Notas esparsas sobre corpos negros

Relatos de terceiros, I – Quando Luiz de Abreu apresentou na Serra da Capivara seu Samba do crioulo doido, recebeu ameaças de autoridades locais. Está certo que uma coreografia em que a bandeira nacional é exibida presa ao traseiro de um bailarino deve incomodar as pessoas, principalmente aquelas que têm a idéia de pátria mais arraigada em suas convicções. Mas o símbolo nacional deve representar a nação – suas contradições e problemas, inclusive. Se a bandeira não é capaz de representar a condição dos negros no Brasil, é hora de trocar de bandeira. Ou de Brasil.

Perguntas inocentes, I – Até que ponto a reação a Luiz de Abreu na Serra da Capivara foi provocada pelo fato de o traseiro em questão ser negro? Um traseiro branco e burguês teria gerado a mesma controvérsia, ou, pelo menos, controvérsia tão próxima da agressão física.

Memórias de espetáculos, I – “A carne… A carne mais barata… A carne mais barata do mercado… A carne mais barata do mercado é a carne negra”. O que é aquilo que dança ao som desta canção em Samba do crioulo doido? Não é um corpo negro, mas a caricatura de um corpo negro, a caricatura construída por toda a sociedade brasileira ao longo de quase cinco séculos de escravidão. O mais terrível de tudo é a lembrança da estréia da coreografia em São Paulo, no Rumos Dança: como a maioria de nós ria, a maioria de nós supostamente brancos se divertia com aquilo, não era capaz de perceber a tragédia que o bailarino nos apresentava.

Considerações teóricas, I – Nos últimos tempos, falar de dança significa, necessariamente, falar de corpos. Surpreende a maneira como o debate sobre dança – e, portanto, sobre corpos – no Brasil vem, sistematicamente, escamoteando a questão da carne. E, portanto, a questão da carne mais barata no mercado.

Relatos de terceiros, II – Mais uma do Luiz de Abreu. Quando ele chegou a Salvador em 2006, para construir Máquina de desgastar gente, houve quem reclamasse: “Pô que saco, lá vem o cara de novo com seus espetáculos que falam que tem racismo na Bahia…”

Aforismos soltos, I – Ignorar os ratos não salva a despensa.

Perguntas inocentes, II – Quantas vezes já vimos Odette, de O lago dos cisnes, ou Coppelia, dançadas por bailarinas negras. Ah, mas tem a questão do physique du rôle, lembrará alguém. Quem disse que personagens de contos de fadas europeus precisam ser menininhos e menininhas de pele leitosa. Mais ainda, quem disse que o Doutor Coppelius criou uma boneca branca? E por que diabos ninguém acha esquisito, quando se encena Le corsaire, aquele monte de escravos árabes, ou um sultão turco, interpretados por brancos? E o que dizer das montagens de La bayadére?

Memórias de espetáculos, II – No final de Máquina de desgastar gente, os bailarinos dançam como bonecos de caixa de música, regulados para o movimento que a sociedade branca e burguesa espera de intérpretes negros, independente de a trilha sonora trazer uma polca ou algo nos arredores do axé. Os gestos são claros, integram o repertório do lixo cultural com que a Bahia vem conquistando espaço no mercado turístico, muitas vezes às custas de sua identidade e sua alma. Meu mal-humorado advogado do diabo vai dizer que aquilo existe por causa da gringaiada, que é “pra inglês ver”. Só que a maior parte dos turistas na Bahia continua sendo de brasileiros. Brancos e burgueses.

Considerações teóricas, II – O debate sobre cotas nas universidades brasileiras expôs o pior em muitos de nós. A partir dele, livros e entrevistas vêm defendendo algumas teses esdrúxulas. A mais nefasta delas é que, como a genética afirma que não existem diferenças entre raças, o estado não pode legislar a partir delas. Para discriminar alguém (seja chamá-lo de “nego fedido”, seja achar que não tem o physique du rôle para interpretar Odette), ninguém pede exame de DNA. Para enfrentar a discriminação, a exigência, no discurso neo-racista, é obrigatória. E viva a democracia racial brasileira.

Aforismos soltos, II – Minta. Minta. Minta. Alguém acabará acreditando no que você diz. Mesmo num possível conforto da senzala.

Relatos de terceiros, III – Boa parte da moçadinha do Balé de Rua, de Uberlândia, veio dos bairros mais pobres da cidade. Antes de se tornarem bailarinos profissionais, tinham ocupações típicas da gente dos bairros mais pobres de qualquer cidade. Trabalho braçal. Não especializado. Será mera coincidência que sejam todos negros, mulatos ou categorias semelhantes.

Considerações teóricas, III – Pesquisa recente sobre raças (categoria “inexistente”, como já vimos…) no Brasil revelou que as conseqüências econômicas do racismo tendem a aumentar à medida que se ascende em termos de poder aquisitivo. Se você é negro e rico, suas chances de estar mais pobre daqui a um ano são bem maiores que se você é negro e pobre. Não há por que discriminar – tanto – um negro que está por baixo. O perigo são aqueles que pensam que “são gente”, que se comportam como profissionais liberais, pequenos empresários, classe média. Artistas incluídos. Em resumo, Píer Paolo Pasolini tinha razão: as classes pobres são mais tolerantes que as ricas. Ele afirmou isso em relação à sexualidade – ou seja, ao corpo –, mas até esse aspecto pode ser aplicado aqui: será que na favela alguém acha tão ruim sua filha se casar com um garoto negro?

Perguntas inocentes, IV – Voltando à questão do physique du rôle. A tese do racismo na dança clássica brasileira não seria negada pela profusão de rapazes negros ou mulatos que se apresentam em festivais de academias? Não. Ao contrário, afirma-a. A regra do physique du rôle, como tantas outras, só vale enquanto não atrapalha o faturamento. Se o Príncipe Siegfried for cubano, melhor ainda – dá prestígio à escola. Volta e meia tem professor brasileiro reclamando que os cubanos estão invadindo seu mercado de trabalho – mas a reclamação só vale até a hora do festival. Racismo e xenofobia caminham juntos.

Memórias de filmes, I – Todo mundo deveria assistir a O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger. No momento mais redentor do filme (são muitos), o menino protagonista vê o goleiro negro saltar inacreditavelmente para defender seu gol. O garoto, na hora, sabe o que quer ser quando crescer: “negro e voador”. Pelo menos uma mente saudável entre nós consegue perceber cristalinamente as coisas como deveriam ser: se a raça não é categoria biológica, mas social (“etnia”, como sugerem os politicamente corretos), deveríamos poder optar por ela, ou pelo menos lutar por pertencer a ela. Da cena no filme, podemos imaginar uma sociedade sem racismo, onde fosse absolutamente natural um garoto falar a seus pais que quer ser negro, querendo dizer com isso que pretende mergulhar nos valores da cultura negra, independente de qualquer coisa semelhante à cor da pele. Natural, e não escandaloso ou engraçado, nem para negros, nem para brancos.

Considerações teóricas, IV – Se a visão de raça (que, como já vimos, é racista e conservadora) identifica o corpo como sede da distinção, é no corpo que ela precisa ser combatida. Fácil perceber, então, a importância que a dança pode ter nesse combate. Pensando como Steven Biko, líder sul-africano assassinado pelo apartheid, seria necessário, num primeiro momento, assumir integralmente a negritude dos corpos negros e a branquitude dos corpos brancos, rejeitar os simulacros de uma categoria que se impõem à outra. Se formos capazes de rejeitar o embranquecimento quase obrigatório dos corpos negros (representado por modos de ser e agir impostos pela cultura burguesa), e de denunciar, simultaneamente, o simulacro de enegrecimento com que os corpos brancos tentam diminuir sua culpa por todo o processo (signos de cultura negra usados apenas por gosto, sem significado político ou cultural)… Bem, talvez possamos chegar àquele momento utópico em que expressões como “corpo negro”, “corpo branco”, “dança afro-brasileira” ou “raízes européias” percam completamente seu sentido como categorias.

Memórias de espetáculos, III – Num solo de O corpo negro na dança, o bailarino do Balé de Rua percorre o palco, a boca aberta num grito horrendo, que lembra o quadro de Munch, o corpo crispado em tensão permanente. Dor, muita dor, é a sensação que percorre a platéia. Aquela pessoa está sofrendo, as pessoas que ela representa estão sofrendo. Por mais que a dança queira falar apenas de dança, não há como, eventualmente, resvalar para a pantomima, porque eu, espectador, tenho um corpo que funciona do mesmo jeito que o corpo do bailarino, e inconscientemente reconheço no meu corpo aquela tensão muscular e aquela expressão, e sei exatamente o quanto doem os momentos em que estão presentes em mim.

Perguntas inocentes, V – Por que o grito munchiano de O corpo negro na dança mexe tanto com as pessoas? Porque é sincero. Porque é verdadeiro. Porque coreógrafo, bailarino e a companhia inteira sabem exatamente do que estão falando, sabem por experiência própria, não por conhecimento acadêmico.

Memórias de espetáculos, IV – Não lembro o nome da coreografia, sorry, mas era algo da Membros, creio que coreografado pelo Bruno Beltrão, e os bailarinos literalmente subiam pelas paredes, e a imagem era a da tensão da cidade grande, jovens que não seriam necessariamente marginais sendo perseguidos, não por serem marginais, mas por serem da periferia – o que no Brasil significa quase necessariamente serem negros. Nunca vi algo que me falasse tanto daquela condição do jovem da periferia. Membros e Balé de Rua são irmãos naquela categoria de verdade dada em primeira mão, pela experiência.

Considerações teóricas, IV – Ao tratar de loucos e presos, Michel Foucault chegou à incômoda conclusão de que a única luta legítima em benefício deles seria conduzida por eles mesmos. Terceiros – como o próprio Foucault ou seus colegas intelectuais (“sãos” e “livres”) – poderiam até estudar a questão, mas nunca ser os porta-vozes dela, ou os soldados da luta. É possível que o mesmo raciocínio seja aplicável à questão dos negros no Brasil. E é por isso que os trabalhos de Luiz de Abreu, Balé de Rua, Membros e outros (infelizmente, poucos…) são tão magníficos. Discursos na primeira pessoa. Cargas de fuzil contra a muralha do discurso branco e burguês que jura que não há racismo no Brasil. Como o atacante suicida que se lança, o cinto repleto de bombas, contra o quartel dos soldados que ocupam seu país, os corpos negros de nossos bailarinos negros detonam nossas confortáveis convicções.

Paradoxo final, único – O autor é branco e burguês, de modo que seu texto, a priori, é bem menos legítimo e, portanto, menos capaz de transformações que qualquer dos balés citados acima.