Grupo Acessibilidade em Trânsito / Foto: Natália Ribeiro

Muito a se pensar sobre a dança inclusiva

Atendendo a uma necessidade no campo das artes, e mais especificamente da dança, realizou-se entre os dias 8 e 12 de setembro de 2010 o 1° Encontro de Dança Inclusiva – O que é isso? (leia mais sobre ele aqui) em Salvador. O evento foi idealizado pelos dançarinos e pesquisadores Edu O., Fátima Daltro e Eleonora Motta e aconteceu no espaço Xisto.

A proposta deste evento foi realizar uma reunião de artistas com e sem deficiência, pesquisadores em dança, profissionais na área de comunicação, educação, psicologia e produção para promover um debate interdisciplinar sobre a participação efetiva das pessoas com deficiência no processo de inclusão social tão divulgada e difundida nos últimos tempos, sobretudo no campo artístico de dança. As discussões giram em torno de acessibilidade, profissionalização e inserção no mercado de trabalho de artistas/dançarinos com deficiência e que não tiveram acesso à informação e formação em dança nos ambientes acadêmicos e espaços formais de ensino de dança.

Anos atrás, a deficiência era discutida apenas do ponto-de-vista médico, recebendo um tratamento bastante específico e que já não cabe nas discussões de hoje. Não vemos mais a deficiência como problema ou anormalidade, mas sim como uma singularidade do indivíduo. Isso significa que, para a dança, a deficiência se apresenta como uma qualidade de movimento e corpo, encontrada em qualquer dançarino. Há quem diga que o dançarino com deficiência se diferencie em sua qualidade de movimento e solução de objeções, porém, não devemos esquecer que toda pessoa possui habilidades e impedimentos próprios, que todos estamos fazendo escolhas e adaptações constantemente, não sendo isso uma particularidade da pessoa com deficiência.

Embora muito se fale a respeito da dança inclusiva, sabemos que ainda existem diversos questionamentos sobre o tema. Primeiramente, devemos esclarecer que o termo dança inclusiva se disseminou entre os profissionais num momento de dificuldade em encontrar um termo melhor para falar em dança para/com pessoas com deficiência. Esse foi um dos pontos discutidos no evento e pudemos concluir que a até então chamada dança inclusiva nada mais é que dança. Segundo os participantes do encontro, não devemos tratá-la como uma categoria dentro da dança, pois feita por bailarinos, sejam eles com ou sem deficiência, deve chamar-se dança. Além disso, terminologias como ‘inclusivo’ ou ‘inclusão’ indicam que existe a exclusão e as pessoas que trabalham na área adotam um posicionamento contrário a uma dança que inclui pessoas por alguma característica que elas possuam. Aos poucos, a dança abre espaços para bailarinos com corpos e movimentação diversos e assim, aquilo que assemelhava-se a um ‘gueto’ toma outra configuração e se estabelece no cenário artístico.

Iniciativas como as do 1° Encontro de Dança Inclusiva – O que é isso? são capazes de disseminar conhecimento, ajudando na quebra de estereótipos e reconhecimento artístico.

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No primeiro dia de encontro, na mesa 1: A mídia, as políticas públicas e a produção inclusiva, tivemos uma discussão sobre inserção e acessibilidade para bailarinos e companhias que atuam no cenário artístico atualmente.

Paulo Braz, diretor teatral e membro da Comissão Organizadora do FILO – Festival Internacional de Londrina, propôs que o evento seja entendido como processo e não apenas um evento e que as discussões e posicionamentos sobre as artes sejam disseminadas para que os trabalhos com pessoas com deficiência ganhem reconhecimento. Ele citou Elisabeth Caetano Almeida: “O que nos assemelha e a diferença” e, a partir disso, falou sobre fazer um evento para que todos nós possamos nos incluir no universo da pessoa com deficiência, não o contrário. Isso contribui para o desenvolvimento do ser humano. Braz finalizou sua fala explicando que trabalha com atores, não com pessoas com deficiência e que devemos mudar nosso olhar em relação à deficiência, dando como exemplo que, a pessoa ao perder um sentido ganha outros quatro.

A pesquisadora e crítica de dança Helena Katz acredita que o fato de falarmos em inclusão indica que existe a exclusão e a necessidade de falar sobre inclusão na dança já carrega uma valoração. É essencial pensarmos na nomeação ‘inclusão’, e, ao politizarmos a discussão,  rejeitaremos essa terminologia. Ao substituirmos o termo dança inclusiva por dança assumimos a ideia: menos segmentação, mais globalização nas artes. É a maneira de abrigar todos dentro da dança, inclusive inserindo os encontros de dança inclusiva dentro de congressos de dança. Essa arte pode nos ajudar a pensar politicamente essa situação. Se nós, na dança, começarmos a praticar em todas as instâncias onde a dança acontece, nas universidades, nos teatros, nas escolas, nas ONGs, em qualquer canto onde estiver a dança, em todas as danças, nós abriremos mão de pensar na inclusão. Não parece interessante que se pense em um programa cada vez mais específico, um programa de políticas para a dança cênica, outro programa para as danças populares, outro programa para cadeirantes, outro programa para portadores de deficiência visual etc. Todo mundo que faz dança será abrigado no ‘guarda-chuva dança’.

O diretor de dança da Funceb (Dimac/Funceb), Alexandre Molina, questionou sobre a necessidade de uma divisão específica nos editais para projetos que incluam pessoas com deficiência. Em 2007, a Secretaria de Cultura propôs algumas reformulações. Surge, então, a Diretoria de Dança dentro da Fundação Cultural, que antes fazia parte da Diretoria das Artes Cênicas. E com isso, existe o compromisso de pensar programas, projetos e políticas específicos para cada uma dessas áreas.

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No segundo dia de encontro, na mesa 2: A formação do artista com deficiência, faltou tempo para discutir todo o conteúdo apresentado pelos palestrantes.

Carolina Teixeira dividiu opiniões com as quais tanto os outros palestrantes quanto o público  concordaram: ela acredita que esse espaço de ‘dança inclusiva’ ou ‘espaços inclusivos’ guetificam mais e isso acaba indo na contramão do que se acredita sobre o assunto. Cada vez que aceitarmos esse lugar inclusivo, ele estará nos colocando em um lugar que não é o comum de todo o resto das pessoas. Em sua pesquisa de mestrado, prestes a ser concluída, ela discute o papel e lugar do bailarino hoje e o quão importante é esse bailarino olhar para si como pensador. A relação ‘dança e deficiência’ no Brasil se inicia com um olhar espetaculador e especulador. Isso cria uma dificuldade da leitura que o público tem do trabalho artístico, porque ele não consegue captar o olhar existente na relação do deficiente com sua própria deficiência. Por mais políticas e nomenclaturas, as críticas são as mesmas, são discussões sem fim. E, assim como o público, a família e a escola não estão preparados para os novos entendimentos. Finalizando sua fala, Teixeira deixou uma questão para o público: será que os grupos estão atuando artística e politicamente?

Fátima Daltro acrescentou ainda que a mídia mostra o corpo com deficiência como corpo congelado. Não há motivos para reduzir as possibilidades do bailarino com deficiência, uma vez que certos movimentos só o corpo dessa pessoa faz: são singularidades, particularidades de cada corpo. Daltro cita a teoria Corpomídia, proposta pelas pesquisadoras Helena Katz e Christine Greiner. O corpo entendido como corpomídia, um sujeito biológico e culturalmente implicado, constroi conhecimentos através de seus diálogos com o mundo, por ser assim, somos corresponsáveis pelas informações que comunicamos, por isso mesmo a imagem do ‘coitadinho’ não tem precedentes, é necessário evitá-la. Além disso, ela propôs duas questões: por que dizer de modo distinto dança para pessoa com deficiência?, ou seja, por quais razões precisamos distinguir dança e dança inclusiva? E complementa respondendo que se o que o corpo faz é dança não precisamos criar subdivisões. A segunda questão: pra que superar limites? A crença de que o bailarino com deficiência precisa superar seus limites é bastante enraizada na sociedade e em grande parte da classe artística que ainda pensa a dança fundamentada no dito corpo ideal. A pesquisadora acredita que cada pessoa é um corpo singular rico em suas possibilidades, e que não precisa seguir um modelo específico ou superar limites, mas sim mostrar suas qualidades artísticas.

Finalizando a mesa, Teresa Taquechel descreve a trajetória de Angel Vianna e como o trabalho com a diversidade foi um crescente durante os anos dedicados ao ensino. Em 1956, Angel Vianna já integrava pessoas, sem separar os alunos com e sem deficiência. Teresa acredita que quando o “corpo não é tão perfeito” as pessoas buscam outros caminhos (e aí cita o bailarino Klauss Vianna, que tinha diferença de três centímetros entre uma perna e outra). Ela citou ainda a Pulsar Cia. de Dança, composta por bailarinos com e sem deficiência, da qual atualmente é diretora. Ela finalizou sua participação dizendo que a arte é transformadora e que as pessoas a fazem porque têm necessidade de fazer e que esse encontro é importante para legitimar os trabalhos artísticos.

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No terceiro dia de encontro, durante a mesa 3: Dança Inclusiva. O que é isso?, os participantes contaram suas trajetórias profissionais na área e discutiram sobre terminologias e como adaptar nossos trabalhos aos que já existem na área.

Anderson Leão, coreógrafo da Cia. Gira Dança de Natal, diz que a companhia decidiu abolir o termo dança inclusiva. Ele acredita que é preciso ter calma e paciência com o público neste processo de aceitação desta dança que quebra com padrões estabelecidos anteriormente e questiona sobre estratégias para atrair o público.

O coreógrafo Henrique Amoedo, que vive em Portugal e está à frente da Cia. Dançando com a Diferença, diz que dança inclusiva é a terminologia encontrada por ele para denominar seu trabalho até o momento. Amoedo começou na área em 1994 e durante os anos houve diversos termos que nunca eram completamente adequados; dança inclusiva pode parecer provocador. É um termo que pode ser usado tanto em trabalhos com foco terapêutico, educacional ou artístico.

A atriz e professora do método DanceAbility, Neca Zarvos, relatou um pouco de sua trajetória e os principais conceitos dessa técnica de dança. Segundo ela, o coreógrafo americano Alito Alessi parte do contato e improvisação, que assim como o DanceAbility, também é uma técnica do contato dos corpos. A metodologia do DanceAbility não funciona muito bem dentro da instituição porque falta diversidade e, pelo mesmo motivo, não funciona em espaços de arte convencionais. Para o processo artístico realmente acontecer são necessárias pessoas com e sem deficiência. O trabalho do Alessi nasceu da necessidade de democratizar a dança; ele acreditava que por mais que a dança estivesse abrindo para novas técnicas, os corpos continuavam muito semelhantes. O DanceAbility foca nas possibilidades, naquilo que a pessoa tem pra dar. Essa é uma forma de as pessoas se sentirem ativas e respeitadas. A ideia é usar a arte como instrumento para as pessoas se expressarem. E com esse trabalho que foca nas diversas habilidades e na diversidade de corpos, somos levados a pensar e ver diferente.

A professora Lucia Matos começa nessa área com um trabalho com surdos. Ela acredita que se não pensamos mais em dicotomias (alma/corpo, mente/corpo), mudamos algumas visões. Para ela, a dança é um processo artístico educativo e uma ação política. Não dá pra sustentar a ideologia de que existe um corpo idealizado que dança, assim como não dá pra achar que todas as danças inclusivas são iguais ou todas as danças contemporâneas são iguais.

Marcia Abreu começou a trabalhar em 1994 na rede de hospitais Sarah e é uma das pessoas responsáveis por incluir a dança na instituição. Segundo ela, depois de um trauma a pessoa precisa reorganizar os movimentos para possibilitar sua dança e encontrar novas características para os “movimentos antigos”. Pode-se perceber o medo diante das novas possibilidades, mas Abreu acredita que e preciso “desparalisar”.

O bailarino Daniel Silva, que há dois anos e meio faz parte da Cia. Gira Dança de Natal, disse se perceber enquanto corpo politizado e relatou suas próprias experiências. Ele espera que o  movimento não retroceda, para que todos os direitos e espaços conquistados pelas pessoas com deficiência não sejam retomados.

Bailarino da Pulsar Cia de Dança, Rogério Andreoli relatou sobre o período em que começou a dançar, quando a dança ainda era vista como terapia, não arte. Ele não acredita em dança inclusiva, e afirmou que, tendo ou não deficiência, seria um bailarino; não é a dança inclusiva que o coloca no palco, mas sim, sua arte. Para Andreoli, é perigoso nomenclaturar as coisas porque isso pode virar um gueto. O bailarino finalizou com a seguinte frase: “a dança é o que nos une aqui, não o fato de ser inclusiva, ou usar muleta ou cadeira de rodas. O que nos une é a dança, não a deficiência.”

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Grupo Acessibilidade em Trânsito / Foto: Natália Ribeiro

Atividade com o Grupo Acessibilidade em Trânsito / Foto: Natália Ribeiro

Nos últimos dois dias de evento tivemos os ‘cirandões’ no lugar das mesas. Embora ainda se constituísse como um espaço de reflexão e troca de experiências, não contava mais com o formato de palestras. Os participantes do evento tiveram a oportunidade de mostrar um pouco do seu trabalho para que o grupo pudesse tomar conhecimento.

Durante todos os dias tivemos oficinas de dança e áudiodescrição e no período da noite, apresentações artísticas com o Grupo X de Improvisação, APAE, Grupo HIS Contemporâneo de Dança, Pulsar Cia. de Dança, Cia. Gira Dança, entre outros.

De modo geral, podemos resumir todo o evento como uma maneira de mobilização e troca de informações dos profissionais que trabalham com dança. Existe a necessidade de abrir novos caminhos e mostrar ao público a potencialidade de trabalhos com diversidade, colocando num mesmo espaço pessoas com e sem deficiência. São trabalhos artísticos e que querem ser vistos como tal. Ainda que a sociedade e as cidades não sejam acessíveis às pessoas com deficiência, conseguimos provar que acessibilidade não é uma questão para a dança. A dança vem quebrando estereótipos e ganhando espaço. Toda a abertura que os profissionais de dança apresentam, só fará sentido quando alcançar o entendimento do público e da comunidade. Essa busca deve continuar em cada trabalho artístico, tentando se afirmar como arte e se distanciando do pensamento terapêutico. Precisamos que essas discussões acontecidas durante o 1° Encontro de Dança Inclusiva – O que é isso? ecoem em outros lugares, para que o entendimento a respeito da dança seja cada vez mais claro.

Citamos o posicionamento do bailarino Edu O., semelhante ao da maioria dos participantes: “Eu não me vejo nos discursos (da inclusão); como artista eu me sinto diminuído. Minha arte ultrapassa a minha deficiência e eu não a escondo, mas também não a valorizo. Eu simplesmente sou e minha dança é o que eu sou. Eu falarei sobre deficiência em meu próximo solo porque eu quero falar, não porque eu tenha que falar.”

Virgínia Souza é formada em Comunicação das Artes do Corpo com habilitação em Dança. Trabalhou em instituições como professora de dança para pessoas com deficiência, realizou cursos sobre DanceAbility com as Companhias Candoco e DV8 na Inglaterra. Fatima Daltro possui licenciatura em Dança pela UFBA e mestrado em Artes Cênicas também na UFBA. Doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e atualmente é professora do curso de Dança da UFBA, dançarina e diretora do Grupo X de Improvisação.