O novo e a tradição | New and Tradition

Com dez meses de existência completos em dezembro de 2008, a São Paulo Companhia de Dança traz números que mostram uma presença que já se espalha pelo Brasil, com um abrangente leque de atividades. Entre estes números encontramos: mais de 19 mil espectadores, dos quais 8 mil presentes em programas educativos; e 40 apresentações, distribuídas em 4 capitais e 3 cidades do interior paulista (leia aqui sobre a polêmica que circulou na época da criação da companhia).

Uma companhia como esta, que tem como coluna dorsal a apresentação de um repertório clássico, desperta paixões extremadas. De um lado, aqueles que anseiam o repertório clássico como a manifestação suprema da beleza em dança. Do outro, aqueles que poderiam invocar o Guilherme de Almeida tradutor de André Rivoire, para dizer que a Bela Adormecida está morta por ter dormido demais.

Um prévio fator polêmico foi a tarja ‘dança de excelência’ colada à companhia, quando do anúncio da sua existência, por parte de alguns dos responsáveis pela sua criação. No âmbito acadêmico a expressão vizinha ‘ilha de excelência’, com o aporte de recursos para a existência de espaço, equipamentos e equipes de dedicação exclusiva, visando à qualidade de uma produção, tem um significado circunscrito e aceito de antemão pela comunidade interessada.

Porém no mundo artístico da dança a avaliação do que é produzido tem uma multiplicidade de critérios, que nem sempre coincidem com a unanimidade. Muitas vezes uma produção importante vem de indivíduos ou grupos dependendo de um fluxo financeiro irregular, e inclusive com dificuldade de locais e situações adequadas para a apresentação dos seus trabalhos. E a despeito de tudo o resultado pode ser a realidade de uma obra de arte destinada a durar. O significado artístico pode ser muitas vezes obscurecido quando nos comportamos apenas como um povo endomingado e uma periferia sem centro, na definição de Sérgio Buarque de Holanda. Há o risco de se juntar o aspecto ‘excelência’ com ‘balé clássico’, num eurocentrismo saudosamente colonial.

Acontece que a Bela Adormecida não está morta, porém ressurge do sono para conviver permanentemente com leituras e re-leituras. Inclusive as mais ácidas e onipresentes, que podem ser vista dispersas em fragmentos pelo YouTube, surgida exatamente da tribo daqueles que podem manejar a tradição clássica com uma irônica precisão cirúrgica: Mats Ek, fazendo uma incisão profunda neste máximo do estilo imperial russo, que é a Bela Adormecida de Petipa;  e William Forsythe, com Impressing the Czar, numa recusa e recriação apaixonada da tradição clássica.

Dito isto, temos a São Paulo Companhia de Dança, com a direção de Iracity Cardoso e Inês Bogéa, que se afirma disposta a trazer a tradição do balé clássico e os seus desdobramentos contemporâneos. Uma companhia de repertório, num sentido lato, e também inserindo criações originais.

No curto período de menos de um semestre a Companhia trouxe quatro peças diferentes, desafiando os seus jovens bailarinos a um ritual de iniciação de dupla dificuldade. Primeiro, devido à escassez de escolas capazes de oferecer uma transição pré-profissional à maioria deles. Segundo, devido a uma diversidade de repertório, que mesmo dentro de uma determinada tradição clássica, traz problemas estilísticos nem sempre fáceis de serem manejados. No auge do Royal Ballet ou se era bailarino de Frederick Ashton ou bailarino de Kenneth McMillan. Mas desafios não significam impossibilidades.

A coreografia de estréia – Polígono – de Alessio Silvestrin, foi apresentada com clareza e precisão, em agosto de 2008. Embora, exatamente por ser uma das variantes re-leituras atuais do balé clássico, a fluência algumas vezes estancasse, pelo salto de transição que representou para a maioria dos bailarinos, treinada apenas em pequenos trechos de um repertório tradicional. Do lado do coreógrafo, a escolha de uma leitura contemporânea da Oferenda Musical de Bach, pelo conjunto Het Collectief, que incorpora Webern e Jimi Hendrix na sua textura interpretativa, sugeriu uma abrangência de cores e perspectivas não totalmente presentes no trabalho apresentado. Contudo, deve ser mencionando ainda que o diretor do Het Collectief, Thomas Dieltjens, viu na criação de Silvestrin, a qual conheceu através de DVD, uma magnífica tradução da polifonia de Bach.

Em novembro de 2008 a Companhia apresentou um novo programa, com três novas coreografias: Les Noces, Entreato e Serenade. Les Noces, de Bronislava Nijinska, datada de 1923, tem música de Igor Stravinsky, o qual desejava que o balé fosse apresentado como um divertissement, tipo mascarada. A despeito do desejo do compositor, Nijinska fez uma criação de linhas austeras, econômica na utilização dos passos de dança, nos levando a uma cerimônia de casamento pertencente a um mundo ritual folclórico e universalizado, porém simultaneamente modernista.

Em Les Noces o ritmo e a métrica das frases são tão estruturais na dança quanto na música, oferecendo considerável dificuldade aos bailarinos de qualquer lugar. O profundo conhecimento da obra e capacidade didática por parte da remontadora Maria Palmeirim, ao lado da eficiente assistência coreográfica de Suzana Mafra, nos permitiu ter, com a São Paulo Companhia de Dança, uma bela e articulada percepção do mundo de Bronislava Nijinska e do impacto dos chamados Balé Russos. Vimos corpos entrelaçados em frisos rituais como nas procissões do Círio de Nazaré e romarias do Padre Cícero. Figuras angulosamente recortadas como nas xilogravuras do nordestino Gilvan Samico. E ainda saltos secos e imprevistos, de braços e troncos recurvados para o chão, como nas coreografias do pós-modernista Merce Cunningham.

Alguns problemas ainda restam para serem trabalhados em Les Noces. Como, por exemplo, as cenas dramáticas, quase estáticas e de mímica escassa, representando a separação dos noivos do mundo dos pais e da primeira juventude. A compreensão da gestualidade dramática nas diversas variantes do balé clássico é, de modo permanente, um desafio tão grande quanto a virtuosidade dos passos.

Entre duas peças canônicas do repertório, a coreografia Entreato do brasileiro Paulo Caldas, foi mais uma bem vinda e bem sucedida criação contemporânea para a Companhia. Um momento revelador da importância desta presença contemporânea, foi a performance do bailarino Yoshi Suzuki, com um fluente uso do tronco aliado a uma precisa utilização das mãos na determinação de volumes de energia no espaço, mostrando uma versatilidade que certamente se tornará uma característica desta companhia.

A última peça do segundo programa do ano foi Serenade, de George Balanchine, com a música de Piotr I. Tchaikosky Serenata em dó maior para orquestra de cordas, em quatro partes, com a posição do terceiro e quarto movimentos da partitura original trocados, de modo a terminar sugestivamente com um larghetoSerenade, que teve uma estreia com estudantes de balé em 1934, e com profissionais em 1935, vem sendo remontada pelo The Balanchine Trust, para as diversas companhias que atendem o seu padrão de exigências. A peça de Balanchine ainda apresenta dificuldades para a Companhia, especialmente quanto a fluência dos braços e sutilezas de controle da extensão do tronco e de posicionamentos da cabeça. Contudo, quem acompanhou as apresentações do início e do final do mês de novembro, em São Paulo, pode verificar um firme progresso de todo o elenco, facilmente detectável na precisão crescente do corpo de baile. elegíaco.

Um dos momentos especiais para acompanhar a qualidade deste progresso foi o pequeno agrupamento de cinco bailarinas no início do terceiro movimento da coreografia. No início uma gentil troca de olhares e entrelaçar de braços, uma das várias reminiscências das construções da escola imperial de Petipa, que logo explode em uma dança rápida, com a vinda de um alegre tema melódico russo. Uma combinação acelerada e precisa de saltos com deslocamentos e mudanças de direção, levando a um nível máximo de execução aquilo que alunas de balé fazem diariamente: temps levé, piqué tour, assemblé en tournant, passagem de braços por quinta posição…

Ainda há todo um caminho pela frente até a maturidade e identidade artística plena da São Paulo Companhia de Dança. Porém, nos últimos acordes da elegia final de Serenade, a luminosa e esguia figura de uma ultima bailarina, Luiza Lopes, que se ergue nas pontas e de torso arqueado e braços abertos se integra ao cortejo, é um símbolo de todo um trabalho bem sucedido.

A direção desta Companhia, que vem desenvolvendo um programa educativo de amplo espectro, também convida especialistas a acompanharem o dia a dia da companhia. Alguns grupos de estudiosos poderiam, de modo especial, se envolverem em um intercâmbio produtivo. Por exemplo, aqueles interessados na relação entre a história da dança e como os corpos atuais se adaptam ou não a demandas estéticas específicas: nem tudo é questão só de técnica e de capacidade interpretativa.

Carlo Blasis, foi um maître de balé do século XIX, autor do The Code of Terpsichore, que estudou os anatomistas do seu tempo, cruzando as fronteiras de ciência e arte. Então, como outro exemplo de colaboração, se estamos diante de uma multiplicidade de abordagens técnicas e estéticas em dança, temos um território ideal para, na trilha do mestre Blasis, ocorrer o encontro entre os estudiosos da área de saúde e biomecânica do movimento humano e os profissionais envolvidos no dia-a-dia desta Companhia.


Bergson Queiroz é pesquisador de dança e integrante do Laboratório de Biomecânica do Movimento e Postura Humana (USP).

Leia também: São Paulo Cia. de Dança ou a aposta no desuso

Companhias estáveis em lados opostos

Having ten months of existence in December 2008, São Paulo Companhia de Dançapresents numbers that show its presence is already spreading throughout Brazil, with a comprehensive range of activities. Among these numbers, we find: over 19 thousand spectators, out of which 8 thousand participated in educational programs and 40 performances, distributed in 4 capitals and 3 cities in the state of São Paulo. (Read here about the controversy surrounding the creation of the company)

A Company such as this one, that has the presentation of a classic repertoire as backbone, rouses extreme passions. On one side, there are those longing for classic repertoire as supreme manifestation of beauty in dance. On the other, those who could evoke translator of André Rivoire, Guilherme de Almeida, to say that Sleeping Beauty is dead for having slept too much.

A previous controversial factor was the label “dance of excellence” attached to the Company by some of the people responsible for its creation when its existence was announced. In the academic circuit the neighboring expression “island of excellence” has a circumscribed meaning previously accepted by the interested community, with apport of resources for the space existence, equipment and staff exclusively dedicated, aiming at the quality of production.

However, in the artistic world of dance the evaluation of what is produced has a multitude of criteria that not always coincide with consensus. Many times an important production comes from individuals or groups that depend on irregular financial influx and that have difficulty in having adequate places and situations for the presentation of their work. And in spite of everything the result can be the reality of a work of art destined to last.

The artistic meaning can many times be obscured when we act as a periphery without center, as defined by Sérgio Buarque de Hollanda. There is the risk of putting the “excellence” aspect side by side with “classic ballet”, in a nostalgically colonial Eurocentrism.

The case is Sleeping Beauty is not dead, but awakes from her sleep to permanently live with readings and re-readings. Including the most acid and omnipresent, that can be seen scattered in fragments on Youtube, created exactly by the tribe of those who can handle classic tradition with ironic surgical precision: Mats Ek, making a deep incision on that paramount of Russian imperial style, Petipa’s Sleeping Beauty and William Forsythe with Impressing the Czar, a denial and passionate recreation of classic tradition.

Having said that, we have São Paulo Companhia de Dança, directed by Iracity Cardoso and Inês Bogéa, which states to be willing to bring the tradition of classic ballet and its contemporary unfoldings. A repertoire company in a broad sense and also inserting original creations.

In the short period of less than a semester, the Company brought four different pieces, defying its young dancers to a double difficult initiation ritual. First, due to the scarcity of schools capable of offering a pre-professional transition to most of them. Second, due to a diversity of repertoire that, even within a determined classic tradition brings stylistic problems that are not always easy to handle. At Royal Ballet’s peak, one was either a Frederick Ashton dancer or a Kenneth McMillan dance. But challenges don´t mean impossibility.

The debut choreography – Polígono – by Alession Silvestrin, was presented with clarity and precision in August 2008. Although, exactly for being one of the variable current re-readings of the classic ballet, fluency sometimes halted because of the transition jump it represented to most dancers, trained only in small sections of a traditional repertoire. On the choreographer’s side, the choice of a contemporary reading of Bach’s Oferenda Musical by group Het Collectief, which incorporated Webern and Jimi Hendrix in its interpretative texture, suggested a range of colors and perspective that were not entirely present in the work.

Nevertheless, it should be mentioned that Het Collectief’s director, Thomas Dieltjens, saw in the creation of Silvestrin, which he got to know through a DVD, a magnificent translation of Bach’s polyphony.

In November 2008, the Company presented a new program, with three new choreographies Les Noces, Entreato and Serenade. Les Noces, by Bronislava Nijinska, dated back from 1923 and has music by Stravinsky, who wished the ballet were presented as divertissement, like a masquerade. In spite of the composer’s wishes, Nijinska created a piece with stern lines, economical in the use of dance steps, taking us to a wedding ceremony belonging to a folkloric ritual, but simultaneously modernist.

In Les Noces, the rythmm and metric of phrases are as structural in dance as they are in music, offering considerable difficulty to dancer from anywhere. The deep knowledge of the piece and the didactic ability of restaging director Maria Palmeirim, besides the efficient choreographic assistance from Suzana Mafra allowed us to have with São Paulo Companhia de Dança a beautiful and articulate perception of Bronislava Nijinska’s world and the impact of the so-called Russian Ballets. We saw bodies intertwined with ritual tapes like the ones in processions of Círio de Nazaré and pilgrimages of Padre Cícero. Sharp-cornered figures cut out like the xylographic prints of Gilvam Samico, from the northeast region of Brazil. And also the dry and unforeseen leaps, with arms and torsos curved towards the ground, like the post-modern choreographies of Merce Cunningham.

There are some problems yet to be solved in Les Noces. Like, for example, the dramatic scenes, almost static and with scarce mimics, representing the separation of the engaged couple from their parent’s world and their first youth. The understanding of the dramatic gestures in the many varieties of classic ballet is permanently as great a challenge as the virtuosity of steps.

Among two iconic repertoire pieces, the choreography Entreato , by Brazilian Paulo Caldas, was a more than welcome and successful contemporary creation for the Company. A revealing moment of the importance of this contemporary presence was the performance of dancer Yoshi Suzuki , with a fluent use of the torso combined with a precise use of the hands for determining volumes of energy in space, show a versatility that will certainly become a characteristic of this company.

The last play of the second program of the year was George Balanchine’s Serenade,, with Piotr I. Tchaikosky’s Serenade for Strings in C major, in four parts, the position of the third and the fourth movements in the original score were switched, as to suggestively ending with an elegiac larghetto. Serenade, which premiered with ballet students in 1934 and with professional dancers in 1935, has been restaged by The Balanchine Trust, for the many companies that are up to their standards.

Balanchine’s piece still presents difficulties for the Company, specially when it comes to the fluency of arms and control subtleties of the extension of the torso and the placement of the head. Nevertheless, those who watched the performances in the beginning and at the end of November, in São Paulo, could observe a steady progress of the whole cast, easily detectable in the increasing precision of the corps de ballet.

One of the especial moments to follow the quality of such progress was the small group of five dancers in the beginning of the third movement of the choreography. In the beginning, eyes gently met and arms intertwined, one of many reminiscences of Petipa’s imperial school, which soon explodes into a quick dance, with a joyous Russian melodic theme coming in. A fast and precise combination of leaps with displacements and direction changes, taking to the maximum performance level what the ballet students do every day: temps levé, piqué tour, assemblé en tournant, arms going over the fifth position…

There is a long way ahead until the maturity and the absolute artistic identity of São Paulo Campanhia de Dança are reached. However, in the last accords of Serenade final elegy, the luminous and slender figure of one last dancer, Luiza Lopes, who lifts on pointe with arched torso and open arms taking part in court, is a symbol of an entire successful work.

The direction of this company has been developing a broad ranged educational program and also invites specialists to follow the daily activities of company. Some groups of researchers could, in a especial way, get involved in a productive exchange. For example, those interested in the relationship between dance history and how the bodies of today adapt or not to the specific aesthetic demands: not everything is only a matter of technique and interpretative ability.

Carlo Blasis was a ballet maitre from the 19th century, author of The Code of Terpsichore, who studied the anatomists of his time crossing the boundaries between science and art. Thus, as another example of collaboration, if we have a multitude of technical and aesthetic approaches in dance, we have the ideal ground for the meeting of researchers from the fields of health and biomechanic of human movements and professionals involved in the daily activities of this Company, following the footsteps of master Blasis.

Bergson Queiroz is a dance researcher. Participant of Laboratório de Biomecânica do Movimento e Postura Humana – USP.