáculo “Deslugares”

Dias: de 17/05 a 19/05

Horário: Sexta-Feira, às 20h; Sábado e Domingo, às 19h.

Quanto: R$ 5,00 e R$ 2,50 (meia). Bilheteria aberta uma hora antes do espetáculo.

Duração: 60 minutos

Faixa etária: a partir de 10 anos

Lotação: 63 lugares

 

Fonte de pesquisa:

BASTOS, Helena (org.). Musicanoar, 20 anos: deslugares? São Paulo, SP: Cooperativa Paulista de Dança, 2013.