O perigo dos muros e o sabor do encontro

Fazer um apanhado de um evento é uma tarefa delicada e desafiadora. Em meio a tantas atividades e alternativas de miradas, tenta-se fazer um balanço, tenta-se dar uma idéia de como transcorreu, o que significou. Parto nesta tarefa alertando que não me propus nem a fazer um relatório minucioso de atividades e sua avaliação, nem uma descrição e apreciação de cada trabalho e debate que lá aconteceram (até mesmo porque precisei retornar um dia antes do encerramento da programação). Portanto este texto não pretende dar conta de tudo que foi e representou o Festival, mas sublinhar o que talvez nele tenha sido uma de suas mais importantes facetas.

Começo, então, enfatizando que um festival sempre se faz com recortes. E recortes implicam que algumas coisas fiquem dentro e muitas coisas fiquem de fora. Por isto, a extrema dificuldade de compor uma programação. Neste sentido, o Brasil Move Berlim vem somando acertos, ao chegar na sua terceira edição, que foi realizada de 12 a 22 de abril, na capital germânica, com painéis, debates, espetáculos e performances de criadores brasileiros.

Estes acertos parecem vir de duas condições. A primeira, da condição de continuidade do evento, que ao longo dos anos permite a cada nova edição que esse território se remodele, se complemente e se amplie. A outra condição diz respeito às escolhas da programação, que vêm permitindo problematizar a idéia do que pode se pensar em termos de dança contemporânea brasileira, ao invés de assumir que se conhece, com certeza, a sua cara ou de assumir que ela tem apenas uma face.

Na programação (que detalhadamente pode ser encontrada no site www.moveberlim.de e me salvará de eventuais e não-propositais omissões), houve espaço para o conceitual e o musicalmente dançante, para a provocação e para o deleite, para o questionamento e para o prazer, sejam estes elementos e efeitos concentrados num mesmo trabalho ou não. Desta maneira, a programação do evento neste ano expôs a multiplicidade de tendências, que pode gerar um estranhamento, tanto para o estrangeiro como para o próprio camarada brasileiro lá na platéia. E um estranhamento não pela sua exoticidade, mas sim pelas qualidades e competências tão díspares que se revelam num mesmo Brasil. Por uma capacidade de dialogar com o regional e com o urbano, com a aldeia e com a metrópole, com o que está em voga no circuito contemporâneo europeu e com o que  por este circuito é desconhecido e até inimaginado. Na cena e nas discussões, ficaram evidenciados alguns pontos de convergência e divergência desta produção de dança contemporânea, também os modos singulares de trafegar na criação de dança, bem como os diferentes desafios e contextos, num enorme Brasil repleto de contradições. Enfim, o evento conseguiu pontuar a diversidade que, na prática, configura esta produção no país.

E aqui, abro parênteses. Pois quando falo de diversidade estarei tentando dela tirar a carga semântica vulgarizada e demagogicamente apropriada. Não aponto a diversidade como recurso a partir da necessidade de justificar tramas políticas que muitas vezes já não distinguem mais nada no afã de juntar todas as diferenças. A diversidade a que me refiro não procura resgatar o lugar idealizado em que tudo deve e pode conviver em harmonia. Falo de uma diversidade, porque é urgente reconhecer a multiplicidade de competências para pensar, falar e fazer dança.

Pois é esta perspectiva que ficou explícita nesta edição do Brasil Move Berlim. Na possibilidade de colocar juntos trabalhos como o de Henrique Rodovalho, Luiz de Abreu, Fauller, Maria Alice Poppe, Fafá Carvalho, a gurizada da Membros Cia de Dança, Ângelo Madureira e Ana Catarina, o pessoal da Couve-Flor, minicomunidade artística mundial. As obras faziam sentido juntas, independente do seu mérito ou importância individuais. Os sentidos possíveis de tais encontros estavam na articulação de suas qualidades, incongruências e idiossincrasias. Geografias que se reorganizam, trânsitos plurais. Exemplo disto foi a Membros que sai do interior do Rio de Janeiro, que faz da dança de rua sua visceral matéria-prima, que é aplaudida na Espanha e França, que comove e causa um frisson na platéia berlinense, mas que nunca foi assistida em Porto Alegre, Manaus ou Vitória.

Foi desse jeito que se criou a possibilidade de um público atento ouvir a fala de um Eusébio Lobo, mestre de capoeira e doutor em dança, que fez uma sinuosa, apaixonada e inteligente conexão da capoeira com o balé. A possibilidade de me colocar ao lado, numa mesa de discussão, pela primeira vez com a professora Waldete Brito, prestes a implantar um curso de Graduação em Dança em  Belém do Pará e mais uma vez revigorar-me com a persistência e delicadeza do trabalho de André Bardawil, no Alpendre, de Fortaleza. A possibilidade de colocar Paulo Azevedo e Gilsamara Moura traçando experiências de dança onde as ações de cidadania passam pelo resultado de trabalhos vigorosos e inteligentes, nos quais os participantes assumem o protagonismo da cena. A possibilidade das performáticas provocações do professor Fernando Passos, mostrando como pode ser saudável “vasculhar nossas gavetas” e ampliar os horizontes teóricos para entender a dança no nosso país, que dança Wagner e Bach e Beethoven, mas também Fagner e Abba e Vanusa. A possibilidade de expor a tensão entre artistas e produção acadêmica, num país entre os saberes das festas, dos palcos e das universidades.

Houve espaço também para a possibilidade de verificar as dificuldades de lidar com questões tão nossas como o diálogo com a negritude e talvez o que tenha ficado ainda mais explícito, a dificuldade de estabelecer e entender as formas possíveis do diálogo com as culturas indígenas. Dificuldades que foram enfrentadas entre outras pelas professoras Carmen Luz e Regina Muller. Dificuldades que passam pela revolta, indulgência, preconceito, desconhecimento, reconhecimento.

Por lá, depois de 10 dias, Goiânia, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Macaé, Salvador, Porto Alegre, Araraquara, Belém. Por lá, norte e sul, clássico e popular, regionalidade e nacionalidade, contemporaneidade e tradição, local e global pensamento e movimento. Talvez estas possibilidades venham de uma opção dos diretores Wagner Carvalho e Bjorn Dirk Schlüter por instaurar um “lugar de encontro e não de descoberta”, como colocou o primeiro na abertura da edição do evento deste ano. E encontro exige disposição para o outro. A descoberta geralmente é minha (ainda que possa contar com o outro), o encontro é sempre necessariamente nosso. E isto não poderia estar mais presente e fazer mais sentido do que numa Berlim que teve por décadas um muro como obstáculo para o encontro. O Brasil Move Berlim de certa maneira reafirma a improdutividade e empobrecimento de se reeditar muros (que ainda muitas vezes aflige a nossa dança no Brasil) e assume o prazer e o desafio dos encontros.