O mundo começa na fronteira

Durante o primeiro Fórum Cultural Mundial, em São Paulo, julho passado, não faltaram críticas às mesas de trabalho e à confusão de temas e subtemas. A dança, que não tem nem de longe a organização mundial que já têm alguns setores do circo, do teatro e principalmente da música, aproveitou para estabelecer conexões ainda mais básicas. Como costuma acontecer, precisamos de um evento internacional – e sobretudo verba internacional – para que artistas brasileiros consigam se encontrar. Como não temos uma política cultural de infra-estrutura e desenvolvimento de redes de informação e circulação, desde os últimos governos – e o atual ainda está na fase de reestruturação, há uma enorme dificuldade em reunir gente de vários pontos do país para discussões estruturais do setor. Nesse sentido, o Fórum Cultural foi uma excelente oportunidade para as tentativas que já, há um par de anos, engatinham para tentar colocar em rede a dança brasileira e sul-americana. Houve reforço dos contatos com Europa e África, sem dúvida. Mas dois grupos de trabalho começaram no Fórum duas frentes de atuação que podem ser no momento as mais importantes em termos estratégicos para a dança brasileira: a preparação do primeiro encontro da RedSudamericana no Brasil e uma rede de ensino universitário de dança.

Estratégico porque, no mundo dos fundos e mercados de hoje, blocos comerciais e culturais são mais fortes que países e, sobretudo, que companhias e artistas individuais. E porque só organizados e conscientes das necessidades mais amplas podemos pleitear políticas públicas locais, nacionais e internacionais de longo prazo. Só organizados podemos agir no mundo. E o mundo, evidentemente, começa na fronteira.

Assim, um grupo de trabalho foi organizado durante o Fórum pela Red Sudamericana de Danza, reunindo representantes de Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile. Ali, numa conversa que começou em fevereiro durante a semana de apresentações do Rumos Dança Itaú Cultural, em São Paulo, levou-se adiante a idéia de organizar, na edição desde ano do Festival de Dança de Araraquara, um primeiro encontro preparatório para um encontro internacional maior da Red Sudamericana no Brasil. Um grupo reduzido mas representativo de pessoas serão reunidas durante alguns dias para pensar estratégias comuns de ação e troca de experiências dentro das realidades e necessidades da dança contemporânea nos países da América do Sul. O básico. Mas para um Brasil que ignora o resto do continente e é por ele ignorado, um feito inédito.

Por mais trabalhoso que seja, isso é fazer o trabalho de casa essencial, entender as questões estruturais da dança brasileira e relacioná-las às dos países vizinhos. A partir disso, o diálogo com fundos de desenvolvimento e cooperação passa a outro nível. E sobretudo a relação com os nossos ministérios da cultura passa a ser mais sólida, pelo menos de parte dos artistas. O ministro Gilberto Gil, num encontro organizado informalmente no Rio este ano, argumentou que políticas do ministério para dança passam por saber o que pensam os profissionais brasileiros. Ninguém o contestou, porque a verdade é que, salvo iniciativas já mais resistentes, como o Fórum Nacional de Dança e o Mobilização Dança (há outros pelo país), faltam documentos, propostas, consultas profissionais. E faltam porque os artistas estão, como de costume, lutando pela sobrevivência. Que estas questões deveriam partir dos profissionais de gestão pública de cultura ninguém duvida. Mas esperar passivamente sem que, como qualquer outra área de atividade, a dança busque um grau mínimo de organização em rede, é, na realidade atual, suicida.

E as redes de sucesso começam com a troca básica de informações. O projeto idanca.net nasceu dessa necessidade e tenta, assim como outros projetos de informação de dança na internet brasileira, como o Conexão Dança, o idance, e outros (veja os links de publicações), fazer com que as notícias circulem. Mas é preciso que as pessoas e as experiências também se encontrem. A uruguaia Natacha Melo, coordenadora geral da Red Sudamericana de Danza (veja link em nossa seção de redes) está organizando uma primeira atividade concreta pós-Fórum Mundial: um seminário preparatório reunindo representantes de vários países e do Brasil em Araraquara em setembro. O plano é juntar também representantes de redes trabalhando dança na América do Sul. Dali podem sair documentos a serem encaminhados para os ministérios de cultura e órgãos de cooperação do Mercosul, por exemplo. Parece um palavrório político, e é comum documentos propositivos serem ignorados pelos políticos. Mas é o básico de onde se parte para fundamentação das políticas culturais contemporâneas.

Uma segunda atividade feita no Fórum pode também ter frutos ainda este ano. Um encontro dos cursos superiores de ensino de dança do Brasil e América do Sul reuniu, em alguns casos pela primeira vez, representantes de universidades, faculdades e cursos de especialização de diferentes lugares, países e realidades. Havia representantes do Brasil e dos países que integram a Red Sudamericana de Danza. Mais uma vez, ficou evidente a falta que faz estar em rede. Mesmo dentro do Brasil os cursos não têm informação suficiente uns sobre os outros. Isso dificulta desde a proposição política até aspectos da vida acadêmica mais cotidiana, como vinda casada de professores, programas de intercâmbio, etc. A UFBA, a PUC de São Paulo e outros já estão se organizando num programa de trocas acadêmicas desde o ano passado. Mas há muito mais por fazer. O idanca.net propôs ao grupo que estava no Fórum crescermos nossa sessão de textos acadêmicos para gerar um banco de teses ainda maior. Após um ano no ar, já temos no banco de dados, acessível pelo nome ou palavra chave na nossa busca, 18 trechos saídos de pesquisas acadêmicas brasileiras em dança.

Não é fácil ter tempo e paciência para se organizar politicamente quando faltam à cultura brasileira tantas etapas básicas de infra-estrutura, financiamento e incentivo à pesquisa. Mas trabalhar em rede, para quem quer continuar atuante no mundo a partir desde século, não é mais uma escolha. E rede não é como uma árvore, com um tronco e vários galhos. Rede é como grama, onde todos partilham a raíz e a qualquer momento alguém pode deixar de existir ou nascer uma nova muda, sem que isso afete o resto da comunidade. Nenhuma muda da grama é mais importante ou fornece mais do que recebe. Mas todas só sobrevivem conectadas, porque a seiva – a informação – que as mantêm viva passa igualmente por todas. A escolha é dos profissionais de dança, se querem ser galhos alimentados por um tronco governamental que pode ser cortado a cada novo governo, ou trabalhar como grama e exigir solo e fontes de água perenes, sob forma de políticas orçamentárias e de legislação definitiva. É um trabalho duro e lento, mas emergencial.

* Nayse López é jornalista e editora do idanca.net.