Balé Neoconcreto I_ Lygia Pape / Foto: Divulgação

O Inorgânico como Fertilidade – Sobre Balés Neoconcreto n. 1 e n. 2

Infelizmente, Lygia Pape, uma das mais importantes artistas plásticas do Brasil, que nasceu em 1929, morreu em 2004. Com suas obras, que brincavam com contradições ou configurações inusitadas de termos e conceitos ordinários, ela tentava provocar o corpo do receptor a fazer associações lúdicas e empíricas com seus mundos, com suas rotinas. Ela sintetizava esses problemas através de organizações materiais e objetivos específicos novos. Também elaborava peças com questões mais modestas que, no geral, permaneciam mais no campo da experiência das formas. Obra e carreira comprometidas com convidar o humano a deslizar em sensações não homogêneas, mas cujas possibilidades de percepção estão próximas, seja no sentido de localidade como no conceitual.

Suas inquietações eram colocadas nas formas que lhe entendesse mais adequadas para dialogar com as respectivas questões específicas em que se debruçava em cada uma. Essa inteligência incluiu os Balés Neoconcretos número 1 e número 2. As coreografias foram inspiradas no poema Olho/Alvo, do poeta e jornalista Reynaldo Jardim (1926 – 2011) e são dele também as músicas, de som percursionista, que acompanham as danças, compostas de pouquíssimas notas. Pela terceira vez, ambos foram apresentados nos dias, 30 e 31 de março de 2012, no SESC Bom Retiro, São Paulo. O I teve estreia em 1958, no Teatro Copacabana Palace, na Apresentação Especial do Movimento Neoconcreto. A primeira apresentação do II foi no Teatro Gláucio Gil, que faz parte da 1ª Exposição Neoconcreta do MAM, em 1959. Os dois ocorreram no Rio de Janeiro. Em 2000, a dupla, então coreografada por Né Barros, foi reapresentada em Porto, Portugal, sendo produzidos pelo Museu Serralves.

Aqui, Balé Neoconcreto I e Balé Neoconcreto II fazem parte de um evento maior que é a exposição chamada Lygia Pape – Espaço Imantado, na Estação Pinacoteca, de 17 de março a 13 de maio. Duas palestras sobre ela, dias 29 de março e 3 de maio, no Auditório da Pinacoteca Luz, complementam a ocasião, que é organizada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo e pelo Projeto Lygia Pape, presidida por Paula Pape, filha da artista.

Em cena, nos dois Balés, formas tridimensionais simétricas se deslocam lentamente. Elas ordenam-se nos seus percursos, em movimentos com velocidade quase constante, em sequência de ordens, como se experimentasse todas as variações possíveis, cujos deslocamentos providenciavam os diferentes pontos de vista ao espectador. A luz ajuda a emergir e a desfazer sobras e cores. A música se repetia, o que combinava com a dinâmica minimalista geral, composta de elementos fundamentais. Dentro ou atrás dos objetos, os dançarinos (as) estão invisíveis durante toda a duração. Mas, ironicamente, aparecem no final, como se fosse um epílogo, para as palmas, devidamente iluminados em cena para recebê-las. Parece uma quebra no discurso implícito e radical.

Com essa dupla, Lygia instaurou o corpo humano na discussão artística brasileira. Nas artes plásticas, ela o inaugurou, expandindo o território de investigação do artista plástico. A participação do público ganha novas possibilidades, como aconteceu na exploração das múltiplas fisionomias que a obra poderia assumir, nos bichos de Lygia Clark (1920 – 1988) e nos bólides de Oiticica (1937 – 1980). Já na dança, Pape o desvalorizou. Afinal, os Balés cancelam intensamente as particularidades daqueles que empurram e puxam as grandes formas dentro do espaço cênico. É um modo de entender o intérprete da cena parecido com a teoria das supermarionetes, do diretor teatral inglês Edward Gordon Craig (1872 – 1966), que seria o desejo por atores cujas movimentações fossem muito eficientes, mas desprovidas de expressões que carregassem suas emoções e egocentrismos íntimos.

Mas o neoconcretismo não foi uma crise na interpretação da dança e nem do corpo. Lygia Pape, Reynaldo Jardim, Mário Pedrosa (1900 – 1981), Franz Weissmann (1911 – 2005), Theon Spanúdis (1915 – 1986), Lygia Clark, Amilcar de Castro (1920 – 2002), Aloísio Carvão (1920 – 2001), Décio Vieira (1922 – 1988), Ferreira Gullar (1930) e Hélio Oiticica compuseram o Grupo Neoconcreto, que durou de 1959 até 1961. Eles debatiam e pesquisavam juntos um modo de pensar/fazer arte. O ímpeto era vislumbrar o futuro pensando no presente. Um desejo de liberdade de experimentação que conquistasse, no público, associações com vestígios simbólicos inesperados. Mas, ainda assim, com alguma lógica comunicacional. Perante o concretismo, foi uma tentativa de provocar mais alteridade, mas sem a especulação de como seria o desenvolvimento na recepção da obra no outro, portanto, sem ter certeza, em hipótese alguma, como ela deveria se formar para ser eficaz. Esse pensamento é nomeado como mecanicista da arte. Eles criticavam muito isso. A ideologia que contaminava a todos eles era uma superação à falida dualidade entre o corpo e o mente (ou cérebro).

Por isso os Balés são e têm que ser com pessoas. Mas a suspeita da importância delas para a arte acontecer e constituir forma é urgente. Quem está vivo está sempre pensando ativamente naquilo que entra em contato. Por isso, o espectador pode ou não reparar em como as peças, sejas as do palco ou de qualquer unidade da sua vida, como se distribuem. A individualidade de cada é definida pelo conjunto, mesmo que essa constatação seja feita apenas pela luz e localidade. Todavia, se um coletivo tem ordens e desejos internos, apenas o externo poderá julgá-lo como um todo. Mas as regras dessas constituições devem dar espaço que sensibilidades extravasem e nos questionem.

Arthur Moreau é artista, bacharel em Comunicação das Artes do Corpo (PUC-SP) e estudante de Direção, na SP Escola de Teatro.