[Descompêndio] O teatro como não-lugar

A função de um teatro é, por excelência, o contrário dos não-lugares, ideia do filósofo Marc Augé que a sociedade contemporânea tomou como referência. Porque, ao contrário dos aeroportos, dos centros comerciais, ou até mesmo de lugares que são lugares mas que pela sua utilização rápida não conquistam uma dimensão reconhecível e individual, os teatros vivem no difícil equilíbrio entre significados e significantes. Cada acto, gesto ou ritual é investido de uma espécie de resposta à sociedade e à realidade. Logo, e pela possibilidade de criarem lugares dentro de lugares, os teatros não caberiam na ideia de Augé. Mas poderíamos também pensar que, precisamente pelo excesso e defeito próprio que caracteriza essa possibilidade de ampliação da função original, os teatros têm vindo a transformar-se, curiosamente, num não-lugar. Uma ideia que vai muito para lá da imediata associação que pode ser feita com o foyer, não-lugar por excelência porque acumula as expectativas da entrada com as confirmações da saída.

Esta classificação relaciona-se com questões programáticas que podem levar a uma indiferenciação pela errância ou circunscrição dos nomes que por lá passam. O público poderá deixar de se relacionar com aquele espaço por não conseguir desenhar mais linhas do que aquelas que os próprios espaços propiciam. E, por isso, ou recusar o teatro ou entendê-lo como simples espaço de fruição momentânea, sem grande consequência (é aqui, nesta perigosa fronteira, que o canibalismo do entretenimento fátuo surge). Os teatros não podem (ou não devem) ser um espaço de passagem, sob prejuízo de perderem o seu lugar de âncora da sociedade. Não podem (ou não devem) acumular espectáculos para gáudio das várias franjas da sociedade, pelo simples desejo ou agenda de quererem cumprir uma quotização desnecessária. E não podem (ou não devem) correr atrás de modismos, sejam eles mais ou menos integrantes ou actuais, sob pena de perderem a distância e análise que caracterizam o acto de observar e reflectir.

Cabe, então, aos espaços procurar uma identidade que os devolva à cidade, que a integre e expanda, em vez de ser só ponto de chegada. O teatro, enquanto palco do mundo, como defendia Shakespeare, deve ser visto como provocador de encontros inesperados e não somente uma porta aberta legitimadora e solidária. E mesmo que essa legitimação e solidariedade aconteça, não deve ter em vista a promoção dos próprios, mas somente a condução, precisamente para o exterior do edifício (a sociedade), das linhas que propõe. Assim, o teatro enquanto espaço agremiador deve saber devolver à cidade a discussão, em vez de a fechar dentro de portas. Deve convocar os agentes mas, nesse convite, alertar que se trata somente de um ponto de partida. Que pode ser recusado. Ou melhor, que deve ser recusado, como todos os bons pontos de partida. Recusado por algo de mais complexo e unificado sem se homogeneizar. O teatro não pode ser generoso, deve ser exigente. Não pode fazer cedências, tem que negociar. Não se pode achar auto-suficiente, deve alimentar-se (respigar, se necessário) do que o rodeia.

Nesse sentido, acredito que a melhor forma de evitar que o teatro se torne num não-lugar não passa apenas pela circulação concertada de nomes, mas na extensão, para outros espaços, sugeridos pelo teatro-edifício. Essa circulação não é só de nomes, mas também, e sobretudo, de ideias. O teatro deve saber ocupar a cidade para lá das suas portas e chamar a atenção do público para essas realidades. Deve emprestar o seu crédito ao que fica nas margens, porque precisa dessas margens para se regenerar. A melhor forma de evitar que o teatro se torne num não-lugar passa pela sua deslocação para as margens. As margens são, neste momento, os outros lugares onde o teatro deve estar. É nessas margens que o teatro se renegera.

As cidades, sejam ou não portos de abrigo, sempre viveram destes paradoxos, e sempre resistiram. Cidades como Sbrenica, Luanda, Berlim, Teerão, Istambul, Beirute, Lima, Rio de Janeiro ou Nova Iorque souberam sempre encontrar na criação artística – quando não em outras áreas – um meio de sobrevivência. Seja ao belicismo, seja à ausência de apoios para a cultura. Esta montanha russa faz parte do seu sistema regenerativo, e nada se perde na total ausência, ou absoluta decadência, de um tecido cultural físico (em oposição a um outro, humano, que existirá sempre e invariavelmente). Pelo contrário. È na suposta agrura cultural (ideia tão médio-burguesa que não está, na verdade, longe de uma noção de arte descartável) que se descobre o uso justo das coisas. Como nos ensina Homi K. Bhabha, “Quando o mundo se torna ‘sombrio’ por causa de opiniões contraditórias e ambivalentes, a estética – a ficção, a arte, a poesia, a teoria, a metáfora – vem iluminar a nossa difícil situação cultural e política. No centro da experiência estética reside a voz ‘interlocutória’ da expressão cultural em que se baseia a criatividade humana e a democracia política” (Ética e Estética do Globalismo: Uma perspectiva pós-colonial, Fundação Calouste Gulbenkian/Tinta da China, 2007)

Tiago Bartolomeu Costa é crítico de artes peformáticas residente em Lisboa, Portugal, onde edita a revista OBSCENA. É colunista do idanca.net e colabora com as publicações Mouvement (França), Ballettanz (Alemanha).