Negro provençal | Negro provençal

Texto escrito para a Revista Obscena nº 1 com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian e resultante de uma parceria com o site brasileiro www.idanca.net.

De um “negro provençal”, diz o arquitecto italiano Rudy Ricciotti acerca da cor escolhida para compor o Pavillion Noir, o novo Centre Chorégrafique National (CCN) de Aix-en-Provence, feito à medida e imagem do seu impulsionador, o coreógrafo Angelin Preljocaj, “seco, ossuoso, tenso, magro como a figura, esse físico qualificado pela pele e pelos ossos”. Projectado em 1999 e sucessivamente adiado até à inauguração em Novembro de 2006, com a presença do Ministro da Cultura Renaud Donnedieu de Vabres e toda a corte burguesa de Aix-en-Provence, o edifício destaca-se na bucólica vila do sul de França pelo corte radical que imprime à paisagem (“um meteorito que caiu em pleno coração de Aix-en-Provence”, diz o coreógrafo), pela mensagem que faz passar à comunidade artística local e nacional e por simbolizar o reconhecimento de um empenho pessoal para a valorização e acessibilidade da dança contemporânea francesa por todo o mundo.

Na verdade, é forçoso afirmar-se que o Pavillion Noir constitui o primeiro espaço para a dança, que acumula estúdio de ensaios e auditório, no conjunto dos 19 centros coreográficos espalhados pelas 22 regiões francesas. A concessão do espaço de trabalho é uma declaração de reconhecimento político do contributo de um artista que trabalha em permanência, com três elencos ao mesmo tempo, se apresenta em Paris, Nova Iorque, Japão e México no mesmo mês e, portanto, justifica as contestações (algumas razoáveis, outras fruto da inveja) em torno dos financiamentos públicos que suportam integralmente o funcionamento do edifício. Até agora vivendo, tal como os seus colegas directores de CCNs na dependência de co-produções e colaborações, sendo forçado a circular – condições que, face às “provas do trabalho feito”, considerava apenas possíveis por “inércia”, citando Nietzsche: “esperar pelo alvo é deixá-lo passar ao lado” –, Preljocaj dá por terminada a busca incessante de um espaço de apresentação, que se destaca, pelo seu simbolismo e ideal, do contexto francês.

“Senti sempre que faltava à dança as ferramentas e os lugares identificáveis. Foi por essa razão que nos batemos para conquistar este espaço. É muito política [essa luta]”, diz Preljocaj. Uma opção que custou caro à vila de Aix, onde paira o fantasma de ser culpado pela suspensão em 2005 do festival Danse à Aix, por decisão municipal de concentração de fundos num só projecto em detrimento de vários outros, como aquele festival com 18 anos de história, que tinham um passado e uma identidade. Dizem os restantes criadores, diz a crítica – a revista Mouvement, por exemplo, publicou violentos comentários à suspensão do festival – e diz alguma da população que teme a imposição de um gosto em detrimento da pluralidade. François-Xavier de Peretti, deputado municipal da UDF, partido de direita, vai mais longe apontando o dedo à presidente da Mairie Maryse Joissains, do também partido de direita, ainda no governo, UMP: “Não há qualquer estratégia nem unidade na política cultural. Decepou-se a delegação e asfixiou a direcção cultural” (Le Ravi nº. 35, Nov. 2006).

O coreógrafo refuta as críticas, legitimado pela presidente do município e pela convicção na importância da aquisição simbólica daquele espaço. Pelo menos é esta a ideia que se quer passar, fazendo pouco caso dos protestos em torno dos quase € 6.400.000 que custaram os 3.000 metros quadrados do Pavillion Noir, com os seus quatro estúdios de dança, uma sala de espectáculos com 386 lugares, escritórios, armazém e espaço para residências.

O edifício, em si mesmo, é uma metáfora da dança contemporânea: exposta e ainda assim secreta. Se a sala de espectáculos está escondida e meio-enterrada no solo (“é o ventre do edifício, é visceral o que lá se vai passar, é qualquer coisa que se tem que fazer por merecer”, diz Preljocaj), as paredes de vidro do restante edifício deixam espreitar para o seu interior, mostrando as salas de ensaio, os escritórios, as zonas de descanso, os estúdios onde se processa a criação. “Por um lado, uma certa forma de exibicionismo naïf, por outro um apelo ao voyeurismo”, desvenda o coreógrafo. Aquilo que, à partida, deveria estar recolhido, pelo seu carácter de experimentação e insegurança, devedor de uma intimidade necessária à criação, é aqui exposto, aberto com vista para o campo. Os bailarinos sentem-se confortáveis com este convite à partilha despudorada de um saber e uma prática, que não deixa de causar alguma estranheza. O coreógrafo queria que as pessoas soubessem o que se passa lá dentro: “não se trata de uma companhia de seguros ou um banco, mas de um local de criação”. Criação feita no limite, porque “no esgotamento, o intérprete não pode mentir, nem a si mesmo, nem ao olhar do outro. Nesse momento projecta-se uma estética do absoluto que me apaixona”.

Essa noção, que pode ser só um choque inicial para quem observa de fora, esteve na base do projecto de Ricciotti, que considera “violento” o trabalho de Preljocaj. E fala da rigidez das formas e da sua estrutura matemática para descrever o edifício: “Quando disse [aos engenheiros] que ia conceber o espaço sobre a ditadura das matemáticas, o que acabámos por coreografar foi a questão dos esforços em situações de crise, com hipóteses sísmicas e deformações plausíveis. Colocámos em questão o sistema estrutural do edifício da mesma forma que o coreógrafo coloca em questão o corpo dos bailarinos no momento em que lhes exige o máximo [de esforço]. Isto resulta num processo de questionamento sobre o prazer, a estética, um valor imperioso, uma ideia de absoluto”.
As escadas que percorrem as laterais do edifício, as várias salas que se atravessam em cada andar para se encontrar salas de ensaio, estúdios de gravação ou materiais arrumados, a inexistência de paredes na zona dos escritórios, democratizando o que na dança clássica seria impossível e a contemporânea tomou como lei – a reflexão sobre a hierarquia – são ideias que vão ao encontro do perfil de Ricciotti.

Marie Ange Brayer, num texto publicado no catálogo da exposição ArchiLab 2000, define-o como alguém “praticante de uma arquitectura hedonista, envolvendo o prazer da forma e do espaço” que se afastou, a partir dos anos 90, dos “becos sem saída do neo-modernismo”. Ricciotti gosta de dizer que assina trabalhos “neo-brutais”. E é por isso que, tal como o seu impacto político, também a própria concepção do edifício não está ausente de polémica. Num irónico texto publicado no Le Ravi, Jean-Claude Dingo descreve-o como o resultado de um arquitecto “pseudo-radical, negro como um blusão de rocker que conduz um Jaguar e fuma havanos”. E continua dizendo que o edifício é uma “concessão à vulgaridade do sado-masoquismo, num espaço que celebra o corpo, submetendo-o a um verdadeiro exercício de rigor. Esta estética SM é reivindicada por Ricciotti, que assume uma postura onanista: ‘este edifício resgata um prazer solitário… Há aqui uma sexualidade particular; um lado um pouco sado-maso, um pouco de latex, um pouco de cabedal, um pouco moldado, muito perto do corpo’. Narcisismo masturbatório que encontra eco nas palavras do seu destinatário para quem nada é suficientemente grande, nem forte”.

Talvez não seja exactamente assim, já que, como escreveu o crítico Philippe Noisette (Les Inrockuptibles, 7 Nov. 2006), o investimento no Pavillion não foi suficiente, apesar dos candelabros recuperados do Palácio do Povo de Berlim (ao abrigo da lei francesa que exige a presença de pelo menos 1% de arte contemporânea nos edifícios públicos), para “a colocação de verdadeiras cadeiras” (são bancos corridos sem marcação de lugares) e “uma sala melhor equipada em termos técnicos” (a primeira fila entra dentro da cena dificultando a utilização de cenários complexos). E se esses são pontos negativos num espaço virado para o futuro da dança, a programação anunciada procura acalmar alguns dos receios existentes. Em 2007 Preljocaj acolherá, para além dos seus próprios trabalhos, vários coreógrafos dos CCNs, como Maguy Marin ou Fréderic Flamand, e ainda Jean-Claude Gallotta, Olivier Dubois, Josette Baïz ou Philippe Saire, em remontagens, reposições, criações originais e mesmo encomendas.

Angelin Preljocaj costuma dizer que “se passaram vinte anos até à criação de um espaço de partilha”. Ele agora existe, encravado no bucolismo de Aix-en-Provence. Resta saber se este pavilhão do século XXI estará à altura de enfrentar todos os conflitos que por ele, ou a partir dele, se criaram.

Pavillion Noir, o vídeo-dança de Pierre Coulibeuf

Os planos fixos captados por Pierre Coulibeuf no filme Pavillion Noir, criado especialmente para mostrar o edifício antes de ser usado pelas equipas de Preljocaj, mostram corpos em processo de ocupação de um espaço geometricamente desenhado para conter movimentos amplos, orgânicos e síncronos. As imagens revelam a procura de um lugar para a coreografia, tal como para todo o processo de criação, escondendo-a dentro dos cacifos, alongando-a pelas oblíquas escadas, inscrevendo-a nos diálogos quotidianos e banais de um local de trabalho. A câmara observa-os distanciando-se dessa organicidade, fundindo-os nas frias linhas desenhadas por Rudy Ricciotti. O negro das paredes e das longas colunas, que se prolonga em cada um dos módulos que compõem a decoração do espaço, contrasta com a luminosidade provençal que entra através dos vidros das janelas, da altura de andares. E, a partir destas sequências emotivamente ambíguas, Coulibeuf organiza a coreografia de Preljocaj, delicada a querer ser violenta, liberta a querer ser fixada. E é também por isso que o breve filme, em vez de se passar no palco, usa várias dependências até acabar no terraço, com os corpos em ascensão e em plena busca de um lugar ao qual pertencer (2006, Regard Productions).

Pavillion Noir, o livro

“Que livro para esse espaço recente, sem história, sem memória, onde ainda não se apresentou uma obra coreográfica?” A pergunta-desafio abre o negro e modular livro dedicado ao Pavillion Noir. Organizado por Éric Reinhart e publicado pelas Éditions Xavier Barral, a obra homónima, sem indicação de páginas, índice ou capítulos, divide-se entre imagens retiradas do filme de Pierre Coulibeuf e entrevistas a Preljocaj, onde se fala de corpo, movimento e espaço, e ao arquitecto Rudy Ricciotti, que recusa a utopia porque esta renuncia o futuro e prefere “transformar o real”. Conta ainda com contributos do astrofísico Michel Cassé, que reflecte sobre o vazio e a relação espaço-tempo, e da filósofa Jehanne Dautrey, que contextualiza a obra do coreógrafo a partir de palavras-chave como representação ou o diálogo com outras disciplinas. O volume não oferece a possibilidade de uma leitura contínua e formal, já que apresenta os excertos dos discursos de cada um dos intervenientes em terços de páginas independentes. Mas pensado enquanto objecto que dialoga com o potencial de uma obra em aberto, amplia uma das questões maiores do trabalho de Preljocaj: a sincronização. “Com a sincronização o espaço ganha uma textura particular (…), uma dinâmica particular, com certas velocidades e certas trajectórias”, diz. Tal como este livro, aberto na sua organização e labiríntico na sua forma, que permite ao leitor construir a sua própria viagem ao interior do edifício matemático de Ricciotti e à linguagem de Preljocaj (€35).

Texto escrito para a Revista Obscena nº 1 com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian e resultante de uma parceria com o site brasileiro www.idanca.net.

De um “negro provençal”, diz o arquitecto italiano Rudy Ricciotti acerca da cor escolhida para compor o Pavillion Noir, o novo Centre Chorégrafique National (CCN) de Aix-en-Provence, feito à medida e imagem do seu impulsionador, o coreógrafo Angelin Preljocaj, “seco, ossuoso, tenso, magro como a figura, esse físico qualificado pela pele e pelos ossos”. Projectado em 1999 e sucessivamente adiado até à inauguração em Novembro de 2006, com a presença do Ministro da Cultura Renaud Donnedieu de Vabres e toda a corte burguesa de Aix-en-Provence, o edifício destaca-se na bucólica vila do sul de França pelo corte radical que imprime à paisagem (“um meteorito que caiu em pleno coração de Aix-en-Provence”, diz o coreógrafo), pela mensagem que faz passar à comunidade artística local e nacional e por simbolizar o reconhecimento de um empenho pessoal para a valorização e acessibilidade da dança contemporânea francesa por todo o mundo.

Na verdade, é forçoso afirmar-se que o Pavillion Noir constitui o primeiro espaço para a dança, que acumula estúdio de ensaios e auditório, no conjunto dos 19 centros coreográficos espalhados pelas 22 regiões francesas. A concessão do espaço de trabalho é uma declaração de reconhecimento político do contributo de um artista que trabalha em permanência, com três elencos ao mesmo tempo, se apresenta em Paris, Nova Iorque, Japão e México no mesmo mês e, portanto, justifica as contestações (algumas razoáveis, outras fruto da inveja) em torno dos financiamentos públicos que suportam integralmente o funcionamento do edifício. Até agora vivendo, tal como os seus colegas directores de CCNs na dependência de co-produções e colaborações, sendo forçado a circular – condições que, face às “provas do trabalho feito”, considerava apenas possíveis por “inércia”, citando Nietzsche: “esperar pelo alvo é deixá-lo passar ao lado” –, Preljocaj dá por terminada a busca incessante de um espaço de apresentação, que se destaca, pelo seu simbolismo e ideal, do contexto francês.

“Senti sempre que faltava à dança as ferramentas e os lugares identificáveis. Foi por essa razão que nos batemos para conquistar este espaço. É muito política [essa luta]”, diz Preljocaj. Uma opção que custou caro à vila de Aix, onde paira o fantasma de ser culpado pela suspensão em 2005 do festival Danse à Aix, por decisão municipal de concentração de fundos num só projecto em detrimento de vários outros, como aquele festival com 18 anos de história, que tinham um passado e uma identidade. Dizem os restantes criadores, diz a crítica – a revista Mouvement, por exemplo, publicou violentos comentários à suspensão do festival – e diz alguma da população que teme a imposição de um gosto em detrimento da pluralidade. François-Xavier de Peretti, deputado municipal da UDF, partido de direita, vai mais longe apontando o dedo à presidente da Mairie Maryse Joissains, do também partido de direita, ainda no governo, UMP: “Não há qualquer estratégia nem unidade na política cultural. Decepou-se a delegação e asfixiou a direcção cultural” (Le Ravi nº. 35, Nov. 2006).

O coreógrafo refuta as críticas, legitimado pela presidente do município e pela convicção na importância da aquisição simbólica daquele espaço. Pelo menos é esta a ideia que se quer passar, fazendo pouco caso dos protestos em torno dos quase € 6.400.000 que custaram os 3.000 metros quadrados do Pavillion Noir, com os seus quatro estúdios de dança, uma sala de espectáculos com 386 lugares, escritórios, armazém e espaço para residências.

O edifício, em si mesmo, é uma metáfora da dança contemporânea: exposta e ainda assim secreta. Se a sala de espectáculos está escondida e meio-enterrada no solo (“é o ventre do edifício, é visceral o que lá se vai passar, é qualquer coisa que se tem que fazer por merecer”, diz Preljocaj), as paredes de vidro do restante edifício deixam espreitar para o seu interior, mostrando as salas de ensaio, os escritórios, as zonas de descanso, os estúdios onde se processa a criação. “Por um lado, uma certa forma de exibicionismo naïf, por outro um apelo ao voyeurismo”, desvenda o coreógrafo. Aquilo que, à partida, deveria estar recolhido, pelo seu carácter de experimentação e insegurança, devedor de uma intimidade necessária à criação, é aqui exposto, aberto com vista para o campo. Os bailarinos sentem-se confortáveis com este convite à partilha despudorada de um saber e uma prática, que não deixa de causar alguma estranheza. O coreógrafo queria que as pessoas soubessem o que se passa lá dentro: “não se trata de uma companhia de seguros ou um banco, mas de um local de criação”. Criação feita no limite, porque “no esgotamento, o intérprete não pode mentir, nem a si mesmo, nem ao olhar do outro. Nesse momento projecta-se uma estética do absoluto que me apaixona”.

Essa noção, que pode ser só um choque inicial para quem observa de fora, esteve na base do projecto de Ricciotti, que considera “violento” o trabalho de Preljocaj. E fala da rigidez das formas e da sua estrutura matemática para descrever o edifício: “Quando disse [aos engenheiros] que ia conceber o espaço sobre a ditadura das matemáticas, o que acabámos por coreografar foi a questão dos esforços em situações de crise, com hipóteses sísmicas e deformações plausíveis. Colocámos em questão o sistema estrutural do edifício da mesma forma que o coreógrafo coloca em questão o corpo dos bailarinos no momento em que lhes exige o máximo [de esforço]. Isto resulta num processo de questionamento sobre o prazer, a estética, um valor imperioso, uma ideia de absoluto”.
As escadas que percorrem as laterais do edifício, as várias salas que se atravessam em cada andar para se encontrar salas de ensaio, estúdios de gravação ou materiais arrumados, a inexistência de paredes na zona dos escritórios, democratizando o que na dança clássica seria impossível e a contemporânea tomou como lei – a reflexão sobre a hierarquia – são ideias que vão ao encontro do perfil de Ricciotti.

Marie Ange Brayer, num texto publicado no catálogo da exposição ArchiLab 2000, define-o como alguém “praticante de uma arquitectura hedonista, envolvendo o prazer da forma e do espaço” que se afastou, a partir dos anos 90, dos “becos sem saída do neo-modernismo”. Ricciotti gosta de dizer que assina trabalhos “neo-brutais”. E é por isso que, tal como o seu impacto político, também a própria concepção do edifício não está ausente de polémica. Num irónico texto publicado no Le Ravi, Jean-Claude Dingo descreve-o como o resultado de um arquitecto “pseudo-radical, negro como um blusão de rocker que conduz um Jaguar e fuma havanos”. E continua dizendo que o edifício é uma “concessão à vulgaridade do sado-masoquismo, num espaço que celebra o corpo, submetendo-o a um verdadeiro exercício de rigor. Esta estética SM é reivindicada por Ricciotti, que assume uma postura onanista: ‘este edifício resgata um prazer solitário… Há aqui uma sexualidade particular; um lado um pouco sado-maso, um pouco de latex, um pouco de cabedal, um pouco moldado, muito perto do corpo’. Narcisismo masturbatório que encontra eco nas palavras do seu destinatário para quem nada é suficientemente grande, nem forte”.

Talvez não seja exactamente assim, já que, como escreveu o crítico Philippe Noisette (Les Inrockuptibles, 7 Nov. 2006), o investimento no Pavillion não foi suficiente, apesar dos candelabros recuperados do Palácio do Povo de Berlim (ao abrigo da lei francesa que exige a presença de pelo menos 1% de arte contemporânea nos edifícios públicos), para “a colocação de verdadeiras cadeiras” (são bancos corridos sem marcação de lugares) e “uma sala melhor equipada em termos técnicos” (a primeira fila entra dentro da cena dificultando a utilização de cenários complexos). E se esses são pontos negativos num espaço virado para o futuro da dança, a programação anunciada procura acalmar alguns dos receios existentes. Em 2007 Preljocaj acolherá, para além dos seus próprios trabalhos, vários coreógrafos dos CCNs, como Maguy Marin ou Fréderic Flamand, e ainda Jean-Claude Gallotta, Olivier Dubois, Josette Baïz ou Philippe Saire, em remontagens, reposições, criações originais e mesmo encomendas.

Angelin Preljocaj costuma dizer que “se passaram vinte anos até à criação de um espaço de partilha”. Ele agora existe, encravado no bucolismo de Aix-en-Provence. Resta saber se este pavilhão do século XXI estará à altura de enfrentar todos os conflitos que por ele, ou a partir dele, se criaram.

Pavillion Noir, o vídeo-dança de Pierre Coulibeuf

Os planos fixos captados por Pierre Coulibeuf no filme Pavillion Noir, criado especialmente para mostrar o edifício antes de ser usado pelas equipas de Preljocaj, mostram corpos em processo de ocupação de um espaço geometricamente desenhado para conter movimentos amplos, orgânicos e síncronos. As imagens revelam a procura de um lugar para a coreografia, tal como para todo o processo de criação, escondendo-a dentro dos cacifos, alongando-a pelas oblíquas escadas, inscrevendo-a nos diálogos quotidianos e banais de um local de trabalho. A câmara observa-os distanciando-se dessa organicidade, fundindo-os nas frias linhas desenhadas por Rudy Ricciotti. O negro das paredes e das longas colunas, que se prolonga em cada um dos módulos que compõem a decoração do espaço, contrasta com a luminosidade provençal que entra através dos vidros das janelas, da altura de andares. E, a partir destas sequências emotivamente ambíguas, Coulibeuf organiza a coreografia de Preljocaj, delicada a querer ser violenta, liberta a querer ser fixada. E é também por isso que o breve filme, em vez de se passar no palco, usa várias dependências até acabar no terraço, com os corpos em ascensão e em plena busca de um lugar ao qual pertencer (2006, Regard Productions).

Pavillion Noir, o livro

“Que livro para esse espaço recente, sem história, sem memória, onde ainda não se apresentou uma obra coreográfica?” A pergunta-desafio abre o negro e modular livro dedicado ao Pavillion Noir. Organizado por Éric Reinhart e publicado pelas Éditions Xavier Barral, a obra homónima, sem indicação de páginas, índice ou capítulos, divide-se entre imagens retiradas do filme de Pierre Coulibeuf e entrevistas a Preljocaj, onde se fala de corpo, movimento e espaço, e ao arquitecto Rudy Ricciotti, que recusa a utopia porque esta renuncia o futuro e prefere “transformar o real”. Conta ainda com contributos do astrofísico Michel Cassé, que reflecte sobre o vazio e a relação espaço-tempo, e da filósofa Jehanne Dautrey, que contextualiza a obra do coreógrafo a partir de palavras-chave como representação ou o diálogo com outras disciplinas. O volume não oferece a possibilidade de uma leitura contínua e formal, já que apresenta os excertos dos discursos de cada um dos intervenientes em terços de páginas independentes. Mas pensado enquanto objecto que dialoga com o potencial de uma obra em aberto, amplia uma das questões maiores do trabalho de Preljocaj: a sincronização. “Com a sincronização o espaço ganha uma textura particular (…), uma dinâmica particular, com certas velocidades e certas trajectórias”, diz. Tal como este livro, aberto na sua organização e labiríntico na sua forma, que permite ao leitor construir a sua própria viagem ao interior do edifício matemático de Ricciotti e à linguagem de Preljocaj (€35).