Os 6 dias da residência com Micheline Torres no Conexão Dança, por ela mesma

arvore na casaCaminhando nas ruas da cidade observo os casarões abandonados e as plantas que crescem insistentes em seus tetos. Termina junho e a cidade de São Luis do Maranhão acalma de tantos arraiais, danças, quadrilhas, folguedos, cacuriás, bumba-meu-boi e tambor de crioula. A cada rua percorrida são mais e mais telhados inteiros cobertos de verde, janelas destruídas e verdadeiras florestas em seus interiores. A principio sem condição alguma de crescimento, estes verdes invadem à procura de luz e condições e encontram, sim, espaço infinito de desenvolvimento: para o alto e avante.

É nesse mesmo enquadramento que observo o desenvolvimento da dança em São Luis do Maranhão (e em outras cidades do Brasil): poucas possibilidades de crescimento e, ainda assim, florescimentos insistentes.

Falaremos do aqui e do momento agora: estamos no Conexão Dança, ano V.

Chegar, aterrar

Este ano o Conexão Dança, que reúne criações de dança, teatro, artes visuais e performance, se estende de abril até agosto, com apresentações de artistas selecionados em edital publicado pelo festival, mostra itinerante de videodança realizada em parceria com o Festival Dança em Foco, encontro do Fórum da Rede de Dança Maranhense, conversa com participantes do Rumos Dança e conversas com Marcelo Evelin, ao longo de encontros denominados “Oficina de Pensamento”. Acontecem ainda duas residências de criação, a minha e a da paulistana Thelma Bonavita, em julho/agosto.

Venho pela segunda vez  ao Conexão Dança, desta vez  não para apresentar meu trabalho artístico, mas para estar, por 6 dias, em residência com jovens criadores da região.

Esta residência é também uma insistência e uma resistência. Ela quase não aconteceu, o dinheiro quase não deu, o Conexão quase não aconteceu.

O Conexão acontece assim, nestas condições, desde 2009 e não nasceu como festival, mas como tentativa de realizar trocas entre artistas. “Acabou virando um festival porque foi a forma mais interessante de articular mais ações e ter grana para poder trazer artistas e residências de criação.”, explica Erivelto Vianna, produtor e idealizador do Festival.

No Maranhão não há curso superior ou técnico de dança, tampouco edital ou políticas de fomento específicas  para a área.

Portanto e mais uma vez estes verdes, estas árvores e estes frutos insistem em crescer, em frutificar, em se espalhar e em regar condições, por entre a obviedade que seria a frase “não dá, não temos condições, não temos dinheiro, não temos interesse governamental…”

Estes verdes são o exercício da invenção de outros possíveis, e vamos olhar para eles.

Esta escrita, portanto,  parte de um relato construído ao longo dos 6 dias de residencia. Um relato pessoal e coletivo, feito do meu encontro com arvores, verdes, plantas, desejos, pessoas, lugares e insistências.

 Primeiro dia de oficina

O nome da oficina “Performance – Compartilhando, Roubando e Emprestando Simultaneamente” já aciona olhos, desejos e engajamentos de pessoas que podem ser da dança, das artes visuais, do teatro ou mesmo de qualquer área, contanto que estejam fisicamente engajadas em experimentarem-se. Pronto, abre-se um grande campo de atuação e começamos nosso primeiro dia pensando nos pontos levantados por Jacques Rancière no livro O Mestre Ignorante , apenas para sintonizarmos nossa atenção na importância da experiência partilhada. Passamos também pelas ideias do geógrafo baiano Milton Santos, a ecologia dos saberes de Boaventura de Sousa Santos  escritos sobre o corpo cênico, os primórdios da performance e as experiência de cada um sobre fazer arte no Brasil. Um longo dia de falas e apresentações de cada um, onde exercitamos ouvir o outro, o tempo do outro, o engajamento do outro.

Olhos atentos e diferenças em uma sala de ensaio, o exercício constante de criar interesse, cavar, extrair.

Segundo dia de oficina

Chove com força há muitas horas em São Luis ou, como ouvi, “ o tempo arrochou”. Penso se as pessoas conseguirão chegar ao teatro, se eu conseguirei chegar ao teatro. As ruas escorrem água ladeira abaixo e repasso na cabeça todos os casarões vazios e aos pedaços que existem no caminho daqui ate la. Pergunto o preço de um casarão desses e calculo o triplo do preço pra reforma-lo e sigo pensando em como descentralizar, em como abrir espaço em cidades pequenas, em outras maneiras e locais para se estar junto, para se fazer arte neste imensurável e muitas vezes abandonado Brasil. Lembro da conversa com Erivelto sobre os números, os custos, do Conexão Dança, que esta em seu ano 5. Eu acredito sim e vivencio todas essas mágicas empreendedoras de uma planilha orçamentaria irreal mas eu quero, cada vez mais, vivenciar condições de existência e expansões.

Chegamos ao teatro, eu e Marcelle Sampaio, minha colaboradora de criação dos dois últimos trabalhos, ensopadas e dispostas. Todos, TODOS, chegam ao teatro e prontos para o trabalho. Sinto mesmo alegria só por este fato. Penso obviamente no jeitinho que cada um teve que dar para separar aquelas horas para trabalhar, os filhos que ficaram com outras pessoas, sair mais cedo do trabalho, dormir mais tarde, a escola… e começo mais um dia de residência, alimentada pela vontade deles junto com a minha, a vontade de um grupo que conseguiu se reunir por 6 dias, que conseguiu ter aquele espaço e aquelas condições.

Temos preciosidades nas mãos e horas de trabalho.

 Pilares do trabalho de hoje:

A partir de princípios do treinamento físico proposto por Jerzy Grotowski , vamos juntos experimentar uma espécie de engajamento físico que é ao mesmo tempo individual em suas especificidades e coletivo no momento da pratica e nos pilares compartilhadas por todos:

  • Equilibrio do espaço que se tem
  • Silencio atento ao grupo e a si, numa constante negociaçao
  • Escuta do grupo e movimentação de todos juntos no espaço
  • Olhar que enxerga dentro fora, indivisivelmente

Estamos em São Luis do Maranhão, são 6 dias, estamos em julho de 2013. Estes são pilares de um treinamento físico desenvolvido por Grotowski a partir dos anos 60 e são também pilares políticos, desta micro-política do dia-a-dia, dos encontros constantes de pessoas e seus desejos e das negociações infinitas que os encontros demandam.

Suamos e passamos as 4 horas de hoje tratando de corpo e fisicalidades e seguimos tratando de política.

 Terceiro dia de oficina:

Avançamos mais nos exercícios de escuta de si, do grupo, mudando a imagem do verbo não mais para escuta só do ouvido, mas a escuta dos 360? da pele. Yuri, que é também eletricista, não chegou hoje. Entramos na composição coreográfica, em pensar as acoes como tempo, pausa, tônus muscular, direção do olhar, repetição e em como começar e como terminar uma proposição.

Alguém falou sobre o “sentimento” de uma determinada cena e a “mensagem” que se gostaria de passar. Propus pensarmos mais em relações espaciais, pausa e movimento, clareza nos impulsos e atenção ao tônus muscular empregado e nas necessidades de cada movimento, de cada ação. Então fizemos fizemos fizemos a cena com estes pontos em vista e, depois, revemos tudo. Discutimos sobre “sentimento” e “mensagem” e experimentamos então uma outra cena, pra quem faz e para quem vê. Experimentamos  uma amplitude performativa que engole os conceitos de sentimento e/ou um suposto objetivo que seria “uma mensagem a passar”. Neste ponto do trabalho em grupo, olhar e/ou fazer são oportunidades preciosas e equivalentes de estar dentro, estar junto, estar exercitando.

Seguimos investigando.

Quarto dia de oficina

A obra é conseguir fazer. A gente trabalha com o que tem. Se não é possível fazer alguma coisa, tem que fazer outra. É preciso respeitar isso. Eu já disse que a obra não é tão importante quanto o aprendizado. É muito importante ir aprendendo com o que se faz.”

Leonilson, 1992

Experimentar fisicalizar seus engajamentos, se perguntar “Como eu encosto nisso, neste interesse, nesta imagem, nesta proposição?”

O tempo é sempre curto para a investigação, portanto o tempo é sempre precioso, tanto quanto ter espaço e condições de trabalho. Sigo insistindo nesta fala e nesta pratica com eles e no quanto isto é valioso e deve ser cuidado, alimentado, expandido, com rigor e desejo renovado.

Limpamos o espaço e seguimos nos engajamentos pessoais. Tem dias que parece que nada acontece e é obvio que não, é obvio que não enxergamos tudo, é obvio que os engendramentos se engordam com o dia-a-dia.

No jantar falamos sério e rimos, comentando sobre nossa “fé cênica”.

Quinto dia de oficina

Antes do nosso horário e avançando um pouco nele, temos outras pessoas no espaço: é a reunião para a 4ª Conferência  Municipal de Cultura, para elaboração do Plano Municipal de Cultura de São Luis. A discussão desta conferencia é “Uma Política de Estado para a Cultura: Desafios do Sistema Municipal de Cultura”. E esta reunião é para a indicação de delegados para os fóruns setoriais.

Isso se transforma na nossa residência também, estamos falando de diferentes aspectos da mesma coisa: equilíbrio do espaço, negociação entre individualidades e o grupo, escuta do grupo e movimentação de todos juntos no espaço, olhar que enxerga dentro fora, indivisivelmente.

Apos este trabalho, em silencio, nos aquecemos e entramos em treino, exercício infinito de comunicação entre as pessoas no aqui e agora, atentos aos princípios que nos norteiam, para que expansões e atravessamentos possam emergir. Trabalhar com o corpo é labor constante, atento, mutante.

No meio do treino, mais exatamente no meio da corrida, caem as calças do Diones e ele, incrivelmente, se desvencilha delas e prossegue correndo. Discretamente sorrio pela graça da situação e pela beleza que é confiar e trabalhar junto a um grupo.

Me sinto grata por estar aqui, em São Luis, com estas pessoas.

Terminamos o dia assistindo o filme Marina Abramovic – A Artista Está Presente.

Sexto dia de oficina

Temos o Teatro Alcione Nazaré a nossa disposição das 14 as 18h, quando apresentaremos uma pequena “aula-espetáculo” a partir destes 5 dias de trabalho.

As pessoas estão todas excitadíssimas e se preparando preparando preparando.

Bonito de ver e entender que todo este “se preparar” e esta residência engajam pessoas, desejos, suores, condições e não condições de trabalho, o exercício constante do olhar crítico, curioso, muitas perguntas sobre formação em dança, experimentos acerca da performance, dúvidas e precariedades, invenções e também muito espaço vazio para o não dito, para o não discursável, para as sensações e para os ventos daqui, que só se sente estando aqui.

Lembro novamente do geógrafo Milton Santos: “os lugares obrigam os homens a intercâmbios”. No meio deste pensamento me interrompe a Nathalia que diz, propondo mudar sua cena, que “gostaria de usar as palavras como o Marcelo usou no Homem Vermelho,  num jogo de palavras e movimento…”.

Sorrio pensando em como é importante viajar e estar em contato com pessoas e lugares.

Vou para a cabine resolver coisas de luz. Então entendo que não tem fiação para operar a luz do palco, portanto faremos as proposições de palco com a luz geral todo o tempo. As proposições de rua ou de outros espaços já estão resolvidas.

Penso mais uma vez em precariedade, invenção, mágicas empreendedoras, nos casarões abandonados de São Luis e nas plantas que crescem insistentes em seus tetos.

Evito desta vez o elogio à precariedade como motor de invenção e lembro da reunião agitada do Conselho Municipal de Cultura, das conversas sobre as manifestações na ponte Jose Sarney, da discussão do mar de possibilidades que é pensar formação em dança no Brasil, dentro, fora e tangenciando a universidade, dos encontros do grupo Reage Artista, no Rio, e em pequenas e potentes maneiras de se construir outros possíveis.

Como seguir, prosseguir, perseguir, persistir, continuar?

São 18h, o público chega, vamos começar.

Sou grata e escrevo a partir do encontro com as seguintes árvores, matos, regadores, sementes, sóis, adubos, flores e fertilizantes: Aline, Amanda, Anderson, Ângela, Ayrton, Camila, Carla, Cintia, Diones, Doroti, Erivelto, Imira, Layo, Ligia, Marcelle, Nathalia, Regina, Ricardo, Rick, Ruan, Sabrina, Tatiane e Yuri.