Os mercados da dança | Dance labour markets

A palavra “mercado” no título deste texto tem um sentido clássico – espaço, físico ou conceitual, onde se encontram alguém que deseja determinado bem ou serviço e alguém que o oferece. Este encontro pode ou não ocorrer em troca de remuneração – ou seja, estamos falando de algo em sentido bem estrito, distante da idéia que os neoliberalismos vêm tentando nos impingir, que transforma os mercados em entidades metafísicas que regem os negócios universais independentemente da vontade humana. Dito isto, vale uma nota sobre o fato de que “mercados” está no plural e “dança” no singular. Mercados, como vimos acima, são realidades concretas. A dança é uma categoria intelectual (abstrata, portanto), de modo que quando falamos em “mercados de dança”, estamos a nos referir, na verdade, de mercados de bens e serviços que nos parecem realizar concretamente aquela idéia de dança – como espetáculos de dança, grupos e companhias de dança, artistas de dança, escolas de dança, projetos de dança, e por aí vai. Alguém pode perguntar se a soma destes mercados não constituiria, em si mesma, um mercado de dança (no singular mesmo). É possível que isso tenha ocorrido algum dia. É possível até mesmo que isso ocorra em alguns lugares do mundo. Mas, no geral, não ocorre hoje. E, principalmente, não ocorre no Brasil. Tomemos como exemplo uma situação possível de convergência entre companhias e escolas. Quando pensamos, por exemplo, a respeito do século XIX, que uma determinada companhia de ballet em Paris (ao lado, a pintura Classe de Ballet, de Edgar Degas) está vinculada a determinadas escolas ou determinados professores, temos um mercado comum para os espetáculos e a formação de bailarinos. A companhia produz os espetáculos que acredita satisfazerem as pessoas que a sustentam, e estas pessoas compram ingressos da companhia ou bancam seus mecenas porque acreditam apreciar o que ela produz, ou acreditam no significado de afirmação social decorrente daquele patrocínio. A companhia busca os bailarinos adequados à produção daqueles espetáculos específicos, tanto no sentido técnico quanto artístico; os professores, em tal estrutura, adquirem prestígio (e, portanto, posição social na comunidade artística e remuneração mais elevada) exatamente por sua capacidade de construir corpos de bailarinos com aquela adequação.

É possível enxergar situação análoga no mundo de hoje? Não. A realidade descrita acima depende, em sua essência, de uniformidades – de estética, de espaços de legitimação dos saberes, de centros de poder. Numa contemporaneidade marcada por diversidade autêntica, aquela realidade é impossível. Temos, então, a condição atual do mercado, um ente fragmentário, no qual instâncias diversas, sociais, políticas, econômicas e culturais, se interferem e sobrepõem. No caso específico da dança, uma das maneiras como este mercado fragmentário se manifesta é a cisão entre os mercados específicos.

Ao discutir os mercados de dança, então, precisamos ter como pressuposto a fragmentação. Quem oferece espetáculos pode ou não oferecer ensino de dança, e o público destes espetáculos não será, necessariamente, o mesmo da escola de dança. Uma instituição pode organizar um festival de dança sem ter qualquer compromisso com a saúde financeira ou artística das companhias do lugar. O público que assiste a um espetáculo porque ele integra a programação de um festival não o veria necessariamente se o mesmo espetáculo fizesse temporada regular num teatro de sua cidade. Órgãos públicos ou instituições privadas de fomento darão recursos a projetos que nunca se realizarão como espetáculos, e nunca alcançarão um público de espetáculos – terão seu próprio público, um público de “projetos de dança” ou de “pesquisa de dança” (clique aqui e leia também a reportagem Mercado acadêmico de dança em alta).

Por trás da palavra “dança”, temos, portanto, pessoas distintas que oferecem serviços distintos a públicos distintos. Todos esses processos se inserem na categoria intelectual “dança” mencionada acima. Se seguissem apenas suas trajetórias paralelas no que se refere àquela idéia de dança, a fragmentação nem ao menos teria conseqüências. O problema é que, fora daquela idéia, os mercados freqüentemente se chocam. Vejamos um exemplo. Suponhamos que o Grupo Corpo tenha programado, na próxima semana, temporada em Belo Horizonte. Nos dias anteriores, sua assessoria de imprensa estará enviando, aos meios de comunicação da cidade, releases e fotos anunciando o espetáculo. Na mesma época, as redações poderiam estar recebendo releases e fotos anunciando as apresentações da escola de dança que o próprio Corpo mantém. Os releases serão bem parecidos – vão trazer datas, horários, preços, lugar das apresentações, sinopses do que será mostrado, fichas técnicas. As fotos serão bem parecidas, mostrarão instantâneos de corpos humanos em posturas que serão decodificadas como “dança”.

O que se esconde por trás dos releases, contudo, é bem diferente. O Corpo é uma companhia profissional. Foi fundado para que uma série de pessoas pudesse criar e executar obras de arte. A escola, mesmo ligada ao grupo, é uma instituição pedagógica de caráter livre. Foi criada para transmitir conhecimento sobre a arte e ensinar sua técnica. Se também produz arte, isso é um efeito colateral de seus processos pedagógicos. Eles poderão ser bons sem este subproduto. Eles poderão ser bons até mesmo se o subproduto não for. A escola de dança realiza-se plenamente apenas no desenvolvimento técnico e artístico de seus aprendizes; a companhia de dança realiza-se plenamente apenas no olhar do espectador. A apresentação ao público faz parte do desenvolvimento daqueles aprendizes, da mesma maneira que o aprimoramento técnico e artístico é essencial à evolução da companhia; mas têm função apenas instrumental, são meios para atingir os fins específicos de cada instituição.

É possível que esta confusão esteja corroendo nossas relações com a arte, com o poder público, com as platéias, até mesmo as relações entre os próprios agentes de todo o processo, artistas ou produtores culturais. Competimos pelos mesmos espaços junto à imprensa. Entramos nos mesmos editais ­- valendo lembrar, aqui, a co-responsabilidade de empresas e poder público, que ao proporem patrocínios genéricos em vez de programas específicos, reforçam ainda mais a confusão. Muitos de nós não fazem idéia do que seja realmente um público, já que as únicas pessoas que precisamos convencer são aquelas que julgam nossos projetos, não aquelas que vão nos assistir. Misturamos relatório de pesquisa com espetáculo. Pensamos que o mundo são os festivais de dança – prática ironicamente generalizada, pois mesmo que sejam distintos os eventos para profissionais e amadores, o público de ambos costuma considerá-los como se fossem “o” mercado. Fazemos toda essa bagunça e depois reclamamos que algumas escolas de dança recebem fortunas como patrocínio, mesmo se não inseridas numa política geral de formação para a dança, ou que eventos amadores recebem boa parte do dinheiro que falta nas companhias profissionais. Não percebemos que nossa visão equivocada de como são as relações de informação, política e economia de nosso próprio trabalho é um dos fatores mais importantes para que a estrutura apresente tais distorções. Se puséssemos alguma ordem na casa, se assumíssemos nossas posições no mundo real (sou professor antes de ser artista, sou atividade-meio antes de atividade-fim, por exemplo), talvez fôssemos capazes, a médio prazo, de corrigí-las – e em algum futuro, voltar a lidar com um mercado mais uno e, portanto, mais racional, eficiente, proveitoso para todos os que dele participam e que o sustentam.

Marcello Castilho Avellar é crítico de arte no jornal “Estado de Minas” e professor na Escola de Teatro PUC Minas

The word “market” in the title of this article has a classic meaning – physical or conceptual space, where there is someone who wishes a certain good or service and someone who offers them. This meeting can happen in exchange for remuneration or not – so, we are talking about something in a very strict sense, distant from the idea neo-liberals have been trying to impose on us, which turns markets into metaphysical entities that rule universal business independently of human will. Having said that, it´s important to point out that “markets” is written in plural and “dance”, in singular. As we saw above, markets are concrete realities. Dance is an intellectual category (therefore, abstract), so when we talk about “dance markets”, we are actually referring to markets of goods and services that seem to concretely fulfill that idea of dance – such as dance shows, dance groups and companies, dance artistes, dance schools, dance projects and so on.

Someone could ask if the sum of these markets could constitute, in itself, one dance market (singular). It´s possible it did some day and it´s possible that it does in some places of the world, but in general it´s doesn´t nowadays and it specially not in Brazil. Let´s take the example of a possible situation of companies and schools coming together. For instance, when we think about the 19th century, some ballet companies in Paris were linked to certain schools and teachers, there was a common market for shows and dancer education. The company produced shows they believed pleased the people who maintained them and these people would buy tickets or play their Maecenas because they believed they appreciated what the company produced, or they believed in the meaning of the social recognition that came with that support. The company seeked adequate dancers for the production of those specific shows , either in a technical or artistic sense; in such a structure, teachers gain prestige (therefore, a good social position within the artistic community and higherpayment) exactly for their ability to build such adequate dancer bodies.

Is it possible to see a similar situation in today´s world? No. The reality described above depends, in its essence, of uniformity – of aesthetics, of spaces for knowledge legitimization, of centralized power. In contemporary times marked by authentic diversity, that reality is impossible. So, we have the current market condition, a fragmented entity, in which diverse instances, social, political, economical and cultural interfere and juxtapose each other. In the specific case of dance, one of the ways this fragmented market manifests itself is the break down of specific markets.

Discussing dance markets, therefore, we must assume fragmentation. The one who offers shows may or may not offer dance education and the public of the show won´t necessarily be the same of the dance school. An institution can organize a dance festival without having any commitment with the financial or artistic situation of the local companies. The public that watches a show because it is part of a festival program wouldn´t necessarily watch the same show if it were part of a regular season in a theater in its home town. Public organisms and private institutions for cultural promotion will provide resources to projects that will never materialize as shows – that will have their own public, a public for “dance projects” or “dance research”.

Behind the word “dance”, we have distinct people, providing distinct services to distinct publics. All those processes can be inserted in the above mentioned intellectual “dance” category. If they followed their parallel courses in relation to that idea of dance, fragmentation wouldn´t have any consequences. The problem is that, outside that idea, the markets usually clash. Let´s look at an example. Let´s suppose Grupo Corpo had a programmed season next week in Belo Horizonte. In the days before the show, press relations send the local media releases and pictures announcing the show. At the same time, newspapers offices will be receiving releases and pictures announcing presentation of the dance school Grupo Corpo itself maintains. The releases will be very similar – they´ll show date, time, prices, venues, synopsis of what will be happening, technical sheets. The pictures will be very similar, showing snapshots of human bodies in positions that will be decoded as “dance”.

What´s hiding behind the releases is a very different situation. Grupo Corpo is a professional company. It was founded so a number of people could create and perform works of art. The school, even though it´s connected to the group, is a free learning institution. It was created to transmit knowledge about the art of dance and teach its technique. If it also produces art, it´s a collateral effect of its teaching process. They could be good without that byproduct. They could be good even if the byproduct is not. The dance school fulfills its purpose just through the technical and artistic development of their pupils; the company can only fulfill their purpose through the eye of spectator. The presentation for the audience is part of the development of those pupils, in the same way technical and artistic refinement is essential to the evolution of the company; however, they have only an instrumental function, they are means for each institution to reach its specific ends.

It´s possible this confusion is eating up our relationship with art, with the government, with audiences, even the relationship among the agents of the process themselves, artists and cultural producers. We compete for the same space in the press. We submit to the same support programs – it´s important to note the responsibility of companies and the government, by proposing generic sponsorship instead of specific programs they reinforce the confusion. Many of us have no idea what an audience really is, since the only people we need to convince are those who analyze our projects, not those who came to watch us. We mix research report with show. We think the world is just dance festivals – ironically, a widespread practice, because even if there are distinct events for professionals and for amateurs, the audience of both consider them to be “the” market. We make all this fuss and then we complain some dance schools get a fortune for sponsorship, even if they are not inserted in a general policy for dance education or that amateur events get most of the resources that professionals companies are lacking. We don´t realize that our distorted view of how the relations of information, politics and economy are within our own work is one of the most important reasons why the structure presents such distortions. If we assumed our positions in the real world (I´m a teacher before I´m an artist, I´m means instead of ends, for example) maybe we could be capable, in a medium term, to correct this and in some future, we could go back to dealing with a market that is more unified and, therefore, more rational, efficient, productive for all those who participate and maintain it.