O nome da coisa

Em The Journey, coreografia de Fin Walker, CandoCo mostra precisão, velocidade e acuidade de escuta e resposta numa composição de movimentos que se sequenciam passando através dos corpos dos bailarinos, fazendo que o todo pareça um corpo constituído de sete membros que respondem entre si com suas dinâmicas. Os sete bailarinos produzem um efeito instigante, com momentos de repouso e outros que fazem suspender a respiração, transportando-nos para dentro do ritmo oscilante da coreografia.

CandoCo nomeia-se como um grupo de dança integrada e, sendo precursor neste campo, ele exerce uma importante função histórica. Ele conta “e então bailarinos com e sem deficiência começaram a trabalhar juntos e a serem vistos no mundo”. Dessa forma, assim como outros criadores como Alitto Alessi, Steve Paxton e Anne Kilcoyne, eles influenciaram esta idéia que talvez antes parecesse um pouco absurda. No caso do CandoCo a idéia se chamou “Dança Integrada”.

Adam Benjamin, fundador junto com Celeste Dandeker do grupo Candoco, usa o termo “inclusivo” quando se refere a grupos que faziam parte de estruturas segregadas e que moveram para uma estrutura aberta onde há a participação de bailarinos com e sem deficiências. Nesse sentido, a palavra “incluir” diz respeito a algo que estava fora e necessita ser reajustado, passar de excluído para ser incluído. Ele retirou do termo “integração” um sentido mais amplo, que também se refere ao processo de fazer dança ou coreografia. Integração quer dizer uma composição combinando diversas partes ou elementos dentro de um todo complexo, integral. A integração não está naturalmente ou linguisticamente relacionada à deficiência, nela implica-se que cada indivíduo faz uma contribuição única e essencial e não que um ou outro é ou não especial. Por isso, o conceito traz igualdade entre membros de uma sociedade comum. Nisto também implica-se questionamentos e fricções para resolver como diferentes partes podem caber juntas num inteiro, como podem ser conectadas. Neste sentido, uma coreografia com uma pessoa deficiente não é necessariamente integrada se ela falhar na interconexão de seus elementos, idéias e concepção.

Benjamim não entende integração como uma forma de dança, organização ou estilo. Ele coloca que ela poderá se transformar num estilo se não tomarmos o devido cuidado para que isso não aconteça. Sua intenção não é garantir que grupos ¨integrados¨ ou ¨inclusivos¨ continuem como pequenas ilhas. Ao contrário, ele encoraja aqueles que reconhecem esses rótulos como nada mais que signos temporários que poderão ser descartados logo que conheçamos uns aos outros e o território um pouco melhor. (Adam Benjamin, 2002) [1]

O nome nos importa desde que ele não venha a nos colocar em guetos, rotular e limitar e sim simplesmente servir como uma certa identificação, enquanto precisamos dela. Sobre categorização, tenho visto que alguns festivais de dança no Brasil, como por exemplo em Joinville, estão abrindo espaço para competição na categoria dança inclusiva. Festivais de competição de dança desse tipo já são questionáveis em vários aspectos, mas já que eles não parecem ser facilmente passíveis de transformação e já que continuarão a existir, eles ainda servem para dar oportunidade a estudantes para dançar e fazer cursos, e agora isso também se estende a estudantes portadores de deficiência. Tudo bem, mas seguindo a lógica dos festivais, então teremos que reinvindicar a abertura de categorias como “dança inclusiva – ballet”, “dança inclusiva – jazz”, “dança inclusiva – contemporânea” e assim por diante, o que é inviável e ridículo! O que mais vale questionar é, então, porque bailarinos com deficiência, em seus grupos, não podem participar normalmente nas categorias que existem? Será que a inclusão não está tropeçando na sua própria perna?

“A dança, ocasionalmente, rasga barreiras entre público e performers sem utilizar qualquer rótulo, ela cruza linhas e tabus, revelando corpos em todos os seus muitos estados.” Adam Benjamin

Treinamento para bailarinos com deficiência e algumas de suas questões

Muitos bailarinos com deficiência encontram dificuldade de acesso ao treinamento ou têm pouco tempo de experiência em dança, por isso ainda é comum haver um gap de qualificação e de oportunidade de profissionalização entre bailarinos com e sem deficiência. O fato de muitos bailarinos com deficiência às vezes apresentarem um pobre treinamento corporal não está vinculado a sua não-capacitação para a dança, mas sim à falta de oportunidade de treinamento. Bailarinos com deficiência precisam de treinamento como qualquer outro bailarino, mas também os professores precisam estar orientados e abertos para receberem estes alunos. Num mundo verdadeiramente acessível, os bailarinos com deficiência poderão optar por fazer aula nos lugares que eles escolherem e não necessariamente e apenas nos nichos de dança integrada ou inclusiva.

Stine Nilsen e Charlotte Darbyshire [2], com base nas suas experiências dentro do CandoCo, colocam que a prática de dança integrada pode diferir de acordo com o contexto. Diferentes grupos, em diferentes espaços, não seguirão, necessariamente, as mesmas regras ou os mesmos métodos. Por exemplo, uma companhia de dança integrada talvez tenha um mesmo número de bailarinos com e sem deficiência, um curso de dança especializado talvez tenha somente estudantes com deficiência (com diferentes tipos de deficiência), uma aula aberta profissional talvez tenha vinte pessoas sem deficiência e uma com deficiência.

O treinamento dos bailarinos com deficiência deve ser baseado no seu desenvolvimento dentro das suas qualificações específicas. Bailarinos mais experientes têm condições de adaptar o material da aula e serem responsáveis por si mesmos. Especialmente porque a maioria dos estudantes são iniciantes, é necessário a atenção dos professores e o entendimento de como tornar sua aula mais acessível.

Existe uma grande variedade de tipos de deficiência que tornam a trajetória de cada bailarino muito individual. Um modelo único não irá caber para todos, o que, aliás, não é apenas uma condição de pessoas com deficiência, mas uma condição geral e óbvia desde que Darwin nos trouxe a sua Teoria Evolutiva. Valorização e entendimento de que diferentes pessoas têm diferentes qualificações também é uma necessidade geral e óbvia desde que Gardner nos trouxe a teoria das Multiplas Inteligências.

Para ser acessível, uma aula de técnica, em qualquer modalidade de dança, deve propiciar adaptação e se utilizar de estratégias para a diferenciação de exercícios técnicos. Adaptação pode ser alcançada trabalhando-se com “core principles”, princípios centrais do movimento, que são os elementos-chaves das idéias que sustentam e identificam cada técnica e movimento. Ao invés de simplesmente replicar o exercício, é necessário clarificar seu objetivo. Por exemplo, o princípio de fazer um tilt talvez possa ser utilizado em diferentes partes do corpo ou na cadeira de rodas; um tendu será explicado através da idéia de estender qualquer um dos membros em uma linha que se distancia do eixo corporal, varrendo a superfície e terminando numa extensão máxima; etc. É claro, a forma com que cada professor, em cada técnica, se comunica é diferente. Talvez em alguns movimentos o objetivo seja diferente para bailarinos com deficiência do que para aqueles sem deficiência. Esta é outra maneira de adaptar. Estratégias de diferenciação são como se pode modificar elementos da aula para facilitar aos alunos o seu acompanhamento, como por exemplo: dar a opção de reduzir o comprimento da seqüência para aqueles que querem, isolar certas partes do exercício (por exemplo apenas aprender os braços ou focar-se no ritmo do exercício), ou trabalhar com musicalidade (numa frase longa, selecionar, por exemplo, 4 momentos, em que todos estarão em uníssono dentro de toda a seqüência que poderá ser variada individualmente em tempo, dinâmicas e adaptações do movimento). (People Moving Guidelines). [3]

Na Inglaterra, cursos como People Moving e Dance Caper-Bility oferecem treinamento prático e teórico para aqueles interessados em tornar o ambiente de suas aulas criativo e acessível. Outros cursos, como o Candoco Foundation Course, são focados especialmente na formação de bailarinos portadores de deficiência. Este é um curso intensivo de um ano que prepara os bailarinos para iniciar e/ou desenvolver suas atividades em dança e encorajá-los a se profissionalizar. O curso abrange Dance Studies (ballet, improvisação, contemporâneo); Performance Studies; Contextual Studies; Movement Analysis e Fitness, Health & Safety. Ele também oportuniza aos alunos fazer residências em algumas escolas londrinas e com outros importantes grupos de dança integrada como Stop Gap e também participar de projetos de dança, como exemplo, Connect Project e South Bank Project.

Adam Benjamin [1] coloca que “talvez a questão mais importante para se ter em mente para novos cursos é que a prática de integração diz respeito a “solução de problemas” (problem-solving), e que ao invés de tentar fazer com que novos estudantes caibam em estruturas pré-existentes, os próprios cursos devem ser direcionados para abordar e lidar com os problemas conforme eles aparecem e, portanto, eles devem ser equipados e estruturados de forma flexível. A prática de dança integrada deve começar no momento em que os alunos entram no prédio, com acessibilidade da estrutura física e não apenas dentro da sala de aula. Em várias situações, bailarinos portadores de deficiência levantam questões simplesmente por sua presença. “Solução de problemas” não é apenas adaptar o movimento, mas também diz respeito à forma como lidamos com questões que são desconfortantes. Mais uma vez trazendo as palavras de Benjamin, “Dar devido valor aos problemas significa que a capacidade de sentir que “algo está errado” ou “fora de lugar” se torna um dos nossos patrimônios mais importantes. Esses sentimentos sutis de desconforto nos guiam para as áreas de injustiça ou de ruptura que antes poderiam ter passado por “normalidade”.

This train is ready to depart, please mind the doors, mind the doors please!

Paddy Masefield [4], em seu discurso The Three Doors, nos lembra que, como artistas, todos passamos por portas especiais como portas de studios, teatros, camarins, portas-da-frente e portas de escritórios. Ele tornou-se atento a três portas históricas que parecem dominar todas as outras. Na primeira porta esta escrito “somente homens”, na segunda porta “somente brancos” e a terceira porta não tem placa. A terceira porta tem uma grande escada na frente, corrimão muito alto, a porta e impossível de abrir porque é muito pesada, os elevadores de dentro são muito estreitos, tem mais escadas etc.

Acessibilidade, além de rampas e sinais em Braille, inclui oportunidades, ajudas técnicas, informação e comunicação e a quebra das barreiras de preconceitos. Alguns dos nossos preconceitos existem simplesmente pela nossa falta de familiaridade e convívio com pessoas portadoras de deficiência e não são exatamente uma atitude intensional e deliberada, mas sim a continuidade de atitudes de pensamento que estão inertes na sociedade por muito tempo. É durante o convívio social e através de informação, educação e entendimento do outro que os tabus e preconceitos podem ser dissolvidos.

No Brasil algumas ações já estão sendo tomadas para promover a acessibilidade. Recentemente realizou-se um evento importante, que estabelece um marco para sua implementação: a 1ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. A Portaria 119/2005, que aprova o Regimento Interno da conferência, foi assinada pelo Secretário Especial dos Direitos Humanos Nilmário Miranda em 14 de julho de 2005. A conferência se realizou entre 12 e 15 de maio deste ano e teve como tema central “Acessibilidade – você também tem compromisso”. Dentro deste tema foram discutidos: condições gerais da implementação da acessibilidade; implementação da acessibilidade arquitetônica, urbanística e de transportes; acessibilidade à informação, à comunicação e às ajudas técnicas. A iniciativa realizou-se por meio do CONADE – Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência.

Outro evento que está acontecendo é o Projeto Além dos Limites, do Programa Arte Sem Barreiras, realizado pela FUNARTE – Fundação Nacional de Artes. O objetivo da FUNARTE é realizar, em 2006, um programa de fomento que contribua, parcial ou integralmente, para o desenvolvimento das atividades artísticas voltadas para inclusão de artistas com deficiência, através da montagem de espetáculo ou realização de exposição de artes visuais. As inscrições acontecem entre o período de 23/5/2006 a 06/7/2006 e o programa contemplará 15 projetos nas modalidades Teatro, Dança e Música que receberão R$17.000,00 (dezessete mil reais) cada um para a montagem de espetáculo. Na modalidade Artes Visuais serão contemplados 5 projetos que receberão, cada um, o valor de R$ 8.500,00 (oito mil e quinhentos reais) para produção de peças para exposição de artes visuais. Os proponentes terão de se comprometer a realizar apresentação artística ou participar de exposição de artes visuais em uma das Mostras Regionais de Arte Sem Barreiras e no Festival Brasileiro de Arte Sem Barreiras, que acontecerão em Brasília e no Rio de Janeiro.

A divulgação dos selecionados se dará 15 dias após o final do prazo de inscrição e as mostras estão previstas para acontecer nos meses de setembro e outubro deste ano, deixando o prazo de um pouco mais de um mês para a montagem dos espetáculos ou a produção das peças para exposição de artes visuais. Ao menos no que se refere à montagem de um espetáculo de dança, este curto prazo de execução poderá restringir bastante a participação e/ou a qualidade do desenvolvimento dos projetos. Propor a construção de um espetáculo em um mês significa dar uma oportunidade mas não dar condições integrais para sua realização e desta forma, ao meu ver, está falhando em dar acessibilidade. Assim como já discuti ao escrever sobre treinamento corporal acima, é necessário propiciar condições adequadas para efetivamente incentivar a formação dos bailarinos. Projetos em caráter comunitário são compatíveis com um prazo de execução mais curto porque podem focar-se no aspecto inclusivo e não precisam, necessariamente, produzir uma obra final.

Todavia, como o foco da FUNARTE é “incentivar atividades artísticas”, propondo a realização de “espetáculo”, surgem algumas questões sobre o quanto o Projeto Além dos limites está de acordo com seu objetivo. Ele inclui ou não o desenvolvimento de projetos artísticos comunitários? Serão priorizados projetos em fase de finalização ou já finalizados? Com projetos artísticos comunitários me refiro, por exemplo, a worshops para bailarinos e iniciantes, portadores e não portadores de deficiência, que podem resultar em uma apresentação de dança, que podem utilizar espaços alternativos e podem ter um curto ou longo prazo de execução. Com a montagem de um espetáculo, entendo a construção de uma obra artística que precisará um tempo de pesquisa e desenvolvimento para que se realize.
O Projeto Além dos Limites tem algumas questões a serem discutidas e resolvidas, mas é um importante evento a ser realizado e que merece continuar aprimorando sua proposta. Precisamos no Brasil de projetos que contribuam para mobilizar o país em direção ao desenvolvimento de pessoas portadoras de deficiência nas artes, que estejam bem organizados, estruturados com entendimento artístico apropriado, que priorizem integração/inclusão e que propiciem condições acessíveis. Portas abertas para a diversidade.

* Obrigado ao CandoCo: às pessoas do grupo, do Foundation Course e da administração que gentilmente têm me apoiado nos meus estudos de Dança Integrada.

Referências utilizadas:

[1] Benjamin, Adam, Making an entrance: theory and practice for disabled and non disabled dancers, Routledge – Taylor & Francis Group, London and New York, 2002.

[2] Delving Deeper Integrated Class Principles – workshop with Stine Nilsen and Charlotte Darbyshire, London, 2005.

[3] People Moving Guidelines: towards an integrated learning culture for dance, Jo Parkes and Clare Connor, Arts Council England and East London Dance.

[4] Masefield, Paddy, Strengh: Broadsides From Disability on The Arts, Trentham Books, Trent and Sterling, 2006.

[5] CONADE – Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, www.mj.gov.br/sedh/ct/CONADE/index.asp

[6] Programa Arte sem Barreiras – www.funarte.gov.br/vsa/index.htm