capa do livro Corpo em Cena, Volume 2 / Divulgação

Novas escritas para a dança brasileira

O registro de processos, procedimentos e trajetórias tem sido cada vez mais constante na cena da dança brasileira. Quando este texto for postado no idança, uma escrita sobre determinado contexto daquilo do que mais se publica neste site, a dança, vai se transformar, de alguma forma, num olhar sobre este fenômeno. Trata-se de um recorte, um enfoque. E, justamente por ser ímpar, contribui para os diálogos, as conversas, as interlocuções. É o que tem acontecido aos poucos, com uma leva de publicações com artigos, ensaios, relatos e escritas em torno da dança. Inaugura-se, talvez, uma saudável fase de fazer dos encontros, seminários, colóquios e mesmo festivais, um bom pretexto para exercitar a produção de textos de, sobre e para a dança. Na academia, guardadas as especificidades, este movimento também é construído. Num recorte, outra vez é importante frisar, vamos a alguns destes bem vindos títulos.

A coleção Corpo em Cena, Volume 2, editada por Lenira Rengel e Karin Thrall pela Anadarco Editora & Comunicação, tem 158 páginas, com cinco artigos: A não representação do movimento, de Rosa Hercoles; Lautréman, o corpo e os corpos nômades, de Claudio Willer; Uma teoria em ação: os operadores na piscina mimética de ‘O Revisor em Série e Cornélia Boom’, de Marcos Bragato; O olhar do bailarino no olhar do espectador, de Ana Macara; Traduzindo a palavra e desejo em ações corporais, de Magda Bellini; e Por um pensamento sobre a curadoria de dança compartilhada, descolonizada e não transplantada, de Gilsamara Moura Robert Pires.

Com formatação acadêmica, na Corpo em Cena juntam-se temas fundamentais para o debate e a produção de pensamentos na dança. A coleção se propõe justamente a ser co-criadora de cenas e linguagens, acionando questões. É com fôlego e profundidade, mas sem hermetismo, que Rosa Hercoles abre o livro numa oportuna síntese sobre a não representação do movimento. Além de situar historicamente o tema, organiza um pensamento claro e fluente para os, talvez, não-iniciados no tema. Mas quem chegou até ao texto – por interesse, recomendação ou afinidade ao debate – certamente fruirá da leitura com aquela sensação de pontuamento de questões. Como não se trata aqui de descrever e opinar sobre cada um dos artigos, vale ressaltar que, nos demais textos, a diversidade estimula novos aportes teóricos. Magda Bellini escreve a partir de experiência teórico-prática, abrindo os olhos dos leitores para a possibilidade de traduzir ações em desejos. Ou, no viés reverso, põe desejo nas ações que enumera, com palavras, no corpo. Estimulante é, também, o compartilhamento de palavras-conceitos organizadas por Gilsamara para falar, questionar e problematizar a discussão em torno da curadorias artísticas praticada no país.

Depois de uma espera de mais de dois anos, sai agora o quarto volume da Coleção Húmus, organizada por Sigrid Nora. Com edição de Maíra Spanghero, são 226 páginas, com 18 artigos, assinados por Mônica Dantas, Christiane Galdino, Carlinhos Santos, Marianna F.M. Monteiro, Maria Velloso, Paula Carolina Petrecca, Roberta Ramos, Rosa Coimbra, Verônica de Moraes e Eloisa Domenici, Suely Machado, Thais Gonçalves, Waldete Brito Silva de Freitas, Rosa Primo, Carlota Portella, Gladis Tridapalli, Vanilton Lakka, Dickson Du-Arte Pires e Iolanda Gollo Mazzotti.

capa do livro Corpo em Cena, Volume 2 / Divulgação

capa do livro Corpo em Cena, Volume 2 / Divulgação

Feita com recursos da Lei Rouanet, a nova publicação Húmus reitera o compromisso e a característica dos três volumes anteriores: preserva e valoriza a diversidade, propões e dinamiza as escritas, reflete caminhos teóricos, registra opções artístico-estéticas, reunindo autores do Norte ao Sul do país. Numa amostra, tem Christiane Galdino registrando as geografias corporais da dança do Recife, Vanilton Lakka propondo reflexões sobre a relação entre dança e cidade, corpos em movimento nas ruas, urbanidade e movimentação, tema que tem perpassado um eixo de suas performances como intérprete-criador, e ainda, Gladis Tridapalli aproximando suas questões como bailarina à prática da docência, investigando estratégias de aprendizado. Arejamento dos bons às leituras e conversas sobre as tantas danças feita aqui e além de.

Ainda sobre as páginas da Coleção Húmus, é prazeroso ler o artigo Poesia Concreta, de Suely Machado, no qual ela divide com o leitor sua experiência è frente do Grupo de Dança 1º Ato e do 1º Ato Centro de Dança, de Belo Horizonte. Na aproximação com a poesia concreta dos Campos e Décio Pignatari, Suely elabora angulações, enquadramentos e formas inovadoras para rever uma trajetória significativa carregada de diálogos artísticos. Num fluxo de abordagens, teorizações e reflexões, o livro fecha com o ensaio gráfico-textual Fragmento Corpóreo, da artista plástica Iolanda Gollo Mazzotti.

Em Tecido Afetivo – Por uma Dramaturgia do Afeto, com registros do encontro realizado de 7 a 12 de junho de 2010, na Praia de Flecheiras, Fortaleza (Ceará), organizado por Andrea Bardawil, da Cia. da Arte Andanças, há uma trama de relatos, escritas e impressões em 23 textos, assinados por Paulo Caldas, Alexandre Veras, Pablo Assumpção, Eleonora Fabião, Andréa Bardawil, Sílvia Soter, Marcelo Evelin, Sandra Meyer, Heber Stalin, Gerson Moreno, André Lepecki, Marcos Moraes, Fernanda Eugênio, Eduardo Jorge, Micheline Torres, Eliana Lyra Meira, Flavia Meireles, Gustavo Ciríaco, Enrico Rocha, Fátima Souza, Márcio Medeiros da Costa e Andréa Sales.

A liberdade na forma de fazer sua escrita, o tom confessional de algumas delas, as aproximações de outras, as cumplicidades registradas envergam o material de uma riqueza ímpar. Ali se encontra, de alguma forma, frestas que nos fazem imaginar a rede de troca de afetos e informações durante os seis dias do encontro, possibilitado pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna. É como Andréa Bardawil descreve na abertura da publicação, ao citar Foucault e a potência de vida: nenhuma construção é possível se, antes de tudo, não forem construídos laços de afetividade. Na sequência, lemos Micheline Torres propondo textos-iscas, Silvia Soter falar, ao mesmo tempo, do dramaturgo e dos tecidos corpóreos, das tramas do acaso e dos sentidos. Marcelo Evelyn escreve um testemunho potente sobre as suas experiências e ideias em torno da dramaturgia. André Lepecki lança verbetes-afetivos/verbetes-aflitivos na roda, digo na leitura, devidamente contaminado pelas flechas certeiras das conversas do grupo.

Perpassa por todas as páginas deste Tecido Afetivo um pouco daquilo que Cecília Almeida Salles descreve em seus estudos em torno das redes de criação artística, da crítica genética sobre documentos de processos criativos na arte e na ciência. Mais do que textos acabados feito bulas, as escritas registradas são pistas, sinais, provocações, códigos de diálogos e trocas. Todo este material sugere e transita entre o depoimento e a livre aproximação de ideias. Tudo potente, tudo potência generosa e afetiva para novas aproximações, novas conversas. Num recorte do texto de Sandra Meyer, algo que arrisco dizer/entender como um pequeno resumo do muito vivido por lá: “Estar no recinto da experiência. Abriguemos a incerteza, a instabilidade natural das coisas. É preciso ainda tecer, afetiva, afectiva, afetuosamente. Está na hora do pôr-do-sol em Flecheiras. É quase um lugar comum, tem quase todo dia, no entanto, é sempre outra experiência.”

Seguindo, pois que falamos de movimento, há que se registrar uma sábia decisão institucional e curatorial do Sesc São Paulo, a publicação do primeiro (sim, que venham outros!) volume de Temas para a Dança Brasileira. Organizado por Sigrid Nora, que dedica o trabalho, in memoriam, ao incansável Roberto Pereira, com quem começara a elaborar o projeto, o livro sai pelas Edições SESC SP. Nas 344 páginas, organizam-se quatro eixos temáticos, a saber: Crítica de Dança e Jornalismo Cultural, que traz textos de Beatriz Cerbino, Nani Rubin e Paulo Caldas; Dramaturgia e Dança: Tendências Estéticas e Processos de Criação, reunindo artigos de Ana Pais, Fátima Saadi, Silvia Soter e Thereza Rocha; Produção em Dança: Especificidades de um Ofício, com artigos de Maíra Spanghero, Leonel Brum, Adriana Pavlova, e João Carlos Couto; e Estratégias de Colaboração para a Dança no Brasil, com escritas de Andrea Bardawil, Nirvana Marinho, Marcos Bragato, Rosa Primo e Marina Guzzo e Simone Avancini.

O livro é um bem estruturado projeto de registro da cena brasileira da dança, permeado por olhares de alguns especialistas, que não fecham questões, pelo contrário, constituem-se na pluralidade, na perspectiva de novos apontamentos e abordagens. Na escrita-pesquisa de Beatriz Cerbino, a memória da crítica do Rio de Janeiro e São Paulo pela análise dos textos e contextos produzidos pelas tais escritas especializadas no gênero dança. Paulo Caldas escreve de uma perspectiva daquele que, ao ser foco do olhar da crítica, pois que criador, também quer dialogar com ela. Não qualquer crítica sobre qualquer dança, pois descrê de certos procedimentos. Mas pensando num novo contexto, capaz de engendrar outro movimento ao estado letárgico de certos discursos sobre certas obras. Thereza Rocha ousa um ensaio onde exercita uma dramaturgia sobre uma dramaturgia, adicionando notas de rodapé ao roteiro de The show must go on, de Jérôme Bel. Tenciona formatos em busca de substratos para novas relações entre objeto artístico e espectador, no contexto da contemporaneidade.

Temas para a Dança Brasileira traz ainda pesquisas pontuais, significativas pela organização e catalogação de informações, como o registro sobre grupos e coletivos em atuação no país e suas estratégias de sobrevivência, feita por Nirvana Marinho, bem como o papel e a atuação dos produtores da área, em bem articulada produção de Maíra Spanghero. Tem ainda o olhar jornalístico de Adriana Pavlova, que reporta ao trabalho dos principais produtores brasileiros que produzem espetáculos internacionais no Brasil desde a década de 1980.

Fugindo do eixo, mas inserindo olhares pertinentes a discussões centrais da dança, Andréa Bardawil fala outra vez de afetos e colaborações, duas de suas palavras-bandeiras no contexto da dança brasileira. Então, Rosa Primo traz ao registro editorial o mapa dos festivais de dança além-Rio-SP. Escritas sobre entornos indo ao centro de algumas questões, como a dos monopólios dos discursos, apelando ao estado da invenção. Dada a qualidade e bem articulada pluralidade de textos e ideias dessa primeira edição, só podemos esperar uma seguinte e outras mais.

Corpocidade – Debates, Ações e Articulações, organizado por Fabiana Dultra Britto e Paola Berenstein Jacques, editado pela Edufba, traz registros do encontro artístico-acadêmico Corpocidade – debates em estética urbana 1, realizado em outubro de 2008, em Salvador. Editado em 2010, arranja-se na construção da Plataforma Corpocidade, organizando debates, textos, discursos, comunicações, em torno da corpografia – conceito que relaciona a experiência espaço-temporal processadas pelos corpos em determinados ambientes. A urbanidade, as forças que se interpelam e dialogam, a lógica processual destes fenômenos são referências para seções e interlocuções, com ensaios visuais e gráficos, registros de ações artísticas e artigos co-relatos.

Em projeto gráfico que evidencia e pontua trocas de seções, com recursos visuais arrojados e ao mesmo tempo simples, o livro tem ainda material veiculado pela revista Dobras, com entrevistas, mais ensaios, mais informações relacionadas, mais redes de relações entre corpo, cidade e  ambiente. Este é um termo, aliás, muito caro quando se tenta registrar, em livros, ambientes de informações, registros históricos, discussões artísticas, movimentos emergentes, questões recorrentes. O formato ainda é uma privilegiada maneira de organizar e difundir informações. Uma plataforma que re-organiza dados, colocando-os a disponíveis a novas operações.

Organizar informações como a deste texto, registrando registros, não é uma mera questão formal. A escolha do tema, a seleção do que citar, a opção por uma determinada informação é, outra vez, uma questão de recorte, de opção autoral. No contexto da produção de dança brasileira, são muitas as possibilidades de criações, experimentos e aproximações entre criadores, ambientes, vertentes estéticas. Registrar o maior número delas, publicar livros sobre estes e aqueles movimentos, colocá-los em crise, revê-los, é um saudável e promissor exercício rumo à produção de mais pensamentos de, com, para e pela dança contemporânea brasileira. Cada novo encontro que se propuser, cada festival, colóquio ou seminário, deveria ser pensado, talvez, como mais uma plataforma para um novo livro sobre as danças e os movimentos artístico-intelectuais imbricados nisso tudo.

Carlinhos Santos é historiador, jornalista, crítico de dança, especialista em Corpo e Cultura: Ensino e Criação pela Universidade de Caxias do Sul e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação (UCS). Também é titular da coluna 3por4, do Jornal Pioneiro, em Caxias do Sul, RS.

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