Os direitos do heterogêneo

Não há democracia na vigência do discurso único. Na refrega verbal o diverso se anuncia, se enuncia. A democracia não é outorgada. (…) Direitos democráticos são duramente conquistados. (…) As constituições democráticas são ideadas por pessoas que se reconhecem diferentes e admiram a diferença. (Donaldo Schüller, Origens do discurso democrático)

O quadro de gestão cultural que se inicia a partir desse ano no Estado de Pernambuco suscita uma reflexão mais ampla, que pode interessar a todos que pensam sobre o sentido de uma política cultural democrática.
Com a vitória de Eduardo Campos (PSB, Partido Socialista Brasileiro) para o governo de Pernambuco, foi nomeado Ariano Suassuna para o que essa gestão está chamando de Secretaria Especial de Cultura.
Do ponto de vista burocrático, é “especial” porque ganha autonomia em relação a Educação (antes Educação e Cultura compunham a mesma secretaria), mas também porque não constitui uma nova pasta. Trata-se, na verdade, de uma secretaria executiva, um “órgão especial, vinculado ao gabinete do governador”[1]. A função dessas secretarias executivas é “apenas” de planejamento, de forma que a Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco), órgão executor das políticas culturais do Estado[2], continua atrelado à Secretaria de Educação. Essa estrutura incomum é possível graças a uma reforma administrativa feita para viabilizar o programa de governo.
Do ponto de vista da concepção, no entanto, o caráter “especial” dessa secretaria deve-se, certamente, a outras peculiaridades, que ainda estamos tentando entender. É que este órgão terá como incumbência (pelo menos prioritariamente) montar um espetáculo (ou aula-espetáculo) por cada ano de gestão e fazê-los circular pelo interior do estado e pelas periferias da capital. Serão aulas–espetáculo que ilustram o ideal de cultura brasileira que Ariano Suassuna e os demais componentes do já conhecido Movimento Armorial perseguem em sua obra. Só para quem não sabe, o Armorial é uma movimento estético existente, oficialmente, desde a desde a década de 70 e cujo objetivo é criar uma arte brasileira erudita inspirada na cultura popular de origem indígena e negra e nas tradições ibérica e moura.
O objetivo desses espetáculos é ilustrar uma aula sobre a cultura brasileira, conforme, claro, entendida pelo Secretário. Segundo a coreógrafa Maria Paula Costa Rego, que compõe o quadro de Ariano Suassuna com uma função chamada, para fins burocráticos, de Coordenação de Coreografia, o projeto de Secretaria de Suassuna é baseado em um ideal. “Ideal de que todos possam ter acesso à informação sobre a formação Cultural do Brasil”[3].
Sobre os objetivos deste órgão especial e com o intuito de “tranqüilizar” “os que possam supor que o armorial irá pairar onipresente sobre a cultura pernambucana em sua gestão”, o próprio secretário explica:

“Aqui fizemos uma secretaria de propósito pequena. Aqui temos, digamos, aquilo que gostaria que fosse. Acontece que o governo não é formado apenas por pessoas que gostam de Clóvis Pereira, Ariano Suassuna ou Jarbas Maciel. O governo é uma coisa muito mais ampla. E então combinou-se o seguinte: a Fundarpe se encarrega desta outra parte, é gestora do Funcultura, e atenderia pessoas que têm outros gostos, outras posições.”[4]

O “grau zero” em relação ao qual os demais gostos e posições são O Outro para o escritor é o projeto armorial, com sua concepção de cultura, seus princípios criativos e seu entendimento sobre que bens de cultura são legítimos e dignos de veiculação. Foi esse projeto que Ariano Suassuna claramente defendeu na aula-espetáculo inaugural dessa gestão, realizada no último dia 16, em que realçou que o armorial foi criado, desde o início, “para acabar com o processo de vulgarização e descaracterização da cultura brasileira”[5] e citou, como exemplo dessa vulgarização nos dias atuais um trecho de uma canção da banda Calypso, cujo dono e guitarrista, Chimbinha, foi chamado de “imbecil” pelo Secretário, por ter escrito tal canção[6].
O criador do Movimento Armorial já tem seu histórico como gestor da cultura, em diferentes esferas: já foi diretor do Departamento de Extensão Cultural da UFPE – 1970-1975; secretário da cultura do município (Prefeito Antonio Farias – 1975-1979); e secretário da cultura de Pernambuco (Governo Miguel Arraes – 1995-1998). Sua nova secretaria não será a primeira em que o escritor defenderá e propagará o seu ideal, o que “gostaria que fosse”, através de ações que têm por base o incentivo à produção artística afinada com os preceitos do Armorial. Cabe a uma gestão pública, repito, pú-bli-ca, recolher e gastar a receita de impostos oriundos de toda a sociedade para promover uma concepção particular de cultura?
Sua disposição a dar continuidade às metas perseguidas desde a década de 70 já provoca, no entanto, algumas dúvidas bem perplexas e, em alguns casos, descontentamento.
Como ainda está cedo para julgar as ações dessa secretaria especial no seu todo, e tarde para achar que tudo será muito diferente do que aconteceu em outras gestões (Ariano Suassuna já deu sinais da direção que irá seguir), mantenhamo-nos no lugar das perguntas. A primeira delas é afinada com questões tratadas por Néstor Garcia Canclini em seu Culturas Híbridas: de que servirá a política feita pela secretaria de Ariano Suassuna se seu caráter “especial” estiver a serviço de propagar exclusivamente o que os que gostam de Clóvis Pereira, Ariano Suassuna ou Jarbas Maciel entendem por cultura? Para aprofundar essa discussão, vale a pena conferir o pensamento de Canclini:
Para que serve uma política que tenta abolir a heterogeneidade cultural? Para suprimir algumas diferenças e marcar outras. Divulgar massivamente o que alguns entendem por ‘cultura’ nem sempre é a melhor maneira de fomentar a participação democrática e sensibilização artística. (…) uma política democratizadora é não apenas a que socializa os bens ‘legítimos’, mas a que problematiza o que deve entender-se por cultura e quais os direitos do heterogêneo. Por isso, a primeira coisa a ser questionada é o valor daquilo que a cultura hegemônica excluiu ou subestimou para constituir-se.[7]
Desse questionamento vêm todos os demais. Se a ação prioritária da política de Ariano Suassuna for mesmo montar espetáculos e circular com eles para ilustrar sua concepção de cultura brasileira, com a finalidade de que a população tenha acesso à “qualidade”, poderemos identificar o que será sua função com o que Canclini julga insuficiente para considerar uma política como democratizadora. Embora o escritor esclareça que a Fundarpe cuidará dos “outros gostos” e das “outras posições”, as perguntas persistem e até se proliferam: então “gosto” é um critério adequado para pensar e estruturar-se uma política pública? Se a Fundarpe é um órgão executor de políticas culturais cuja concepção não dialoga com a Secretaria de Cultura, para que existir esta última? Apenas para mostrar-nos o que está no “mundo das idéias”?
Porém, ela já existe, já está com equipe formada e quase toda anunciada. A maior parte de seus membros é comprometida com o ideal armorial, e cada qual ficará responsável por algum aspecto nas montagens dos espetáculos. Como o grupo completo ainda não se reuniu, segundo Maria Paula, não há ainda uma certeza de que, além dos espetáculos, a secretaria desenvolverá outras atividades nas cidades de interior pelas quais passará. As notícias que até agora chegam não deixam claro se outras ações, mais estruturadoras, serão implementadas. Sobre a possibilidade de que a política dessa secretaria se limite à montagem de tais espetáculos, pronuncia-se Valéria Vicente[8]: “Se é esse o plano de trabalho acho que há um grande equívoco sobre o papel de uma secretaria de cultura que deveria estar voltada para planejamento e execução de uma política pública de curto, médio e longo prazo.” Novamente, uma pergunta se pronuncia e anseia por uma resposta: é pertinente uma secretaria de cultura ficar responsável apenas por montar espetáculos com sua equipe e segundo as convicções estéticas desta?
Um dos jornais locais (o Diário de Pernambuco) está fazendo uma série que discute o “programa armorial enquanto política pública”[9], e, já na sua primeira reportagem, de 16 de março, um box intitulado Multicultural ou monocultural? trazia a manifestação de intelectuais e artistas que estão expressamente desconfortáveis com uma suposta revitalização do armorial através de uma estrutura pública. Apontam a necessidade e a preferência por que se invista em uma política pluralista, multicultural. Suscitada pelo fio dessa discussão, outra pergunta se insinua: se o Governo atual é apoiado pelo partido (PT) responsável pela gestão da capital de Pernambuco, não seria interessante que seu pensamento dialogasse minimamente com as concepções norteadoras das políticas municipais? No caso da Cultura, a implementação de ações que se orientam por um desejo de respeitar a multiplicidade e a complexidade cultural não será levada em conta pela secretaria de cultura estadual? Isso também ficará para a Fundarpe, cuja direção agora é responsabilidade de Luciana Azevedo, também do PT?
Todas essas questões ainda se somam de antigos questionamentos em relação ao pensamento do Movimento Armorial acerca de identidade, cultura popular e povo. Talvez a vinculação de uma estrutura política a um movimento estético formado por uma elite de intelectuais não fosse vista com tantas ressalvas se seus pilares ideológicos tivessem sido revistos. Mas, ao que tudo indica, Ariano Suassuna continua a tratar a cultura popular como a salvaguarda da identidade nacional, como se a cultura popular e o povo, vistos da perspectiva da elite, permanecessem ilesos à história, e também não dialogassem, por sua própria iniciativa, com as culturas de massa e com as da elite.
Além disso, uma visão de cultura brasileira que aceita determinadas contaminações, mas não outras, determinadas manifestações, mas não outras, continua sendo marca do escritor. Na década de 70, não conferia legitimidade ao Tropicalismo, por dizer que esse corroborava a imagem que os norte-americanos construíam dos latinos; na década de 90, o manguebeat, apesar de também valorizar a cultura popular pernambucana, não recebia os melhores aplausos de Ariano porque o mais popular de seus representantes era conhecido como Chico Science e não Chico Ciência, e porque não negava referências oriundas da cultura norte-americana, como a guitarra, o rock e o Hip Hop. Hoje, mal começa a gestão assumidamente armorial, e Chimbinha é atingido em cheio pela visão apocalíptica do mestre do Armorial.

A complexidade cultural e a diversidade estética prevêem que a música de bandas no estilo da Calypso agrade a uma parte da sociedade e a outra, não, como, de resto, toda manifestação cultural. Se aqueles que não se agradam estão no lugar da elite, isso não lhes confere o direito de que sua visão estética seja o referencial, o parâmetro, a partir do qual se julgam outras escolhas, outros gostos, outras expressões. Cada uma das expressões tem valor legítimo como lugar de significação e de contrução e afirmação de identidades. É surpreendente que uma gestão cultural, hoje, não parta desse entendimento, ou, no mínimo, não tenha implícito em suas ações e seu discurso o reconhecimento de que bandas como a Calypso representam, inclusive, uma expressão econômica para a qual temos que tirar o chapéu, pois constituem um verdadeiro circuito independente de produção, circulação e consumo e empregam milhares de músicos, técnicos, dançarinos, etc., especialmente no Norte e no Nordeste do Brasil.
Quanto às políticas para a dança em Pernambuco, devemos direcionar nossas expectativas apenas para a Fundarpe? Esta nos reservará alguma surpresa para além da cota de projetos que serão aprovados pelo Funcultura e das atividades já pertencentes ao calendário do Estado, a exemplo do Festival de Inverno de Garanhuns? Ou poderemos esperar que a Secretaria de Ariano pense na dança para além de um dos componentes de seus espetáculos armoriais? Uma vez que esses espetáculos estão afinados com a estética armorial, e suas funções já estão plenamente preenchidas pela equipe do Secretário, poderemos nutrir esperanças em torno de editais para participação de profissionais de dança do estado nesses produtos culturais viabilizados por verba pública?
No passado, Ariano Suassuna, do lugar de gestor cultural, foi o principal responsável pela montagem do Balé Armorial (1976), pela criação do grupo Balé Popular do Recife (1977), e um grande incentivador da criação do Grupo Grial (1997). O espetáculo Balé Armorial e esses dois grupos, sobretudo, o Balé Popular do Recife, deram trabalho a inúmeros dançarinos. Nas novas metas do Secretário, ele estará preocupado em fortalecer o campo profissional, para que, além de propagar o seu entendimento sobre cultura, contribua para que profissionais de dança de Pernambuco possam continuar a ser profissionais de dança?
Outra preocupação pertinente é a de que um possível posicionamento reducionista da política norteada pelos preceitos armoriais possa significar o estancamento do processo de projeção e consolidação nacional da produção contemporânea da dança. A inquietação é de Christiane Galdino [10], que também lança outras questões: “haverá apoio e espaço para projetos mais experimentais ou para obras coreográficas que não ‘bebam na fonte popular nordestina’? A dança pernambucana precisa de apoio para manter-se livre e desenvolver-se nos seus diversos caminhos criativos, prezando sempre pela qualidade, independente das técnicas que utilize ou das escolhas ideológicas que pratique.”
Uma vez que se entenda que uma política democrática pressupõe a “polissemia interpretativa”, como defende ainda Canclini, a discussão sobre o que se entende por cultura, as divergências quanto ao que se considera legítimo como bem de cultura, e a aceitação da diferença devem ser consideradas imprescindíveis para uma política pública que se pretenda democrática. A pergunta é um bom começo para o debate, mas que venham as respostas, e que elas subentendam o respeito pela divergência. Na divergência, podemos nos educar, aprender a falar e exercitar o diverso, o democrático.
Por fim, não queremos entrar no mérito das questões internas da gestão cultural do Minc, ou das críticas que ela provoque entre artistas e produtores culturais do Brasil. Mas, imaginemos se Gilberto Gil resolvesse conduzir o Minc como expressão apenas da Tropicália (marca de uma época de sua carreira), como Ariano Suassuna se propõe a fazer na Secretaria “Especial” de Cultura de Pernambuco, sustentando-se apenas no seu “gosto”. O que seria dos pontos de cultura, de editais como o DOC TV e dos prêmios Klaus Vianna e Miriam Muniz, que estimulam a diversidade cultural brasileira?

[1] Carolina Leão e Renato L. Diário de Pernambuco, Viver, 16 de dezembro de 2006. D6.
[2] Responsável, entre outras coisas, por gerir o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, o Funcultura.
[3] Depoimento concedido por email.
[4] José Teles. Jornal do Commercio, Caderno C, 16 de março de 2007.
[5] Michelle de Assumpção. Diário de Pernambuco, Viver, 19 de março de 2007. B4.
[6] Idem.

[7] Néstor Garcia Canclini. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2003. pp.155-157.
[8] Coordenadora do Projeto RecorDança, bailarina, jornalista e mestranda em Artes Cênicas na UFBA. Depoimento concedido por email.

[9] Carolina Leão e Renato L. Diário de Pernambuco, Viver, 16 de dezembro de 2006. D6.
[10] Pesquisadora de dança, jornalista, Especialista em Jornalismo Cultural (UNICAP), mestranda em comunicação no POSMEX (UFRPE) e membro da coordenação do Movimento Dança Recife. Depoimento concedido por email.