Multiculturalismo X Mimeses poética

Nas malhas da capital Portuguesa, em trinta diferentes endereços, realizou-se um grande evento internacional de artes performativas, o “Alkantara” Festival, que quer dizer a ponte em árabe. Foram 34 espetáculos diferentes de artistas e companhias vindos da Bélgica, Brasil, França, Líbano, Grã-Bretanha, Moçambique, Tailândia, Itália, Turquia, Egito, Alemanha, República Checa, Espanha, Japão e Portugal. Entrelaçados em tal programação, seis espetáculos resultantes de um projeto de co-produção entre o Festival Panorama de Dança e o Alkantara Festival. Dedicado à colaboração internacional e ao diálogo intercultural, Encontros Imediatos 2005 – 2006 teve duração de um ano, no qual treze artistas de diferentes contextos culturais trabalharam juntos com teóricos se debruçando sobre temas como: interculturalismo, negociação cultural e criação/apresentação de arte em contextos culturais diferentes.

No calor do final da primavera, por entre braseiros de sardinha exalando seu forte cheiro e expelindo nuvens de fumaça, bem onde o Tejo encontra o Atlântico, estréiam para o público lisboeta as seis obras resultantes deste processo: Estratégia nº1: entre (Dani Lima – Brasil e Sodja Lotker – Sérvia) [1] , Aqui enquanto caminhamos (Gustavo Ciríaco – Brasil e Andrea Sonnberger – Áustria), Caixa Preta (Cláudia Muller – Brasil e Cristina Blanco – Espanha), Dueto (Filipa Francisco – Portugal e Idoia Zabaleta – Espanha), No body never mind, 003 (João Galante, Ana Borralho – Portugal e Atsushi Nishijima – Japão), Karima meets Lisboa meets Miguel meets Cairo (Miguel Pereira – Portugal e Karima Mansour – Egito).

Na Lisboa pós-moderna, em contexto do grande evento, as seis criações ganham um sentido localizado. Em meio a visitantes desorientados (turistas), a multicultura local resultante de um processo histórico de colonização e migração de cinco séculos, co-locar, des-locar, re-locar, passam a ser operações constitutivas do acontecimento. De modo geral, podemos concluir que a dinâmica dos resultados artísticos segue o padrão onde o discurso passa a ser dança e a dança um pensamento ordenado. O exemplo que ilustra mais imediatamente tal afirmativa é o duo-gráfico de Filipa e Idoia, uma trama emaranhada pela enunciação invertida das memórias, desejos e imaginação das duas criadoras. No confronto com o público, o que aparece é certa ânsia, como se fosse imperativo antecipar a leitura, como se mais importante fosse a noção de “Peça Imaginária” do que todo o rico material, por elas levantado, através das cartas trocadas durante um período de 11 meses.

Neste caso, mais notadamente, a teoria se fez pesar sobre a encenação que, embora estivesse bem ambientada (Galpão do Hospital psiquiátrico Miguel Bombarda), cenicamente bem resolvida (pela ação de tecer uma teia com um fio vermelho que, ao longo da peça, ia encobrindo todo o espaço e envolvendo o espectador); embora contasse com o desempenho performático exemplar de Idoia Zabaleta, a soma do todo não alcançou o mesmo efeito que o de suas partes, soando um tanto didático, ilustrativo de certa “teoria da performance arte”.

Já na criação de Cláudia e Cristina, a ausência é o centro dos interesses. “Caixa Preta” é o termo utilizado para identificar a central de armazenamento dos dados de navegação de uma aeronave, mas também se refere ao suporte tradicional de encenação das “artes vivas” (a estrutura do palco italiano). As artistas encontram na metalinguagem a estratégia para colocar em cheque um conceito chave da encenação: a presença. Estabelecendo as instruções de como se comportar para assistir uma peça que vai acontecer e simulando as ações de uma peça que já se passou, elas encontram um subterfúgio para não fazer “a peça” e ainda assim encenar, de modo irônico, os problemas ontológicos ligados a ela. Embora a preocupação com correntes teóricas da performance estivesse manifesta nas ações implementadas, a experiência foi mais bem sucedida.

A idéia de não fazer um espetáculo também persegue duas outras obras deste projeto: Aqui enquanto caminhamos e No body never mind 003. No primeiro, Gustavo e Andréa convidam o público, de em média 15 pessoas, a fazer um percurso pelas ruas labirínticas do bairro pitoresco de Alfama. O fato de o grupo estar envolvido por um elástico cria uma tensão entre os transeuntes “informais” e aquela instalação ambulante. As condições dessa experiência detonam a idéia já estabelecida de platéia. Quem está do lado de dentro ouve de modo diferente, se pergunta o que pode acontecer, vê as cenas que a vida daquele sítio produz como um filme cujo roteiro tem montagem caótica. Quem está de fora é surpreendido por uma situação um tanto bizarra. Traídos em suas expectativas, quem pagou assiste e é assistido, e quem não pagou é paisagem e audiência ao mesmo tempo. Nesse momento, onde é difícil diferenciar o que de fato é real e o que é representação, o imaginário corre solto e um jogo de associações constantes busca desesperadamente por “sentido”.

No segundo trabalho, os corpos de Ana e João, vestidos e atirados no chão, fornecem sons que Atsushi re-elabora tecnicamente e devolve para o ambiente. Tal atividade prolonga-se por uma hora e meia ou duas. O espaço é imponente, mais parecido a um salão de convenções sem os móveis – não nos pareceu muito apropriado para o tipo de experimento. Os artistas elaboram uma situação que exige do espectador um tempo e um estado de atenção particular que pode até vir a provocar uma re-elaboração do sensível. Talvez possamos dizer que a experiência se tratava de aplicar um tradicional dispositivo coreográfico a um outro nível de organização biológica (subtrair material do corpo – ondas sonoras – para compor numa orquestração de um terceiro).

Sem tirar o valor poético de tais criações, nos parece que o espaço que seria supostamente aberto para elaborar questões como imigração, minorias, globalização, intolerância, xenofobia, revelou a preocupação dos artistas em levar adiante modelos elaborados, na prática e na teoria, por uma tradição “pós-fim da arte”, reeditando sistemas de formas “a priori” que determinam certo modo histórico de criar arte performativa. Estamos nos referindo a práticas artísticas institucionalizadas pelo Departamento de Performance Art da Universidade de Nova York, mas que possui muitas outras referências e antecedentes, em tempos e geografias próximas e distantes. O que importa é que, como nos ensina Rancière (2000: 18), as formas de inscrição do sensível na comunidade definem a maneira como as obras ou performances “fazem política”.

Ao nosso entender, há certa perda, degradação, entropia nessa “vontade de ser performance art”. Se por um lado oferece uma oposição, resistência a formas de representação tradicionalmente desgastadas e que ainda hoje são hegemônicas, por outro, elabora uma sensibilidade baseada em normativas que definem condições em que as “imitações” (princípios de adaptação das formas de expressão do gênero) podem ser reconhecidas como pertencendo propriamente a um modo de fazer “arte apreciável”.

Mas, eis que de repente, na boemia do Bairro Alto, num ambiente habitado por bêbados, gays, a burguesia, drogados etc., em um local um pouco mais acima da Rua do Poço dos Negros – que ganhou esse nome porque lá antes havia uma vala comum para cadáveres negros e hoje tem o “Clube de Música e Dança Negra Beleza” -, num decadente palácio em ruínas se encena o Combate: Karima X Miguel, Lisboa X Cairo – talvez esse fosse um nome mais apropriado para a obra. O contexto dessa região da cidade empresta pertinência ao trabalho dos artistas onde contrates e tensão constituem a atmosfera. Aqui não se trata de uma distinção no interior dos modos de fazer arte, como os demais. O que está em jogo é a distinção de um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte. Inicialmente, Miguel, português, se apresenta literalmente como a sombra de Karima. Ele alcança um efeito impressionante, cobrindo toda sua pele com uma malha preta e por cima dessa malha usa uma peruca e um vestido também pretos. Dessa maneira, ele suprime o tom branco de sua pele e com ele também os olhos, boca, traços fisionômicos e etc. Esta silhueta, que aponta para a imagem ausente de Karima, profere um discurso que relata do ponto de vista dele o percurso do trabalho desde o primeiro encontro entre os dois.

O relato de Miguel vai preenchendo a ausência da aparência de Karima, nos oferecendo elementos para concluir que ela é uma artista limitada, presa a referências de estéticas ultrapassadas e pouco flexível para aprender um jeito “mais bacana”! No imaginário, aos poucos, vai tomando forma uma mulher mimada, financiada por sua rica família egípcia, artisticamente educada pelas tradicionais escolas da Europa (Inglaterra, França e Itália), um tanto frívola e displicente com relação ao trabalho. A explanação de Miguel é tão retoricamente convincente que, ao final de sua participação, quando Karima deve entrar para realizar sua parte do trabalho, uma pergunta fica em suspensão: como ela vai se sair dessa?

Karima, egípcia, começa sua ação falando em seu idioma – marca da relação do desentendimento característico do encontro com Miguel; traz para cena duas caixas, uma de um tênis de grande marca que os opõem – signo de assimilação cultural; faz uma seqüência coreográfica com vocabulário notadamente reconhecido como Nova Dança, outra com características de improvisação – reafirmando, de algum modo, a imagem dela criada por Miguel. Então ela pára, olha para o público e diz: “vocês devem estar com pena de mim. Devem estar pensando que eu não consigo ou não sei fazer o que vocês esperam que eu faça” – pondo em questão a idéia de autonomia artística e condução da curadoria desse tipo de projeto; traz para o centro do palco a segunda caixa de papelão, de onde tira várias outras de tamanhos menores, ordenando-as em formato de pilha. Por último, tira uma garrafa de água enriquecida com várias propriedades provenientes de países do Oriente Médio e que é encontrada disponível no comércio europeu para o consumo. Ela se põe a ler o rótulo nos diferentes idiomas que nele figura.

Ao final, abre a garrafa, bebe seu conteúdo, devolvendo-o imediatamente acrescido de um soldado de chumbo que aparece misteriosamente do contato da água com a boca da performance e que ela põe em cima da pilha de caixas. Karima volta a falar em egípcio e finaliza seu trabalho deixando seu recado para Miguel, “O Português”, para o projeto, para o evento, para a cidade e para a prática colônia, que em diferentes camadas busca espetacularizar a questão da diferença cultural, deslocando-a das periferias para os palcos da capital. O “homem racional”, que se crê intelectualmente evoluído, que supõe ter um ponto de vista privilegiado, mesmo quando se refere à dor e aos males criados por ele sobre o outro, pensa que tem as alternativas para transformar as relações de exploração. Porém seus atos bem intencionados estão cheios de armadilhas, inevitavelmente carregados de ambivalência (como nos esclarece Bauman em Modernidade e Ambivalência).

O que fazem Karima e Miguel é encenar uma síntese dos conflitos gerados pelo processo radical de imigração, conseqüência da exploração de alguns países até a instalação da fome, miséria, violência e experiência da morte como regra territorial. O modo de criação, os dispositivos cênicos e o modo de estrutura da obra, dos quais discordaram Karima e Miguel, serviram apenas para constituir o cenário de luta por poder que extrapola aquele encontro em particular e serve de parâmetro de referência para muitas outras instâncias sócio-políticas. O trabalho, que durante o processo parecia não funcionar, no meu entender foi o que mais se aproximou dos objetivos primeiros do projeto.

Nota:

[1] Esta criação não será alvo de nossa reflexão, pois por problemas logísticos não nos foi possível assisti-la. Embora seja ela parte importante do resultado de tal empreendimento, acreditamos que esta lacuna não invalida as idéias aqui expostas.

Bibliografia:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar – 1999.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: editora 34 – 2000.