“O Artista da performance é um cronista do seu contexto imediato”

Entre os dias, 2 e 5 de julho de 2012, aconteceu no Campus Monte Alegre da PUC-SP, a 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, organizado pela ABA (Associação Brasileira de Antropologia). O mexicano Guillermo Gomez-Peña apresentou no dia 04 no TUCA (Teatro da PUC-SP), sua palestra performática: Multiple Journeys, que, através da fala e de fotografias históricas contou sobre os processos de sua vida desde seu nascimento, discutindo seu trabalho com formas performativas e literárias em relação à evolução deste campo de atuação e o contexto político e social de cada tempo.

Gómez-Peña faz parte uma linhagem de artistas como o francês Charles-Pierre Baudelaire (1821 – 1867), os alemães Friedrich von Schiller (1759 – 1805) e Berthold Brecht (1898 – 1956), a inglesa Sarah Kane (1971 – 1999), o uruguaio Alejandro Ahmed (1971), o brasileiro Antônio Araújo (1966), entre outros, que, além de gigantes, também criaram elaboradas reflexões críticas sobre o próprio trabalho. Confira a seguir a entrevista que o carismático e contundente  Gómez-Peña concedeu à Arthur Moreau, na oficina do TUCA.

O México acabou de passar por eleição presidencial. O que o sr. achou do governo do Felipe Calderón? Qual a sua perspectiva em relação ao futuro governo de Peña Nieto?

Penso que realmente não vai acontecer uma mudança concreta. O PRI (Partido Revolucionário Institucional) que representa Peña Nieto, é muito similar ao PAN (Partido da Ação Nacional). Obedecem aos mesmos amos e aos mesmos interesses financeiros. Passam a mesma tocha entre eles. É tudo farinha do mesmo saco. O México necessita de uma mudança mais profunda. Peña Nieto representa, basicamente, uma opção de nostalgia mítica: conseguir uma suposta paz social pactada com o narcotráfico. Além do mais, representa um candidato produto, midiático, uma espécie de híbrido entre Berlusconi e o boneco Ken, que será facilmente manipulado pelos interesses superiores dos grandes monopólios que seguem sendo os mesmos. Movimentos civis se alinham contra a imposição, os quais os artistas e os estudantes desempenham papel fundamental. Trata-se de um novo artevismo orgânico que não tem líderes. E que utiliza-se estratégias performáticas muito originais. Isto me interessa.

Como o sr. qualifica as contaminações atuais que a cultura mexicana tem com a dos EUA?

Mesmo existindo uma fronteira geopolítica muito dramática  e violenta, não existe realmente uma fronteira cultural. Os mexicanos tem cruzado esta fronteira durante os séculos e continuaremos fazendo isso, com ou sem as duras leis migratórias, com ou sem cercas, helicópteros e pelos policiais. A cultura transfronteiriça está presente em todos os terrenos. Se expressa na cultura popular, nas artes, na linguagem, nos usos e costumes, na moda e na alimentação. A internet e as tecnologias sociais facilitam este trânsito fronteiriço. Neste sentido, o México está muito chicanizado e os EUA esta muito mexicanizado. Estes acelerados processos de aculturamento em ambas as direções preocupam muito a classe política norte-americana e os cidadãos despolitizados que vem o imigrante mexicano como uma ameaça a sua segurança nacional e a sua monocultura imaginária. Existe um medo arquétipo do político norte-americano: o de perder o seu país ante a ameaça da imigração latino-americana. Nos veem como uma espécie de Godzila com sombreiro de mariachi. Enquanto os vemos como um elefante financeiro que se colapsa sobre nós.

Quais as questões culturais mexicanas mais lhe interessam?

Sou um canibal. Eu me alimento de muitas fontes; da rua… A rua mexicana é extremamente vibrante, intensa, apaixonante, excêntrica e muito livre, como a rua brasileira.

Quando estou no México sigo a caminhar em busca de imagens insólitas que logo aparecem nas minhas performances. Também me alimento da literatura e do novo cinema mexicano, do pensamento político de esquerda menos convencional. O pensamento zapatista, por exemplo, tem sido uma influência crucial para as gerações de artistas, em ambos os lados da fronteira. O movimento indígena “As 400 Aldeias” utiliza o corpo nu em grandes performances públicas que nos recordam da dor da conquista registrada nas feridas e as dobras do corpo moreno do camponês. O novo movimento de “Sou 132” contra a imposição de Peña Nieto também utiliza as lições destes grupos para gerar um artevismo performático que supera em originalidade os ocupas europeus.

Também me alimento enormemente da música experimental e de fusão; do rock em língua espanhola e da nova música eletrônica que está surgindo na fronteira, grupos como nortek (gênero de música mexicanca), Kinki (banda Mexicana), Wakal (“Wakal – Pop Som da Rua”, de 2003, projeto do músico mexicano Jorge Govea).

Estamos muito regidos pela política e pelo econômico, mas a cultura gera espaços de resistência muito inspiradores. Minha esperança política sempre está fincada na criação artística.

Porque questões ligadas ao consumo lhe interessam? Como essa inquietação começou?

Eu penso que o artista da performance é um cronista do seu contexto imediato. Fazemos um tipo de crônica distinta a dos jornalistas. Utilizamos linguagens sincréticas, simbólicas e interdisciplinares para expressar a condição humana e o momento que vivemos. Um dos grandes temas atuais que não podemos evitar é a globalização e seu impacto desmesurado nas nossas nações de identidade, nacionalidade, linguagem e expressão cultural. Quando a globalização entrou em colapso, e deteriorou-se, tivemos que levar a cabo a crônica de que esse colapso que, de alguma forma, coincide com o estrondoso 11 de setembro de 2001 e do ataque às torres gêmeas. Repentinamente os EUA viram sua atenção ao mundo árabe. Isso permitiu o crescimento do outro grande projeto global: o do crime organizado.

Recentemente, tenho me interessado em investigar a cultura da violência em México. Por que há pelo menos 10 anos o México se transformou em um dos países mais violentos do mundo? Quais foram as condições políticas, culturais e econômicas que convidaram os narcotráfico continental a instaurar seu centro de operações no México? Como esta cultura de violência extrema que vivemos diariamente está gerando uma nova migração internacional? Somos os exilados pela violência; os que não podem regressar para nossas comunidades de origem porque os narcotraficantes estão roubando lentamente nosso país. Eu regresso continuamente, mas o faço com muito cuidado. Me dá muito tristeza ter medo no meu próprio país. A anatomia do medo é também um tema que me preocupa. Na verdade, eu diria que existem um cinema, uma literatura e uma arte da violência e do medo.

Como o sr. entende o que é um xamã?

Respondo como um artista e não como um antropólogo. Creio que o artista de performance se sente identificado com o xamã. Ainda quando temos intenções e propósitos distintos, ambos construímos sistemas simbólicos para transformar a realidade. O xamã busca curar; nós também buscamos problematizar, questionar, destruir ilusões de familiaridade.

Alguns amigos xamanes quando veem minha obra de performance dizem: “Você é um xamã que perdeu o caminho.” Gosto dessa descrição de performance. Tenho aprendido muito com o xamanes. Sempre tenho tentado observar cuidadosamente suas práticas. Eles me ensinaram o que é a presença, o poder transformador da palavra e o poder transformador dos objetos ritualizados. Mas reconheço diferenças metodológicas e filosóficas.

Os xamãs se localizam em uma tradição muito antiga e que muda lentamente. Eles não podem se desviar da tradição, pois correm o perigo de serem expulsos de sua própria comunidade. Enquanto tanto os performers estamos sempre questionando a tradição e construindo uma pastiche de tradições que combinam com a linguagem da pós-modernidade e das novas tecnologias.

O que é um ritual?

Temos aqui (no congresso de Antropologia do Brasil) 500 antropólogos que estão muito mais preparados que eu para responder a esta pergunta. Mas vou tentar respondê-lo como um artista: os ritos da performance são ações e gestos repetitivos com a capacidade de gerar outros estados de consciência no artista e no público. É uma definição muito simples. Em um sentido mais amplo, por exemplo, no sentido que os teóricos da performance se referem ao ritual, poderíamos estender um terreno semiótico e incluir, digamos, um jogo de futebol, um espetáculo de rock, um reality ou um discurso político como uma ritual performático.

A performance demonstra, muitas vezes, um alto comprometimento com a radicalidade, com o novo. O sr. concorda? Por quê?

Sim, mas nossa busca por linguagens novas e imagens radicais não é consciente. Muitas vezes se critica o artista de performance por buscar a inovação pela inovação, de ser um militante da originalidade. O que acontece mais frequentemente é que estamos dentro de um processo constante de reinvenção e readaptação no contento em que se dá a obra. Mas esse processo de reinvenção não é sempre consciente.

Por outro lado, o mundo da arte sempre nos pressiona para gerar obras novas e insólitas, correndo o risco de ser expulso à margem do esquecimento se nos repetirmos demasiadamente. Então esta pressão também efetua nossa busca obsessiva de linguagens inovadoras. O que me interessa é que minha obra mantenha uma certa vigência e frescura ante públicos jovens. É por isso que minha tropa, La Pocha Nostra, é resultado de uma importante pedagogia. Através de oficinas buscamos sempre incorporar artistas jovens ao processo criativo porque são precisamente eles, os artistas jovens, os que nos permitem manter uma visão fresca e renovada do mundo; evitar assim cair na nostalgia das vanguardas e não instalarmos, como muitos artistas, na repetição das fórmulas que nos levaram a fama. Devemos manter sempre esquivos, difíceis de sermos definidos, procurando sempre insertarmos nos espaços flutuantes de fronteira, que não os mais difíceis de habitar e definir. A semana que vem minha tropa vai para o Festival Internacional de São João de Rio Preto, onde trabalharemos com 15 artistas jovens de performance, teatro e dança de todo o Brasil. Esse desafio me fascina.

Como o sr. pensa o treinamento corporal para as suas performances? Há algum exercício ou técnica que pratique com frequência?

Sim, claro, temos uma metodologia que vem sendo elaborada nos últimos 15 anos. Aliás, um dos meus últimos livros Pedagogia para artistas rebeldes (lançado nos EUA como – Exercises for Rebel Artists: Radical Performance Pedagogy, Routledge, 2011) trata de explicar com muito cuidado exercícios que nos permitem produzir material original. Foi um livro pensado em atender a aula universitária, coletivos comunitárioExercises for rebel artists / Foto: Capa do livros e grupos de artistas jovens com a ideia de que possam afinar suas ferramentas e o seu pensamento crítico.

É muito importante que o artista de performance tenha um treino corporal – Isto é uma ideia que nem todos meus colegas estão de acordo – Meu grupo sempre foi um grupo multidisciplinar onde muitos atores físicos, dançarinos, artistas conceituais, video-artistas, teóricos e ativistas, pessoas interessadas nas artes corporais descobrem um santuário de liberdade para poder compartilhar metodologias performativas e liberação do corpo.

Exatamente neste momento, estou trabalhando em dois projetos de dança pela primeira vez na minha vida e estou sendo coreografado por três mulheres maravilhosas: uma colombiana, Michele Ceballos, uma norte-americana, Sarah Shelton Man, e por uma brasileira, Marcela Levi. Graças a elas estou aprendendo danças extremas, nos meus 56 anos.

Pode detalhar mais como é essa metodologia, como ela é pensada?

Utilizamos múltiplas fontes de inspiração e tradições performativas. Na metodologia da La Pocha Nostra temos um pouco de Suzuki (referência às técnicas desenvolvidas pelo japonês Tadashi Suzuki, 1939), do Boal (diretor e teórico brasileiro Augusto Boal,1931 – 2009), de exercícios xamânicos, de exercícios clássicos de performance, do Schechner (antropólogo e teórico da performance, nascido em 1934), do butô (dança contemporânea japonesa criada por Tatsumi e Kazuo Ohno), de coreografias conceituais. O que temos feito com estas múltiplas pedagogias é pochifica-las, chicaniza-las e, ao mesmo tempo, agrega-las uma consciência de gênero e simplificá-las, desenvolvendo nossos próprios exercícios. Trata-se, pois, de uma metodologia extremamente política, que não somente treina o corpo, mas que o politiza. Para nós, o principal objetivo é a descolonização do corpo.

Qual é a importânica e a utilidade da dramaturgia na performance? Ela estaria restrita ao storyboard?

No mundo da Pocha Nostra, como trabalho de grupo, utilizamos libretos individuais e com um texto geral, que são os hipertextos compartilhados. Explico: se ‘A’ acontece, você tem a possibilidade de chegar em ‘B’, ‘C’ ou ‘D’. Se ‘B’ acontece, você tem a possibilidade de chegar a ‘D’, ‘F’, ‘G’… Se ‘G’ acontece, você pode chegar a ‘M’, ‘N’ ou ‘L’. Indo mais além das possibilidades previsíveis no hipertexto está o uso da inteligência performática in situ, ou seja, que temos que tomar posições imediatas quando aparecem obstáculos, imprevistos e/ou acidentes… E trabalhar em diálogo com o público. Nós também oferecemos espaço ao público para que seja capaz de mudar o destino da obra. É justo nesse momento em que entramos no território do desconhecido, que é aquilo que mais gosto da performance. Quando já não temos retorno, nem possibilidades de prever o que está a ponto de suceder e o que sucede é irrepetível. Estamos nos terrenos da física quântica e do pós-xamanismo.

Há previsão de lançamento de traduções de livros seus aqui no Brasil?

Infelizmente não me foi oferecida a possibilidade de tradução para o português de nenhum dos meus livros. Tenho vindo ao Brasil nos últimos 4 ou 5 anos. Temos muitos graduados nas oficinas da Pocha Nostra no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e outras partes do País. Nesse sentido, penso que já chegou a hora dos meus livros serem traduzidos para o português. Especialmente recomendo a tradução do meu livro de pedagogia. Espero despertar o interesse de algum teórico interessado em fazer a tradução.

Quais são seus futuros projetos? Tem tido inquietações por novos temas?

Tenho tantos! É um bom momento para a Pocha Nostra. Estamos a ponto de estrear uma obra intitulada “Corpo Insurrecto”, que é baseada na ideia do corpo humano como um local para o ativismo e para a espiritualidade radical. Uma obra que tem sua influência principal nos movimentos de ocupação internacionais, pelos movimentos dos indignados espanhóis e dos indígenas das Américas. Mas o artevismo corporal que nós propomos é muito distinto dos movimentos estritamente políticos. É muito mais bizarro e extremo; as imagens são mais contundentes e complexas. Esse é o projeto mais ambicioso da Pocha Nostra neste momento. Também temos projetos de cinema, literários virtuais em formato de blog, todos muito animados e muito legais. Além do mais, continuamos com o grande projeto pedagógico de uma escola de verão no sul do México, na cidade de Guajaca, que acontece a cada ano. E um projeto de inverno que acontece de forma nômade ao longo de diversas cidades perto da fronteira com os EUA. São escolas de verão, com cursos intensivos que duram quase 3 semanas onde realmente conseguimos treinar aqueles que posteriormente serão os novos membros da Pocha Nostra em vários países.

Com qual ou com quais artista o sr. dialoga?

Estou em diálogo permanente com vários artistas, curadores, coreográficos e escritores de vários países. Continuo um diálogo com os performers da minha geração, gente como Franko B., Ron Athey e Ribot, que vivem em Londres; performers mexicanos como César Martinez, a Congelada de Uva e Felipe Ehrenberg, que por certo está vivendo em São Paulo. A performer chilena Julia Antivilo que dirige o coletivo de Malignas Influências. Também há vários curadores que trabalham muito a cerca da Pocha Nostra, gente como a argentina Gabriela Salgado, o espanhol Orlando Britto-Jinório e a canadense Heather Heinz. Nos Estados Unidos, o artista conceitual indígena James Luna, o pregador radical reverendo Billy, e a sexo-radical Annie Sprinkle trabalham seguidamente conosco. Somos uma comunidade muito eclética de loucos e loucas que, por sorte, ainda não estamos na prisão.

Quais seriam, teoricamente, as maiores dificuldades de se ensinar performance?

A principal dificuldade é o meio universitário, com seu puritanismo corporal e sua excessiva teorização que termina por institucionalizar a performance. Nossa relação com a academia é muito conflituosa. Convidam-nos continuamente e ensinam nossas ideias, mas quando damos aulas no contexto universitário nos impõem muitas restrições. É por essa razão que as melhores oficinas da Pocha Nostra sempre acontecem fora da universidade, onde realmente podemos ser livres do escrutínio da autoridade e ocupar espaços mais interessantes: edifícios abandonados, antigas estações de trem, espaços públicos muitos concorridos.

Arthur Moreau é artista, bacharel em Comunicação das Artes do Corpo (PUC-SP) e estudante de Direção, na SP Escola de Teatro. Colaboraram na transcrição e tradução: Diana Gomez, Stephanie Esparza e Fabian Alonso.