Olhares sobre o Corpo: acolher questões, plantar sensibilidades

Há 10 anos, o Olhares sobre o Corpo (OsC) é realizado anualmente, na segunda cidade mais populosa de Minas Gerais, Uberlândia. Neste ano, ocorreu entre 9 e 15 de dezembro e reuniu artistas, pesquisadores, professores, estudantes entorno de apresentações, oficinas, exposições e conversas.

Chegando ao “Palco de Artes”, sala de espetáculos do Estúdio Uai Q Dança, que sedia o OsC, o clima não era de “evento”, comum aos festivais, era familiar, mas com rigor, parecido ao de famílias mineiras, que ensinam e aprendem, no cotidiano, o ofício de artífice.

“Uai Q Dança” é o nome do estúdio que sedia o encontro, dirigido pela professora, artista, terapeuta corporal e diretora artística, Fernanda Bevilaqua, e é também nome da companhia, criada por ela, em 1996. No entanto, para além da escola e da companhia, Uai Q Dança dá nome a um movimento que vem fomentando o fazer e o pensar dança naquela cidade.

 

Uberlândia (MG), 2004.

Nos corredores do estúdio Uai Q Dança, os mineiros Fernanda e Wagner Schwartz conversam sobre a vontade de criar ambiente favorável ao estudo e à discussão sobre contemporaneidades na dança, teatro, performance, artes visuais. Para além de criar um movimento na cidade, se desafiam a realizar encontros anuais, com ou sem patrocínio público ou privado. “Se não temos certeza sobre se teremos recursos todos os anos, como manter o encontro vivo?”, se perguntam.

Como se nascesse da capacidade de formular perguntas, Olhares sobre o Corpo foi se organizando pela lei do movimento, em vez de a partir de formas preestabelecidas. Com proporções modestas, dando ênfase à qualidade do encontro, esse jeito de se organizar foi encontrando dificuldades ao longo do caminho, o que não impediu sua realização, porque ali ninguém recusa trabalho e o agir está vinculado ao questionar.

A primeira edição do encontro foi realizada com apoio de vizinhos, restaurantes, pequenas empresas do bairro Fundinho, onde está localizado o estúdio, e pela bilheteria das apresentações, com ingressos vendidos a R$2,00. “Fomos de porta em porta, explicar sobre o projeto e perguntar se gostariam de dar apoio financeiro ao encontro.”, explicou Fernanda. O primeiro OsC ocorreu entre 14 e 19 de dezembro, de 2004.

As outras edições contavam com colaboração praticamente voluntária das pessoas interessadas em compartilhar experiências. Houve duas edições que o OsC contou com patrocínios de maior peso: em 2006, foi financiado com recursos do Fundo Municipal, e, em 2010, recebeu financiamento da Caixa Cultural e Fundação Nacional de Artes.

Trecho do histórico do OsC, publicado no site do encontro, relata que “em 2011, OsC volta a ter o seu tamanho inicial, sem apoios de editais. Opta por sua continuação via grupos de estudos e demonstrações de trabalhos que nos ajudam a discutir um pouco mais as questões humanas em detrimento das questões estratégicas.”. Fernanda explica que os propositores do encontro – ela, Wagner e Alexandre Molina – não veem problema em produzir o OsC com apoio de editais, “até mesmo para conseguirmos  pagar justamente os artistas e qualificar a produção. A nossa maior questão é a de não condicionar a realização do OsC a esses investimentos.”.

Fernanda Bevilaqua, diretora do estúdio e companhia Uai Q Dança, uma das propositoras do OsC, em conversa durante o encontro. Foto: Clara Bevilaqua.

Fernanda Bevilaqua, diretora do estúdio e companhia Uai Q Dança, uma das propositoras do OsC, em conversa durante o encontro de 2013. Foto: Clara Bevilaqua.

Uberlândia (MG), 2013.

OSC aposta que a observação rigorosa sobre a complexidade no movimento das coisas pode fazer irromper uma perspectiva estética e cultural viva, no momento em que os limites geográficos perderem o seu sentido. (Fernanda Bevilaqua, Alexandre Molina e Wagner Schwartz)

Desde a foto de capa da página do facebook, que divulgou a décima edição do OsC, o encontro anunciou o corpo como risco e emergência. A metáfora evocada pela imagem foi a do corpo como gêiser, uma nascente de água quente que entra em erupção periodicamente e que, quando emerge na superfície, parte dela se transforma em vapor.

Foto de capa, da página de divulgação do encontro, nas redes sociais.

Foto de capa, da página de divulgação do encontro, nas redes sociais.

Algo de natureza parecida aconteceu na tarde de sábado, 14, durante conversa sobre a atuação discente e docente na universidade, que ocorreu em uma sala do curso de graduação em Dança, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). “Sabe aquele momento em que um monte de tensão se encontra num lugar e num momento específico? Como se fosse um relâmpago caindo em uma árvore? A indignação estava no ar e indignação rima com criação, mesmo que seja uma rima pobre. Os alunos discordavam respeitosamente dos professores. Foi importante, porque vi muita gente saindo de lá indignada e feliz, que é uma combinação rara e ao mesmo tempo possível.”, disse Wagner, mediador da conversa.

Conversa sobre a atuação docente e discente em dança, na universidade, rende embates e posicionamentos indignados e respeitosos. Foto: Clara Bevilaqua.

Conversa sobre a atuação docente e discente em dança, na universidade, rende embates e posicionamentos indignados e respeitosos. Foto: Clara Bevilaqua.

Mariana Lemos, artista paulistana, que integra o Centro em Movimento (c.e.m), em Lisboa, Portugal, e que ministrou oficina durante o OsC, também se entusiasmou com o que presenciou na tarde de sábado: “Ficou evidente que aconteceu um encontro, que é aquilo que me parece que procuramos na arte e, também, na vida. Independente se foi dentro ou fora da universidade, aconteceu, de fato, o encontro, e a urgência de ouvirmos a diferença.”. Uma das falas de Ana Carolina Mundim, coordenadora do curso, na UFU, ao longo da conversa enfatizava: “o sistema somos nós. A gente é que tem que gerar possibilidades.”.

Discutir, conversar, insistir até fazer ver algo aparentemente impossível. Durante a oficina “criar e reagir”, realizada entre os dias 12 e 15 de dezembro, disfrutada, em sua maioria, por estudantes do curso de graduação em Dança, da UFU, Wagner fazia perguntas sobre percepções de cada pessoa que compunha uma roda, a respeito dos experimentos cênicos que os estudantes acabavam de apresentar. As perguntas funcionavam como disparadores para cada um desenvolver mais em pensamento aquilo que viram e para conseguirem separar o julgamento da materialidade (o fenômeno) que lhes foi apresentada.

A palavra falada e escrita potencializava a percepção sobre o poder comunicativo dos gestos e dos movimentos e esse “exercício” fazia a diferença no momento de assistir aos espetáculos. “Hyenna – não deforma, não tem cheiro, não solta as tiras”, performado por Tuca Pinheiro, com dramaturgia de Rosa Hercoles, apresentado na noite de sábado, 14, chegou à plateia com a força de uma devastação.

Tuca Pinheiro em "Hyenna - não deforma, não tem cheiro, não solta as tiras". Foto: Elder Sereni.

Tuca Pinheiro em “Hyenna – não deforma, não tem cheiro, não solta as tiras”. Foto: Elder Sereni.

A violência malcheirava em todos os cantos da sala e era difícil percebê-la, porque tinha cheiro de gente, da gente mesmo. Saliva, suor, sangue, genitálias; imagens-odores que seriam neutras senão estivessem suavemente intensificados pelas ações em cena e pela imaginação. A gradação entre riso e deboche, entre graça e humilhação, fez sentir o quanto o horror pode ser sutil. “Não morreu em Auschwitz”, afirmou o artista, que realizou parte de sua pesquisa de criação no campo de concentração nazista, em Auschwitz (Alemanha). A questão continua absolutamente atual.

O folder de divulgação anuncia o encontro sem se referir diretamente a ele, mas dando pistas sobre o potencial de se enxergar uma terceia margem ou duas pernas a mais.

O folder de divulgação anuncia o encontro sem se referir diretamente a ele, mas dando pistas sobre o potencial de criação de possibilidades aparentemente impossíveis.

Na quinta-feira, 12, Mariana Lemos apresentou “C.R.U – Corpo Residente na Urbe”; na sexta-feira, 13, a Cia. Uai Q Dança apresentou “Ponto de Vista”; e, no domingo, 15, houve apresentações de Vanilton Lakka (Sociedade curto prazo), Maurício Leonard (Casa própria); Adilso Machado (Solidão pública); e Rafael Rebouças (Qualquer semelhança é mera coincidência). Além das apresentações e exposições, o encontro promoveu conversas mediadas por Cláudia Müller, Alexandre Molina, Tuca Pinheiro, Igor Fagundes e Wagner Schwartz.

 

Corpo de porco

Desde 2012, a estratégia para angariar recursos para a realização do OsC é a distribuição de porcos-cofres de gesso. “Com os porcos, conseguimos ampliar a rede de colaboradores e, ainda, comprometer as pessoas com a realização. Na medida em que pedem para os amigos colocarem moedas ali, explicam o que é o OsC e para que servem as moedas. Ou seja, vamos ampliando e qualificando a comunicação sobre o encontro e abrindo espaço para mantê-lo vivo na cidade. São possíveis experiências para não condicionar a realização desse evento, que é importante para a cidade, aos prêmios e editais.”, diz Fernanda. Ao fim do encontro, os porcos se transformam em vasinhos de plantas, que retornam aos colaboradores.

 

Os porquinhos de gesso, antes cofres, se transformam em vasos de plantas que retornam aos colaboradores. Foto: Fernanda Bevilaqua.

Os porquinhos de gesso, antes cofres, se transformam em vasos de plantas que retornam aos colaboradores. Foto: Fernanda Bevilaqua.

Foram 63 porcos distribuídos, desde junho, e 37 vendidos a R$40,00 cada. Com o dinheiro arrecadado, conseguiram pagar metade dos gastos que tiveram com a produção do encontro – sendo que os cachês têm valores baixos e são complementados com o valor arrecadado com a bilheteria, com ingressos vendidos a R$3,00. A outra metade foi paga com apoio do Departamento de Cultura, de Uberlândia, a DICULT, e a planilha dos gastos foi apresentada a todos os participantes, no último dia do encontro, antes das últimas apresentações começarem. A realização do OsC se deu, neste ano, em parceria com o curso de Dança, da UFU (que foi criado em 2010), com a DICULT e com o estúdio Uai Q Dança.