O corpo que pensa

Resumo de dissertação defendida no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, em São Paulo, dezembro de 1998. Orientadora: Dra Helena Katz.

Basta de magia casual, de uma poesia que não tem a ciência para apoiá-la.

No teatro, doravante, poesia e ciência devem identificar-se (Artaud,1993:136)

No universo das teorias teatrais elegemos, entre as provenientes dos processos empíricos, as que resultam de uma pesquisa conjunta entre diretores e atores. O que estes diretores têm em comum, e que paira acima de suas inegáveis especificidades, é a idéia da atuação como uma construção física, que ocorre no corpo primeiramente, seja ela referente à criação de uma personagem, ou a outras experiências teatrais que o ator possa vivenciar. Vemos o método destes diretores apontando para um ator que vivencia processos de conhecimento na experiência teatral, bem como um tipo de redimensionamento do papel do corpo nestes processos. Nas suas propostas para a construção do corpo do ator, aparecem buscas semelhantes, tais como resgatar uma certa organicidade perdida ou conquistar um tipo de autonomia do corpo do ator frente aos processos mentais e racionais.

Tais diretores manifestam-se contra o controle do corpo por uma espécie de discursividade da mente, ou do que denominam de racionalidade do cérebro, sob o argumento de que tais propriedades não dariam conta do pleno exercício das potencialidades inventivas do ator. A fim de ampliar, não só um corpo de conhecimentos para os atores, mas as possibilidades do corpo do próprio ator que busca o conhecimento, estes diretores introduziram no treinamento corporal técnicas e teorias que não são exclusivas do teatro, tais como práticas procedentes do budismo, do taoísmo e de rituais de sociedades mais tradicionais.

Para os diretores de atores citados, o cérebro e sua arquitetura, bem como a certeza de alguns sobre um pretenso domínio centralizador dele sobre si e sobre as coisas, vai deixando de exercer primazia na busca por uma nova postura criativa do ator. Neste empreendimento, o corpo em ação, interagindo diretamente com o meio, passa a tomar as rédeas desses processos, tornando-se apto a deflagrá-los. Criação e conhecimento passam a ser entendidos como atributos do corpo em ação, e não só da mente em ação. A técnica teatral começa a privilegiar cada vez mais os exercícios corporais, e o ator, ao invés de somente decorar textos, traçar mentalmente o perfil dos personagens, esboçar inflexões da voz e seguir certos truques de boa aparência cênica – provenientes, ainda, de um tipo de formação que segue a tradição das escolas dramáticas do século XIX, como a francesa – trata de aprender as técnicas de como colocar o corpo todo em ação na experiência teatral.

Tornou-se necessário entender como no corpo vivo, em ação, são desencadeados tais processos, considerados aqui como processos de cognição. O corpo que atua no mundo “extra-cotidianamente”, conceito empregado por Barba (1989) para significar estar em situação de representação teatral utilizando-se de técnicas – também representa o mundo à sua volta e vivência processos de conhecimento em seu cotidiano.

Partiremos de um entendimento biológico para compreender melhor (ainda que parcialmente) o papel do corpo no processo cognitivo (na vida e na arte), pois concordamos com a perspectiva teórica que pleiteia intrincamentos entre natureza e cultura. Não se trata de reduzir os processos da cognição à via biológica, mas valer-se principalmente dela como esclarecedora de alguns entendimentos que têm levado para longe do organismo e seu funcionamento o que recentes teorias já apontam como pertencentes a ele (o organismo). Afinal, trata-se do mesmo corpo que sente, pensa, come, adoece, e atua esteticamente no mundo. Além de ser o mesmo corpo dentro e fora do teatro, em termos evolutivos, ele também se torna outro, particularizado em cada meio onde atua.

O entendimento do conhecimento como ação experienciada, e não só como reflexo de processos mentais e racionais, por vezes não se organiza de forma clara no discurso de alguns diretores formadores de atores. Uma pulsão metafísica emerge, bem como atribuições místicas para identificar o que brota a partir do corpo em ação. O que é perseguido e obtido do físico, habitualmente, é creditado fora dele. Ainda que cientes dos problemas que cercam o dualismo e de sua ineficiência na formação do ator, o método dos diretores de atores citados apresenta, muitas vezes, um entendimento de razão e emoção, corpo e mente, mente e cérebro como entidades separadas e, por vezes, incompatíveis em sua operacionalidade.

Na dissertação intitulada “O corpo que pensa, o treinamento corporal na formação do ator” defendemos a idéia de corpo enquanto organismo, onde a interação de corpo, cérebro e mente desencadeia os processos cognitivos, trazendo, assim, um caráter mais amplo e extensivo à cognição e, consequentemente, menos dualista. Buscamos renunciar à herança cartesiana de separação da mente e do corpo, onde as estruturas da mente são vistas como irremediavelmente sem dimensões ou tangibilidade, e as estruturas do corpo, por sua vez, seguramente organizadas biologicamente, com dimensões extensas e tangíveis. Negada a separação entre corpo e mente, o que o corpo proporciona ao desencadeamento dos processos cognitivos não pode ser mais reduzido a um mero suporte material ou de manutenção para a ocorrência das operações mentais. O corpo oferece à mente referências indispensáveis de si mesmo e do meio e, provavelmente, nossas mentes não seriam o que são sem a interação entre o corpo e o cérebro.

A natureza parece ter construído o equipamento de racionalidade não apenas por cima do equipamento da regulação biológica, mas também a partir dele e com ele (Damásio,1996).

Reafirmamos este corpo que, de coadjuvante passa a exercer um papel imprescindível na cognição, como não separado da mente. A mente, justamente, está no corpo como um todo. E o ato de conhecer, juntamente com todo o aparato sensitivo e perceptivo, por sua vez, emerge do corpo e da sua interação consigo mesmo e com o meio. O corpo que “pensa por si mesmo”, evocado pelo ator Thomas Richards (1), reflete interesses em comum surgidos da prática dos diretores citados e reforça a idéia de pensamento como uma ação experienciada do corpo (organismo) no mundo, e não um processo que requisita ou se legitima somente por um empenho da mente ou cérebro. Percebemos que o entendimento de corpo presente nas teorias teatrais dos diretores formadores de atores que mais constantemente serão citados neste trabalho, como Stanislavski, Grotowski, Barba e Antunes Filho, acentuadamente sustentadas por uma prática do corpo do ator em ação, podem ter um eco em outras teorias, estas ocupadas também em estabelecer relações entre corpo e conhecimento. A fim de entender melhor este corpo que faz teatro como uma forma de conhecimento, de si e do mundo, o aproximamos de algumas teorias científicas que tratam de semelhantes questões. Acreditamos que as recentes teorias das ciências que tratam da cognição podem não só esclarecer, mas até mesmo fortalecer o discurso teórico destes diretores. Nos últimos trinta anos, a área cognitiva desenvolveu-se enormemente, através da convergência de especialidades tais como a química, a neurobiologia, a filosofia, a matemática, a biologia molecular, a física e a inteligência artificial, entre outras, delimitando uma recente área do conhecimento: as ciências cognitivas.

Os cientistas concordam que foram a física e a química, desde o século XIX, as ciências que obtiveram um maior desenvolvimento e produziram profundas alterações na compreensão do mundo. A teoria da relatividade e a mecânica quântica são dois dos mais expressivos exemplos. Mas, neste início de século, o foco maior está na biologia, na genética e nas neurociências. Questões básicas como a evolução e o entendimento das operações mentais, da cognição e da consciência, estão sendo amplamente estudadas, e já provocam uma reorganização de saberes na sociedade.

As questões que envolvem os conceitos de representação, bem como o papel do corpo e dos processos mentais (2) na experiência teatral, podem encontrar, nas teorias das ciências cognitivas, informações capazes de iluminar, de outra maneira, estes temas amplamente tratados nas teorias do teatro. Este tipo de informação pode abrir caminhos para possíveis novos entendimentos dos processos que determinam como o ator conhece e representa. Visto que estas ciências tratam da cognição, da representação, e das relações entre mente e corpo, e emoção e razão, este trabalho, que parte de uma reflexão sobre a prática destes diretores de atores, busca ressonâncias entre arte e ciência.

Ainda que os diretores não falem sobre qualquer envolvimento de suas pesquisas com estas teorias cognitivas, sua prática metodológica expõe questões que dialogam com estas ciências. É possível perceber que as questões que os diretores de teatro estão discutindo a respeito do corpo também são centrais para as ciências cognitivas. Não se trata aqui de criar uma “teoria cognitivista” do teatro. A aproximação com certos teóricos da cognição visa auxiliar a entender melhor parte do discurso sobre a formação do ator florescido neste século. Para os diretores russos Stanislavski e Vsevolod Emilievic Meyerhold (1874-1940), passando pelo diretor francês Antonin Artaud (1896-1948), por Grotowski e Barba, o corpo daquele que faz o teatro, o ator, é apontado como a matéria de transformação dos modelos representacionais.

O estudo das representações mentais tem sido tema de diferentes ciências, entre as quais a semiótica e as ciências cognitivas. Na semiótica, suas definições são variadas, existindo desde a escolástica medieval. Mas seu estudo amplia-se hoje, principalmente, como discussão central nas teorias das ciências cognitivas, razão pelo qual estaremos utilizando-as aqui.

Não há unanimidade para a explicação de como o homem elabora cognitivamente suas representações, conhece a si mesmo e ao mundo. Ou seja, como trás para si o mundo que o rodeia, e transforma esta experiência em conhecimento para perceber e agir neste mesmo mundo. No universo das ciências cognitivas, elegemos duas hipóteses teóricas que nos auxiliarão no estudo da inserção do corpo nos processos cognitivos. Uma que trata das questões da representação/presentação, e outra, que trata do lugar da emoção e da razão no corpo, estes, temas bastante constantes nas falas dos diretores de atores aqui apresentados. Etimologicamente, o conceito de representação difere do de (a)presentação. Na apresentação, o objeto se apresentaria mais diretamente, ele praticamente “encarna”. Na representação, mediado por algo, o objeto não se dá somente e imediatamente por suas qualidades próprias, mas se apresenta através de algo que se coloca em seu lugar, o reapresenta (ou simboliza, ou reproduz, ou atualiza).

Dentre as linhas de pesquisa que tomamos contato no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, nada nos pareceu tão pertinente para se falar de corpo, mente, razão e emoção, quanto a obra do neurologista português Antônio Damásio, chefe do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Iowa (O Erro de Descartes, 1996). E para formular a idéia de uma cognição “encarnada”, resultante de experiências que ocorrem no corpo, elegemos o conceito de enacción, nascido nas teorias dos biólogos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana (El árbol del conocimiento (1994) e De cuerpo presente (s/d). Estas teorias nos auxiliarão a levantar questões importantes sobre os conceitos de representação e presentação, bem como a presença do corpo e da mente como mediadores destes processos.

Acreditamos que os diretores de atores, ao apelarem para o corpo do ator como elemento de transformação, não o fazem somente porque no teatro o corpo presta-se a uso ideológico – tal qual no teatro dos anos 60, embalado por questões políticas e sociais. Os diretores o fazem, mesmo que não deliberadamente, porque o corpo, de fato, se oferece como o lugar onde os processos cognitivos ocorrem, ao mesmo tempo que é também, com esse mesmo corpo, que os conhecemos. É baseado nesta hipótese, que buscamos ressonância entre as práticas corporais do teatro e as teorias das ciências cognitivas. Somando-se ao que, para nós, é ponto chave: o processo de formação do ator é, acima de tudo, um processo de conhecimento.

*Sandra Meyer é professora do Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); coordenadora do Curso de Especialização em Dança Cênica da UDESC; crítica de Dança do Jornal A Notícia, SC, e doutoranda do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP.

Notas:

1. Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, realizado entre os dias 14 e 16 de outubro de 1996, no SESC Anchieta, São Paulo. Iniciativa do SESC e do Centro de Pesquisa Teatral-CPT, o evento contou com a presença de Grotowski e do ator e diretor inglês Thomas Richards, além de teóricos de diversos países, a fim de discutir o trabalho realizado pelo diretor polonês e seu assistente e parceiro de pesquisa em seu centro de pesquisas teatrais em Pontedera (Itália).

2. As questões que envolvem a razão e a emoção foram tratadas pelos diretores teatrais mais comumente como desdobramentos dos processos mentais, ou seja, que pertencem mais ao funcionamento da mente e do cérebro, do que aos estados do corpo. Estes estados mentais são traduzidos muitas vezes como estados do “espírito” ou da “alma”, com uma visível relação hierárquica e dualista frente ao corpo e sua “mecânica”.

Referências Bibliográficas:

ARTAUD, Antonin (1993). O teatro e seu duplo. São Paulo, Martins Fontes

BARBA, Eugenio. SAVARESE, Nicola (1989). Anatomia del actor. Diccionario de Antropologia Teatral. Colección Escenologia. México, Editorial Gaceta

DAMÿSIO, Antônio R. (1996). O Erro de Descartes. Emoção, Razão e o Cérebro Humano. São Paulo, Companhia das Letras.

GROTOWSKI, Jerzy (1992). Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

El árbol del conocimiento. Chile, Editorial Universitaria.

MILARÉ, Sebastião (1994). Antunes Filho e a Dimensão Utópica. São Paulo, Editora Perspectiva.

PALACIOS, Felipe Reyer (1991). Artaud e Grotowski, el teatro dionisíaco de nuestro tiempo. México, Editorial Gazeta.

PAVIS, Patrice (1990). Diccionário del Teatro. Dramaturgia, Estética, Semiologia. Barcelona, Ediciones Paidós.

STANISLAVSKI, Constantin (1989). Minha vida na arte. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

_______________________ (1994). A construção da personagem. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

_______________________ (1995). A criação de um papel. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

VARELA, Francisco. THOMPSON, Evan. ROSCH, Eleanor (s/d). De Cuerpo Presente, Barcelona, Gedisa Editorial.