O tamanho importa | Size does matter

Criação artística e modo de produção são processos que se enlaçam e confundem. São inseparáveis. Qualquer transformação em um representa transformação no outro. O Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, que ocorreu em outubro em Salvador, com sua proposta de oferecer a alguns criadores condições de infra-estrutura que eventualmente só existiriam em algumas grandes companhias, representa uma interferência nas formas cotidianas de produção do Brasil. O resultado desta interferência é uma espécie de distorção: as criações que surgem no projeto tendem a ter alguns elementos comuns, distintos das estruturas que usualmente poderiam compor a obra individual de cada um dos coreógrafos.

A versão 2003 do Ateliê confirmou que esta distorção situou-se não no elemento fundamental da dança, o corpo do bailarino em sua articulação com o espaço, mas na organização do espaço, naquilo que chamamos de espetáculo. Luz, cenografia, iluminação, tudo parece grandioso nas coreografias apresentadas. Às vezes, demasiadamente grandioso, como ocorreu em O Pasto Iluminado, de Maria Paulo Costa Rego – no espetáculo, a dimensão daqueles elementos sonoros e arquitetônicos parecia diminuir não apenas o tamanho dos bailarinos, mas também sua importância para o conjunto.

O aspecto mais perverso deste impacto é o fato de que eventualmente a contemporaneidade do que cerca a dança é mais presente que a contemporaneidade da própria dança. A impressão que se tem de uma obra como Branca Retina, de Carlos Sampaio, não é a de que se trata de um espetáculo de dança, mas de uma monumental instalação que utiliza bailarinos entre seus elementos. Claro que esta é uma possibilidade de criação a ser levada em conta. Só que, em geral, ninguém fica “assistindo” a uma instalação por quase uma hora. E há uma fratura incômoda, na medida em que ao conceito audiovisual arrojado não parece corresponder a coreografia, com passos e efeitos já conhecidos, quase tradicionais.

Poderíamos dizer que eventos como o Ateliê produzem um efeito semelhante ao que, no cinema, é representado pelos estúdios. Se durante os “anos de ouro” de Hollywood, em meados do século passado, era muito mais perceptível uma autoralidade dos produtores (todos os filmes de um estúdio ou de um produtor se pareciam uns com os outros na forma e transmitiam mensagens semelhantes) e mais sutil a dos diretores, é muito mais evidente um estilo Ateliê de Coreógrafos que a individualidade dos coreógrafos ou bailarinos.

Felizmente, a distorção produzida pela grandiosidade e a força dos elementos do espetáculo pode representar, também, uma redenção estética. De Touros e Homens, de Márcia Duarte, parece demonstrar todo o potencial do aparato de produção do Ateliê. Arquibancadas montadas em pleno palco transformam algumas dezenas de espectadores em figurantes de uma encenação que, inspirada pela dramaticidade inerente às touradas, parece falar de paixão, violência, desejo e morte. Com este artifício cenográfico, Márcia Duarte consegue conciliar, ao mesmo tempo, algumas das vantagens do palco italiano em dimensão de grande teatro com propriedades do palco em arena. Paixão e violência não são elementos novos na criação da coreógrafa. Aqui, contudo, ganham uma dimensão trágica e teatral. E sem deixarem de ser dança, sem apelar para a pantomima, numa curiosa solução para um problema que muitos coreógrafos se propõem, o da narratividade do gesto e do movimento.

Em suas versões 2002 e 2003, o Ateliê estreou dez coreografias. A maioria incorreu, em maior ou menor escala, em algum pecado decorrente da própria natureza de grande espetáculo. Há quem afirme ser este um vício de raiz do projeto. Talvez a explicação correta para o fenômeno seja ligada à carência do artista cênico brasileiro, não por culpa ou incompetência próprias, mas pela quase inexistência de estruturas que lhe permitam familiaridade com grandes palcos, recursos técnicos complexos ou outras possibilidades semelhantes.

Neste sentido, o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros acaba ganhando um novo elemento legitimador. Funciona como espaço de experimentação e aprendizagem destes caminhos. Para cada “instalação com dança” aparentemente equivocada que subir ao palco do Teatro Castro Alves teremos, no futuro, dúzias de balés, óperas ou peças teatrais que evitarão estas falhas. Mais do que isso, estas obras futuras também terão a possibilidade de usar as linguagens que vão sendo codificadas nas montagens do Ateliê, e os novos conceitos propostos por algumas delas.Artistic creation and means of production are processes that cross and confuse each other. They are non-separable. Any transformation in one represents transformation in the other. The Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, that occurred in October in Salvador, with its proposal to offer some creative infrastructure conditions that eventually would only exist in some great companies, represents interference in the daily forms of production of Brazil. The result of this interference is a form of distortion: the creations that appear in the project tend to have some common elements, distinct of the structures that usually could compose the individual work of each choreographer.

This year’s version of the Ateliê confirmed that this distortion was placed not in the basic element of the dance, the body of the dancer in its intersection with the space, but in the organization of the space, in what we call a performance. Light, sets, everything seems huge in the choreographies presented. Sometimes overwhelmingly huge, as in O Pasto Iluminado, by Maria Paula Costa Rego – in the work, the dimension of those sonorous elements and architectural seemed to not only to diminish the size of the dancers, but also its importance for the set.

The most perverse aspect of this impact is the fact that eventually the contemporanity of what surrounds the dance is more present than the one of the dance itself. The impression one can get from Branca Retina, by Carlos Sampaio, is not of a dance piece, but of a monumental installation, that uses dancers as an element. Clearly, that this is a possibility of creation to be considered. The only thing is that nobody is “attending” an installation for almost one hour. There is a bothering fracture when the bold audiovisual concept does not seem to have correspondence in choreography, that shows steps and effects already known, almost traditional.

We could say that events as the Ateliê produces a similar effect to what, in cinema, is represented by the studios. If during the Hollywood Golden Years, last century, It was easier to see the hand of the producers (all the films of a studio or a producer looked alike and transmitted similar messages) and was subtler the personal hand of the director, the same happens now, when is much more evident an Ateliê de Coreógrafos style of choreography then the individuality of the choreographers or dancers.

Happily, the distortion produced by the inflated set production and the force of the surrounding elements can represent, also, an aesthetic redemption. De Touros e Homens, by Márcia Duarte, seems to demonstrate the potential of the apparatus of production of the Ateliê. Crowded stair seats on stage transform groups of ten spectators into extras in a production inspired by the inherent drama of bullfights, and seems to speak of passion, violence, desire and death. With this artifice, Márcia Duarte gets to conciliate some of the advantages of Italian stage with properties of arena for bullfighting. Passion and violence are not new elements in the creation of Duarte. Here, however, they gain a tragic and theatrical dimension. Without leaving out dance, without appealing to pantomime, in a curious solution for a problem that many artists embrace: narrative of gesture and movement.

In its versions 2002 and 2003, the Ateliê premiered ten choreographies. The majority incurred, in greater or minor, in some decurrent sin of the proper nature of great spectacle. Some people say this is a root problem of the project. Perhaps the correct explanation for the phenomenon is in the lack of structure in Brazilian performing arts, not from guilt or incompetence of the scene, but for the inexistence of structures that allow familiarity it with great stages, complex resources and similar technical possibilities.

In this sense, the Ateliê de Coreógrafos Brasileiros eventually gets a legitimacy element. It functions as a space of experimentation and learning of these big stage ways. For each “installation with dance” apparently mistaken that go on stage at Teatro Castro Alves, we will have, in the future, dozens of ballets, operas or theater plays that will prevent these imperfections. More than this, these future works also will have the possibility to use the languages that are being codified in the Ateliê processes, alongside the new concepts considered in some of them.