Os gatos pingados

Sobre artista, público, terapia, amor, Yerbabuena e mais umas coisas

Então, aqui em Curitiba a gente tem sofrido com a falta de público. Sofrido não define exatamente o sentimento. É mais uma curiosidade em torno de um fato consumado. A gente vai lá, cria, pensa, lê, discute, testa, ensaia tudo bem bonitinho. Aí, na hora de apresentar, aparecem lá uns cinco gatos pingados, dos quais três são parentes em primeiro grau e os outros dois saem reclamando, falando que não entenderam nada. E não adianta a gente divulgar bem pra caralho, mandar pra tudo que é revista, jornal, TV, ligar pras pessoas, chamar, insistir. Não adianta vender ingressos a preços módicos, oferecer amendoim, biscoito, chá, cerveja. Eles não vão mesmo.

Eu sei de outras cidades em que a falta de público não é tão gritante, e até já se criou uma prática de sair de casa pra ir a um teatro, uma dança contemporânea, pelo menos quando é de graça. Mas ainda assim, é comum ouvir o público reclamando que não entendeu nada.

Mas por quê, meu pai do céu?

Bom, não vou nem tentar responder a isso agora. Mas, pelo menos pra progredir um pouco mais na pergunta, preciso antes explicar quem é “a gente” e quem são “eles”.

Quando eu falei “a gente”, dei algumas pistas. Falei em criar, pensar, ler, discutir, ensaiar, apresentar. Então, “a gente” é gente que ensaia e apresenta coisas para pessoas. Não é todo artista que faz tudo isso, e nem é toda arte que prescinde de público. Então, estou me referindo aqui a um determinado segmento das artes cênicas.

Se eu falo em criar, ler, discutir, testar, estou falando de arte contemporânea e estou falando de pesquisa. Quando falo em ensaiar e apresentar, me refiro a uma certa maneira de trabalhar que se encontra mais freqüentemente no campo da dança, do teatro, mas também da música, da performance, e por aí vai.

Voltando um pouco, tem outra coisa que dá pra deduzir do primeiro parágrafo. Eu falei “não adianta a gente divulgar bem pra caralho, ligar pras pessoas…”. Bom, se a gente divulga e liga pras pessoas, decide o preço dos ingressos, informa a imprensa etc. é porque não tem uma instituição ou um produtor fazendo todo esse trabalho. Logo, estou falando de um artista independente.

Agora que já deu pra delimitar um pouco o primeiro personagem, que doravante chamarei só de artista – contemporâneo, independente, mais ou menos da área das artes cênicas, interessado em pesquisa -, vamos ver quem é o “eles”.

Porque, nesse caso, família não conta. Família, amigos, os outros artistas, essa gente toda não conta. Eles têm que ir te ver, não fazem mais que a obrigação. No caso de Curitiba, se for uma temporada, digamos, de dez apresentações, juntando esses 60 que são os amigos e a família, dá seis pessoas por dia.

Mas a gente não quer esses seis por dia. Esses seis por dia não vão sair reclamando. Eles vão abraçar, dizer que acharam lindo e vão mandar scraps simpáticos no Orkut. A gente quer é aqueles dois que saíram reclamando, o tal do “público espontâneo”, muito entre aspas. É o cara que viu o cartaz da peça ou leu em algum jornal e resolveu ir ver.

Só queria dizer que essa explicação toda não é por descrédito à inteligência do leitor, juro. Mas é preciso deixar bem claro que eu não estou falando de todos os artistas e nem de todos os públicos. A questão aqui é essa distância que existe entre esse segmento da arte – do qual eu faço parte, de gente que quer chegar a outros públicos além da própria comunidade mas não consegue – e esses outros públicos – os caras que gostam de arte, que lêem, vão a um teatrão, ao cinema, a um show, até ver uma dança folclórica, mas não curtem ver uma peça mais puxada pro contemporâneo.

Não estou desconsiderando a importância da comunidade artística que vai ver. Aliás, na verdade, isso até tem me animado bastante, porque, pelo menos por aqui, a situação tá bem melhor. Os artistas têm ido ver os trabalhos uns dos outros, visitado outras áreas da arte, se interessado mesmo. Isso não é pouco.

Mas não tampa esse buraco. Tem toda essa gente aí que tem pavor só de ouvir falar de teatro, dança contemporânea, e isso é um problema sim. (Vide essa polêmica toda que tem rolado aí esses dias. Pra mim é bem sintomático.)

Imagino – só imagino, porque nunca vi – que exista artista que se encaixa em todas essas características que eu descrevi, mas se dá superbem com público, tá vivendo de bilheteria. Sei lá, deve ter.

E sei também que tem muito trabalho que não é voltado a esse público. Às vezes a tua arte é pra uma pessoa só, pra dez, pra ninguém. Mas o que eu vejo muito é essa tentativa de comunicação mal sucedida. As duas partes saem frustradas. E não é pra ficar?

Vou falar bem por mim. Eu já tive prazer demais em ver o povo sair reclamando, mas depende muito da reclamação. Confesso que é uma delícia ouvir alguém dizendo que aquilo é uma sem-vergonhice e me xingando, querendo me bater. Porque magoou, tocou, mexeu, deu raiva, isso é muito bom. Mas quando alguém sai apático e diz que não entendeu nada, sempre dá uma dorzinha no coração. Porque se não rola a comunicação, a coisa nem chega, é porque tem algo errado. Ni mim? No público? No sistema? No governo? No ensino? Na sociedade? No universo? Deus?

Dava pra ficar 120 páginas discutindo possíveis programas públicos de fomento à cultura, a relação entre arte e ensino. Podia falar do papel da imprensa, da crítica, da academia, da formação em arte – tudo importantíssimo -, mas não vou nem entrar nisso. Já dá muito trabalho falar desse artistinha e desse publiquinho que eu delimitei aqui.

Porque, se a situação é de calamidade, quem pode tentar mudar alguma coisa é o artista, pois é ele que tem interesse. O governo não se mexe se não tiver demanda popular, e o popular não demanda se não gostar da arte que a gente faz. Aí fodeu, vamos ter que discutir a relação.

Se eu fosse o terapeuta do casal ia conduzir a sessão assim:

Eu: Então tá, que que vocês têm pra reclamar um do outro?

Artista: Ele não me dá atenção.

Público: Ele não me dá atenção.

Eu: Sejam mais específicos.

Público: Ele só se importa com os problemas dele. Me trata como se eu fosse idiota e só ele soubesse das coisas. Ou ele força a barra pra eu prestar atenção, me obriga a participar das babaquices que ele faz, ou me ignora completamente. Ele age como se fosse um deus, um sacerdote, sei lá. Não se esforça. Fica lá no lugarzinho dele e acha que eu tenho que aplaudir qualquer coisa que ele faça. É megalomaníaco, arrogante, chato e preguiçoso.

Artista: Ele não quer nem tentar entender do que eu estou falando. Queria que eu fosse outra pessoa, que eu fosse o Gianecchini, a Ana Botafogo, o Leonardo da Vinci. Ele menospreza o meu trabalho, acha que não tem esforço, que não tem nada. Tudo que eu faço ele acha que é presunçoso ou é bobagem. Me julga de acordo com uns parâmetros que saíram, sei lá, da publicidade, da cabeça da mãe dele, e não tem a menor intenção de olhar com cuidado pro que eu faço. Ele quer que eu faça o que ele gosta, quer sair sempre feliz, quer entretenimento. Ele é burro, mal informado, insensível e desinteressado.

Eu: Tá, mas vocês ainda se amam?

E pensar que isso acontece justamente na arte contemporânea, em que aparece mais forte esse discurso de libertar, quebrar fronteiras, de levar arte pro cotidiano, cotidiano pra arte, questionar, mudar o mundo com arte. Mas que mundo que vai mudar, se o mundo em questão insiste em falar que não entendeu nada?

Esses dias, tava no Programa do Jô uma Eva Yerbabuena, dançarina de flamenco. Eu de flamenco não entendo nada, mas nunca tinha ouvido falar da mulher. Ela tava excursionando pelo Brasil, e ia se apresentar aqui em Curitiba. Não sei nas outras cidades, mas aqui esgotaram os ingressos em tipo um dia. E custava 100 pilas! (Eu nunca vi tanto dinheiro junto.)

Aí eu fiquei pensando: Por que essa Yerbabuena, tão desconhecida do grande público quanto eu, consegue lotar o teatro com ingresso a 100 pilas, e eu não consigo nem oito pessoas por dia com ingresso a cincão, às vezes de graça? Está na propaganda? Está em ir ao Programa do Jô? Está na grana?

É claro que uma divulgação massiva faz coisas incríveis. Mas acho que, além disso, tem uma vantagem no flamenco: é que dá pra entender. Entender o quê, gente? É muuuuuuuito mais abstrato que a minha arte contemporânea.

Mas os parâmetros ali estão claros, dá pra ver e medir a qualidade. A mulher consegue bater o pé no chão 14.482 vezes a cada milissegundo, pelo amor de deus! E é bonito, eu pelo menos acho bem bonito. Então, o que fica claro ali é uma qualidade técnica e estética assimilável, e o público chega à conclusão de que dá para gastar cenzão, porque tá comprando qualidade. E tá mesmo.

E tem ainda as referências, porque, mesmo eu que não entendo nada do assunto, tenho com o que comparar, tenho pontos de partida pra me relacionar com aquilo.

“Ah”, diz o artista (contemporâneo, independente, mais ou menos das artes cênicas, interessado em pesquisa etc.), “eu é que não vou dar o que eles querem, pois se eu quero justamente questionar esses padrões”. E tá certíssimo, continue assim.

Agora, se coloca no lugar do outro: você sai de casa para assistir a alguma coisa que você não tem idéia se presta? Uma coisa com a qual você não se relaciona, não tem referência pra olhar, não te interessa? Até mesmo alguma coisa que não esteja tão longe assim das tuas referências, tipo um concerto de música contemporânea? Pagaria os 100 pilas pra ver a Yerbabuena? Então não reclama se ninguém vai ver a tua arte.

Bom, e como é que se resolve isso?

Já falei que ia deixar de lado o papel do governo, da imprensa, da universidade, da escola. Então vamos ver só o que artista e público podem fazer.

Eu acho que o público tem muita razão em reclamar de algumas coisas. Porque o que se vê com muita freqüência é que ele entra por último na jogada. Ninguém quer saber dele durante o processo de criação. Quantas vezes a gente não se depara com o artista, esse artista que ensaia e apresenta, também pra esse público, ignorando completamente o olhar do outro, pouco ligando pra comunicação? Ensaia e apresenta porque acha que é só assim que pode fazer, e apresenta pro público como se apresentasse sozinho. O interesse é tão-somente o outro artista, o crítico, o jornalista, o curador, pois na verdade são eles que garantem o sustento. Mas pra todos os efeitos, o foco é sim o tal do cidadão comum. Agora, meu filho, se você age com tamanha hipocrisia, não venha chamar os outros de acomodados.

E mesmo na hora de divulgar, em que a comunicação é necessariamente com o público, ele tem toda a razão de se sentir excluído. Porque no cartaz tem uma foto meio borrada de um pé, o nome do troço não diz nada, vai ler no programa um lance do tipo “o trabalho discute o paradigma do corpo-político versus corpo-afetivo, em uma rede de ações que engloba o pensamento contemporâneo no que tange à historicidade da corporeidade”. Francamente, eu não saio da minha casa pra ver isso. E me sinto particularmente menosprezado. O cara tá falando com os amigos dele, com o orientador do mestrado, com os colegas de faculdade, com todo mundo menos comigo. Então não me convida, ué.

Não acho também que tenha que dar tudo mastigado, explicar tudo. Nem acho que se preocupar com a comunicação implique ser pedagógico, chato. Comunicação não é só discurso e discurso não é só lógica. Comunicação pode ser só olhando. Está na vontade de comunicar. Pode ser sensível, pode estar na forma, nas menores escolhas. Vou tomar a liberdade de ser bem cafona e dizer que especialmente essa comunicação, essa entre artista e público, só acontece se tiver algum amor.

E não só por parte do artista, porque, convenhamos, o público também não é nenhum santo. É bem fácil, ainda mais pro curitibano, já chegar com cara de quem não vai gostar e sair falando “não-entendi, não-gostei, isso-não-é-arte, nunca-mais-quero-ver”. Ou nem chegar, que é o que geralmente acontece. Aquela pessoa que quer passar pela vida e sair intacta, não quer se mexer, acha que as coisas estão bem do jeito que estão. Tem muita gente assim e é difícil de lidar, eu sei disso.

E tentar resolver isso acaba pesando mais pro lado do artista, é ele quem tá propondo. Se a comunicação não funciona na hora do “vamo ver”, me parece que uma boa saída é achar outros momentos pra conversar e ver o que tá acontecendo. E esse convite tem que partir do artista, vai fazer o quê?

Sobre isso, eu particularmente ando bem descrente quanto ao famigerado bate-papo ao final do espetáculo, acho que não resolve nada. O problema não tá na proposta, mas em como a coisa é feita. Geralmente, fica o artista lá se justificando, citando suas referências, o público tem que engolir esse domínio tecnológico e sai todo mundo de mau humor. E tem um agravante, porque essas conversas acontecem nos teatros, nos estúdios, nas instituições, nos espaços de apresentação. São lugares em que o público não se sente em casa, não sabe se pode falar, o que pode falar, se pode sentar, se pode ir ao banheiro.

E se deslocar essa conversa pro bar, pro msn, pra casa das pessoas? Pode ser. E deixar o espaço de apresentação um lugar mais afetuoso, mais simpaticão, em que as pessoas se sintam mais em casa? Também. Dá pra pensar em levar essa conversa pras escolas, pro ambiente acadêmico, pra televisão, pro rádio, pra praça pública. Dá pra pensar em um trabalho de formiguinha, ir convencendo aos poucos aquela amiga que faz biologia, o namorado dela que tá fazendo exame pra OAB. Dá pra levantar várias alternativas, mas de novo eu acho que o que mais precisa é de amor que, pra mim, tem muito a ver com generosidade. Acho que não falta criatividade pra pensar em soluções, muitas vezes o que falta é generosidade pra tentar.

Enfim, falei demais, desculpa aí.

* Gustavo Bitencourt mora em Curitiba, Paraná. É performer, designer gráfico, programador, redator, tradutor, entre outras várias coisas. Em 2004 foi bolsista da Casa Hoffmann, onde foi co-curador e co-organizador do Ciclo de Ações Performáticas. Em 2005, dirigiu Hamlet, Príncipe da Dinamarca. É integrante do coletivo Couve-flor Minicomunidade Artística Mundial. Em 2007 integrou dois projetos de pesquisa recebedores do prêmio Klauss Vianna: O que me move a mover, em colaboração com Michelle Moura e Elisabete Finger, e o solo Bife, com a colaboração de Wagner Schwartz, Octávio Camargo, Fábia Guimarães e Ricardo Marinelli, que estreiou em 2008.