Não só um coração | More than just a heart

Falar sobre a dança contemporânea paulistana é um desafio, pelo simples fato dessa dança se parecer com um mosaico. São Paulo é uma cidade que sofre influências de diferentes culturas, uma terra de muitas línguas e de muitas caras. A exemplo disso, sua dança apresenta traços e sotaques daquilo que é produzido em Nova York, França, Bélgica, Alemanha, Holanda ou até mesmo Recife. Uma mistura de tendências e estilos, muitas vezes em um mesmo trabalho. Embora a característica marcante dessa produção seja a absoluta falta de verbas e de uma política pública eficiente. Ou melhor, de uma política pública. Fato que interfere diretamente na produção e na pesquisa.

A dança paulistana sofre com o descaso. Sem aporte financeiro, tanto do Estado como de patrocinadores, é praticamente impossível manter uma companhia e todo o peso de sua estrutura. Com raras exceções, como o Estúdio Nova Dança, que resiste bravamente, boa parte das coreografias são elaboradas no econômico formato de solos, de duos e até de trios. Raramente um número maior de artistas divide o palco. Mesmo o Nova Dança foi obrigado a pôr um ponto final no Terças de Dança, uma programação que abria espaço para a experimentação e para os jovens artistas, devido a falta de patrocínio para bancar os custos básicos com luz e som.

Sem um teatro específico e a dificuldade de circular com um espetáculo, bailarinos e coreógrafos encontram no Centro Cultural São Paulo um abrigo. O Centro Cultural São Paulo abre suas portas e mantém uma programação constante durante o ano, que revelou jovens talentos e trouxe à cena nomes quase esquecidos. O Sesc marca sua programação com eventos pontuais, como o Outras Danças no Ipiranga. Também não dá para não mencionar a Bienal Sesc de Dança.

Mesmo diante de tantos obstáculos, a produção, não apenas de coreografias, como de pesquisas acadêmicas, surpreende. Uma safra de artistas está ligada às universidades e aos seus debates, reuniões em centros de estudos e encontros informais promovem a circulação de informações, idéias e reflexão. Não à toa, que Marta Soares e Vera Sala foram contempladas, cada uma, com uma bolsa da Guggenheim Foudantion.

Mesmo em um ambiente tão hostil a produção é constante. Contato e improvisação mesclam-se ao minimalismo, às idéias do butô, ao expressionismo de Pina Bausch, ao acaso de Merce Cunningham, ao hip hop ou mesmo às performances, às artes plásticas, à literatura e à música. Para compreender melhor esse universo é preciso voltar o olhar para o corpo dos bailarinos. Neles estão inscritos diferentes técnicas e diferentes nomes. Feldenkrais, Pilates, Steve Paxton, Ruth Rachou e Klauss Vianna, personalidade marcante na história da dança. A produção é marcada pelo diálogo e a intersecção de técnicas e expressões artísticas. O hibridismo é uma característica forte dessa dança. O curioso é que essa forma de criação plural é totalmente diferente do momento da concepção de uma coreografia. Todo o processo de investigação é marcado pelo isolamento dos artistas.

Intérpretes-criadores desenvolvem uma dança sem muitas cores, muitas vezes sem alegria, entretanto composta por uma densa pesquisa gestual. Nada para encher os olhos. A beleza vem da investigação, das discussões em torno do que é a dança, sua compreensão como forma de pensamento, em sintonia com as discussões científicas, filosóficas, tecnológicas e sociais do momento. Movimentos que desafiam o olhar do público, que incomodam, aguçam e convidam ao debate. Há quatro anos acompanho ensaios e espetáculos e observo uma forte presença da improvisação como um dos pilares do processo de criação. A improvisação surge tanto como procedimento para colher material durante a pesquisa, quanto está presente no palco. Muitas vezes não há cenários ou figurinos, os objetos utilizados em cena funcionam tanto como um “segundo” intérprete, como adquirem as funções anteriores. Projeções de vídeo e imagens contribuem para a ambientação cenográfica e coreográfica. A interação de diferentes tecnologias dialogam com o corpo que dança. A desconstrução do movimento e a fragmentação do corpo que dança compõe trabalhos como o Marta Soares, por exemplo.

Ao mesmo tempo em que os jovens talentos batem à porta, São Paulo conserva companhias tradicionais, que marcaram a história da dança na cidade. O Stagium, sempre coerente com seus ideais, com sua dança tão “brasileira”, que rompe fronteiras. O Cisne Negro e o Balé da Cidade contam com experiência e a apurada qualidade técnica dos bailarinos.

O ano de 2004 aponta para mudanças no cenário da dança contemporânea paulistana. Primeiro, pela organização política de bailarinos e de coreógrafos na forma do movimento Mobilização Dança, que conquistou da prefeitura uma verba de R$ 900 mil, dividida entre 35 companhias. Os grupos circularão por dez teatros, inclusive nos CEUS, na periferia. A primeira grande conquista está na atitude dos artistas em deixarem de lado interesses particulares e exclusivistas. A união e a organização levaram ao debate, à apresentação da dança contemporânea aos vereadores e ao poder executivo e acima de tudo à sociedade, que poderá conferir parte da produção paulistana até o mês de maio. Com o Mobilização, a dança passou a existir, sua carência parece ter sido notada pela prefeitura, que inaugura no mês de março um Centro Coreográfico dentro da Galeria Olido. Apenas um primeiro passo foi dado. Ainda há muito que fazer, principalmente na manutenção do que foi conquistado, na forma de uma Lei de Fomento específica para a dança, assim como a batalha por verbas para a pesquisa e a criação de espetáculo e o registro dessa documentação. Uma jornada de fôlego pela frente.

* Repórter do Caderno 2 do Estado de S. Paulo.Translation by Sarah Hyde, Ccaps Translation and Localization.

Talking about contemporary dance in São Paulo is a challenge, simply because this dance is a mosaic. São Paulo is a city that feels the influences of other cultures, a land of many languages and many faces. An example of this fact, local dance presents traces and accents of that which is produced in New York, France, Belgium, Germany, Holland or even the Northeastern Brazilian city of Recife. There is a mixture of trends and styles, many times in a single performance. The marking characteristic of this production is the complete lack of funding and an efficient public policy. Or better yet, a public policy, a fact the directly interferes with production and research.

Dance in São Paulo suffers from indifference. Without financial support from the State or private sponsors, it is practically impossible to maintain a company and all of the weight of its structure. With rare exceptions, such as Estúdio Nova Dança (New Dance Studio), which courageously resists, a good portion of the choreographies are created in the economic format of solos, duos and trios. Rarely, a larger number of artists share the stage. Even Nova Dança was forced to close Terças de Dança (Dance Tuesdays) – a program that opened a space for young artists to experiment their talents – due to a lack of sponsorship to meet basic costs such as light and sound equipment.

Without a specific theatre and because of the difficulty of traveling with a performance, dancers and choreographers find a shelter in the São Paulo Cultural Center (CCSP). The center opens its doors and offers programming throughout the year, some of which led to the discovery of young talents and brought practically unknown names to the scene. SESC (Commercial Social Service) marked its programming with punctual events, such as the Outras Danças no Ipiranga (Other Dances in Ipiranga). I also must not forget the mention the Sesc Dance Biennial. Even faced with so many obstacles, the quality of the production surprises, and not only the choreographic aspect of it, but also in terms of academic research. A harvest of artists connected to the universities and to their debates, meetings in study centers and informal meetings promote the circulation of information, ideas and reflection. It was not merely by chance that Marta Soares and Vera were each granted a scholarship from the Guggenheim Foundation.

Even in such a hostile environment, production is constant. Contact and improvisation blend with minimalism, with the ideas of butô, with the expressionism of Pina Bausch, with the randomness of Merce Cunningham, with hip hop or even performances, with plastic arts, with literature and with music. To better understand this universe, it is necessary to look again at the body of the dancers. In these bodies, are written different techniques and different names. Feldenkrais, Pilates, Steve Paxton, Ruth Rachou and Klauss Vianna, an acclaimed personality in the history of dance. Production is marked by dialogue and the intersection of techniques and artistic expressions. Hybridism is also a strong characteristic of this dance. The interesting thing is that this form of plural creation is completely different from the moment of choreography’s conception. The entire investigative process is marked by the isolation of the artists. Interpreter-creators develop dance without many colors, many times without happiness, although composed of a dense research of gestures. Nothing to knock your socks off. The beauty comes from investigation, from the discussions on what dance is, its concept as a form of thinking in tune with the scientific, philosophical, technological and social discussions of the moment. Movements that challenge the public eye, that cause discomfort and that stimulate the debate.

For four years, I have been following rehearsals and performances and I have observed that improvisation is one of the pillars of the creative process. Improvisation emerges as much as a procedure to collect material during research as it does on stage. Many times there are no sets or costumes, instead the objects are used in the set as much as a “second” interpreter as they acquire previous functions. Video and image projections contribute to the scenographic and choreographic adaptation to the environment. The interaction of different technologies perform dialogues with the dancing body. The deconstruction of movement and the fragmentation of the dancing body are found in works of Marta Soares, for example. At the same time that many talented youth knock on the door, São Paulo also conserves traditional companies that left their mark on the history of dance in the city. The Stagium Ballet Group presents a consistently “Brazilian” dance that moves across borders. The Cisne Negro (Black Swan) and Balé da Cidade (Ballet of the City) benefit from experience and the advanced technical quality of their dancers.

In 2004, there will likely be changes in the contemporary São Paulo dance scene. First, due to the political organization of the dancers and choreographers through the Mobilização Dança (Dance Mobilization) movement, which received a budget of R$ 900,000 from the city that was divided between 35 companies. The groups circulated through ten theatres, including in the CEUS theatres in the peripheral areas. The first great accomplishment is in the artists’ attitude: they are able to leave aside particular and exclusivist interests. Union and organization led to debate and it also led to the presentation of contemporary dance to city councilmen, to the executive power and above all to society, which can experience a taste of the São Paulo production until the month of May. With Mobilization, dance began to exist, its needs were noticed by the city. During the month of March, a Choreographic Center was inaugurated inside the Olido Gallery. This is only a first step. There is still a great deal to do, principally to hold on to what has been accomplished. Future goals should include an Incentive Law particularly for dance, and the battle must continue for research funding, for the creation of new performances and for the recording of this documentation. A difficult journey lies ahead.

* Reporter on Caderno 2 at Estado de S. Paulo newspaper .