O Anarquitetônico 1

Sentir. Passo extremamente necessário para uma sociedade atomizada que parece agir por próteses em sua absoluta apatia. Acovardada do seu eixo revolucionário, essa massa social parece despercebida do papel político do seu corpo no espaço e no tempo que habita. A dança deve, pode e vem refazendo este diálogo.

Em 1997, na Espanha, foi criado por Juan Eduardo Lòpez, diretor da Associació Marató de l’Espetacle, o circuito CQD (Ciudades que Danzan). Desde aí quase 50 cidades de 15 países têm participado de um encontro extremamente necessário entre a dança e o espaço urbano, ou entre o movimento e a arquitetura. Mas, não se trata de dançar na rua, e sim de dançar a rua, ou como sublinha o bailarino japonês Min Tanaka na coreografia Locus Focus: I dont dance in the place, i dance the place”.

E foi assim, exatamente preocupado com a falta de contato entre a dança e o público, ou por uma comunicação mais orgânica entre arte e o espectador que se realizou em 1992, em Barcelona, o Dansa al Parc, o festival que acabou por impulsionar a criação do circuito CQD e o fomento à dança urbana pelo mundo. No Brasil, existem três festivais de dança urbana já estruturados a partir da concepção proposta pelo CQD – o Dança Alegrete, na região de Alegrete (RS), o Marco Zero, em Brasília (DF), e o mais famoso deles, Dança em Trânsito, no Rio de Janeiro(RJ). Para 2008, é provável que se revele mais um festival, parte do CQD no Brasil, em Macaé[1] (RJ).

Registrar a dança em espaços urbanos sempre foi, por exemplo, um impulso do cinema, como em West side story, Flashdance, Breakdance, Beat Street, e outros tantos sucessos. Sem sombra de dúvida nestes contextos o movimento a partir da câmera ganha outro status que nos leva a enxergar diferentes planos e construções estéticas. Todavia, quando esse movimento está ali frente a frente, em contato com a nossa crítica, tudo tende a mudar nesta comunicação. Reafirma-se o movimento, o corpo, a cidade e o espaço específico, que também recebe outro status, desta vez duplo: o de integração e o de tensão.

Anarquitetônico‘ é o termo que recentemente me chegou às mãos ao ler o texto Um ‘corpo estranho’ na cidade, de Guilherme Wisnik, publicado pela revista Continuum[2], do Itaú Cultural no número Violência: arte alternativa. O termo nos traz certamente duas questões centrais: primeiramente a leitura de um sistema sócio-político baseado na Anarquia – onde se retoca a ausência do Estado e uma sociedade que se organizaria na radicalização do caos. Em segundo eixo de análise está a arquitetura e a sua dimensão urbanística e estética. Não lhes parece um outro modo de pensar as relações entre sociedade civil e Estado e entre arte e arquitetura? Extraio daí uma conclusão onde o espaço público aparece como mazela e degradação, condicionada ao abandono do poder público e também como mero trajeto de circulação da sociedade civil. Por este caminho chegamos à segunda questão amparada na contra-mão do mesmo viés – a dimensão artístico-estética.

A necessidade de utilizar o espaço urbano como um ponto de tensão me parece uma tarefa indispensável ao artista contemporâneo. Não se é mais importante estar em primeiro plano julgar se aquilo que se vê agrada ou não, e sim, se o espaço donde se expressa o artista ou particularmente a obra serve como um filtro de sentidos e provocações de distintas ordens. Parece-me coerente refletir que, por exemplo, o que faz a dança nestes espaços é exatamente não apenas descortinar o que já de certa forma é visível, mas então tecer uma crítica a esta relação alienante onde o corpo fazia apenas parte de um cenário absolutamente inócuo. A perspectiva contemporânea dessa dança é assim um diálogo que faz emergir uma nova percepção sobre o espaço e a ação da sociedade civil para reorganizar esta mesma estética, esta ‘nova arquitetura’, mas devemos sempre lembrar que seu papel construtivo pode até mesmo estar contido numa dimensão aparentemente negativa.

Não estaríamos no tempo de retomarmos nossa importância frente ao espaço público, de ocupá-lo em toda as suas dimensões, de imprimir novos sentidos, uma marca política distinta e até mesmo valores sobre esta participação? Ah, se essa rua fosse minha…

[1] Cidade de onde se revelou a Membros, cia. de dança que atingiu em pouco menos de quatro anos, sobretudo na Europa, mais de 100 atuações nos festivais do circuito CQD com a coreografia Meio-fio.

[2] Referência: outubro de 2007 – itaucultural.org.br

Paulo Azevedo é Mestre em Políticas Sociais e diretor artístico do Centro Integrado de Estudos do Movimento Hip Hop (CIEM.h2).