O equilíbrio precário de um corpo superlativo

Um linóleo branco que encandeia os olhos pela incidência de uma forte luz fria de LED. O público se acomoda em arquibancadas posicionadas nas laterais do espaço evidenciando uma cena central onde o espetáculo se desenrolará. Arquibancadas, que, ao parecerem flutuar no branco vazio, colocam os espectadores frente a frente, em um confronto: um confronto entre si e entre um corpo que irrompe no espaço.

Este corpo engaja-se imediatamente em ações contínuas de intensa dinâmica. Ações físicas sucessivas, que, em um primeiro instante parecem cotidianas, mas que em sua repetição com diferença revelam certa complexidade gestual. O espaço antes em suspensão finca-se na terra com vigor. Vestido com calça e blusa cor de vinho e tênis azuis, o corpo que aparenta estar em um registro físico habitual desvela um jogo de estados mentais potencializado pela intensidade dos movimentos.

Este corpo é da artista argentina Alina Ruiz Folini que no espetáculo Supervivencia, propõe potentes operações corporais as quais temos o reflexo de identificar. E, a cada tentativa de interpretação, Alina nos “tira o tapete” deixando claro que o que ali está irá nos escapar do início ao fim do espetáculo. Impossibilitado de nomear as ações que ali se instalam, o espectador é convocado a abandonar continuamente os mecanismos dos quais lança mão na sua repetição cotidiana da sobrevivência.

Sobrevivência, título do espetáculo, se traduzido para a língua portuguesa. A palavra que em espanhol significa sobrevivência, em português sugere uma vivência superlativa. Instala-se uma dança permeada de excessos e informações acumuladas. Uma dança de movimentos desapegados, de gestos que ao surgirem, já ficam para trás. Uma dança que é fruto do esforço ininterrupto de um corpo que, embora atlético, enérgico e preciso, se lança ao espaço imbuído de suas fragilidades, riscos e limites. O cansaço e o suor do corpo de Alina são nossos também.

O uso de imagens, da voz, de paisagens sonoras, do corpo de outros performers e de objetos como ripas de madeira sugerem a busca por suportes e interfaces que permitam a artista prosseguir e permanecer fiel às tarefas que deve executar, por força da dramaturgia construída pelo seu próprio corpo. Uma estrutura dramatúrgica desafiadora, que nos inclui e exclui ao mesmo tempo. Que acolhe o que dizia Nietszche: “Não há fatos, apenas interpretações”. E acolhe o que preocupava Sontag em sua afirmação: a interpretação torna a arte dócil, conformada. E também o que Barry arrisca dizer: o ato de formular uma interpretação dura 10 segundos. Será? Neste jogo de entra-e-sai proposto pelo espetáculo, a atenção à forma em lugar do conteúdo – que provoca a “arrogância da interpretação” – é um interessante exercício numa obra aberta como esta, sujeita a contínuas reinvenções, o que não a livra de um certo rigor.

Quando a dramaturgia corporal de quem está em cena alcança a fisicalidade perceptiva de quem observa, aguçando seu simples desejo de seguir a trajetória dos signos não-codificáveis do corpo em evidência  – sem importar aonde ele irá chegar – talvez, neste momento, possamos afirmar que o desafio de sobrevivência (cênica) da performer se coletiviza, investindo os corpos de alteridade, mesmo  que enganados por um falso riso. Somos então provocados a refletir em que medida conseguimos tornar coletivas nossas questões individuais. Até quanto aguentamos suportar uns aos outros? “Supervivencia” esboça respostas. Até as responde. Mas as recomeça.

*Mariana Pimentel reside no Rio de Janeiro, é artista da dança e gestora cultural. Mestre em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias pela Universidade Nova de Lisboa, atua em projetos independentes de dança e faz parte do grupo de pesquisa Corposições. Ao lado da artista portuguesa Lígia Soares é criadora  do FACE A FACE – Plataforma Luso-Brasileira de Artes Performativas. Participou da oficina “Juntando Escrita” de Anderson do Carmo no JUNTA Festival, a qual a fez transbordar de estímulo para desenvolver  críticas que dançam.