O corpo na berlinda

O corpo está na moda. Para entender, discutir e (principalmente) repensar o porquê disso foi realizado esta semana, no Rio de Janeiro, a 4ª edição do seminário O Corpo na Arte Contemporânea. Idealizado pela coreógrafa Márcia Milhazes, o evento reuniu desde segunda-feira (10/05) nomes representativos de quatro linguagens artísticas: artes plásticas, dança, música clássica e literatura.

“O corpo é o assunto da moda em todas as áreas de conhecimento. O discurso se trivializou. Atividades como essa, em que temos liberdade de falar sobre o tema, permite refletir sobre essa hemorragia inestancável de produção em todos os domínios. Somos bombardeados de informações todo o tempo e isso influencia a produção de conhecimento que vem depois. Precisamos inventar outro tipo de espaço de reflexão”, alertou a pesquisadora e crítica de dança, Helena Katz, convidada da terça-feira.

Inspirada pela beleza da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, a apresentação de Helena  trilhou pelo cuidado que devemos ter com os modismos que cercam os discursos sobre o corpo. “Nos estudos de biopolítica, outro assunto da moda, o corpo aparece como objeto biológico, apenas como uma carcaça, desligado do ‘eu’, é o corpo ‘vida nua’ (termo do autor Giorgio Agamben) que, na verdade, não existe. Nosso corpo conta tudo sobre nós, ele registra todas as referências culturais que experimentamos durante a vida. O corpo ‘vida nua’ é interesse político, para facilitar o controle social. Não existe um corpo natural, desde embriões recebemos informações externas”, afirmou, para uma plateia formada por ouvintes das mais diferentes áreas, não apenas da dança.

A pesquisadora também chamou atenção para o momento de hiperconsumismo que transpõe fronteiras de áreas como economia e moda. “Vivemos um momento de hiperconsumismo também no campo acadêmico. Ele foi importado da economia sem nenhuma adaptação. Termos e ideias nascem para se tornar obsoletos rapidamente”, afirmou. E exemplifica com um problema crônico observado na área de dança. “As leis de incentivo se baseiam nos critérios de hiperconsumismo. Os artistas se vêem obrigados a produzir sem parar e a qualidade artística fica comprometida. Neste contexto de produção regida por editais, os projetos acabam tendo um formato que exige uma aceitação. Os artistas não estão mais colocando suas questões ali. Como isso se refletirá nesse corpo? Para quem é feito esse trabalho? O mesmo acontece no mundo acadêmico. Precisamos inventar um novo caminho”.

A obra 'Lecture', no Museu Reina Sofia / Divulgação: Galeria Fortes Vilaça

A obra 'Lecture', no Museu Reina Sofia / Divulgação: Galeria Fortes Vilaça

A saída estaria exatamente no processo criativo e nas manifestações artísticas. “Como a arte pode ajudar a falar do corpo de outra forma? Arte tem papel libertador, ela deve lutar contra esse processo de obsolescência constante. As pessoas precisam se ouvir, identificar questões em coletivo. Enquanto procurarmos o caminho individualmente, não conseguiremos enxergar nada, não vamos perceber o que está faltando”, inquieta-se Helena.

Artista plástico apresenta questões semelhantes

Na noite anterior, o artista plástico José Damasceno percorreu alguns temas em comum com o que a pesquisadora falaria em seguida, como o exagero de estímulos e informações a que somos submetidos diariamente no mundo contemporâneo. Com formação parcial em arquitetura, Damasceno também ressaltou a importância que o espaço exerce em suas obras. “O que proponho é criar uma forma de me relacionar com o mundo. Vivemos numa época muito peculiar, de produção intensa de informações e muitas narrativas”, acredita o artista, que cria obras a partir de objetos simples e corriqueiros, como lã, espuma e giz de cera.

Durante a explanação, ele mostrou trabalhos realizados recentemente em parceria com importantes instituições nacionais e internacionais. Como a exposição Coordenadas y Apariciones, da qual Damasceno participou no Museu Reina Sofia, em Madri. Com a proposta de ocupar espaços alternativos do museu, uma das obras apresentadas foi Lecture (foto), feita de centenas de livros de massa de modelar. “Vivemos um exercício de atenção expandida o tempo inteiro. Tudo o que vemos nas ruas pode servir de inspiração. A arte contemporânea se nutre desse excesso de informações”, admite. Ainda não sabemos onde isso vai dar, é necessário descobrir novas coordenadas”.

Para Márcia Milhazes, idealizadora e curadora do seminário, o importante é a troca de impressões, sempre. “Eu sou de dança mas o objetivo era uma discussão mais ampla. É um bom confronto para todos nós. Nos sentimos mais bravos com essas inquietações”, comemora. Além de Helena e Damasceno, também participaram do seminário o cravista e regente Marcelo Fagerlande, e a atriz e jornalista Bianca Ramoneda.

Leia também: Seminário discute o corpo na arte contemporânea

The English version will be available tomorrow.