Os outros possíveis – Um organismo biodigineural

Desde a segunda metade do século 20 até os dias de hoje, o crescimento das extensões digineurais, isto é, nossa capacidade sensitiva-cognitiva através de simulacros tecnológicos, tirou-nos da individualidade. fazendo emergir, através de nossos devires, a multiplicidade que nos compõe. O organismo biodigineural pede ao corpo que se amplie, que se transforme, se multiplique, que seja ubíquo e seja pleno. Essa fragmentação provocada por esse viés evolutivo tecnológico nos obriga a repensar o corpo para além dos seus limites já codificados. Uma singularidade que captura, atualiza e doa, que se deixa levar para uma descodificação indisciplinar onde é atravessada por fluxos, velocidades e intensidades, tramando com o organismo a sua libertação.

Na verdade, considerando uma utopia possível, caminhamos para um corpo indisciplinado onde feminino- masculino-sexualidade-branco-negro-amarelo-vermelho-religiões-ideologias-verdades absolutas , nada existe, são apenas velhos códigosque sustentam esse ultrapassado acordo que chamamos de realidade.

O corpo então se transformou num viajante – alterando a própria concepção de espaço – pois realizando o processo AllQuímíco se transmuta de carbono para silício, experimentando outras superfícies que não só as da pele. Transforma-senum lugar de experimentação – se corta, se fura, se dobra, se procura, se perde, se desmancha, se fragmenta – porque tudo será permitido quando o corpo deixar de existir como forma imposta.

Essa revolução que já acontece nas entranhas do mundo se efetivará pela transformação do corpo que aos poucos, na calada da noite fará nascer, por entre as rachaduras do concreto, pequenas e ainda frágeis raízes que, conectadas nos invisíveis subterrâneos vão, aos poucos, preenchendo com vida as frestas na apodrecida dureza do que se quer imutável.

As artes, as redes, as ruas, as praças já apontam ainda que timidamente, para uma outra forma de vivermos juntos. Não mais os conceitos-verdades. Queremos conceitos-graminha que brotam entre coisas sólidas e se alastram sem direção unindo pontos antes dispersos. A máquina política que inventamos não resiste mais, é risível. O corpo social vai inventar outro corpo político, livre, enredado, sem donos ou patrões. Essas formas de potencias já aparecem como uma possibilidade concreta de uma outra história para a Humanidade. Seremos todos uma outra ficção possível diluídas numa inteligência coletiva. Mais do que políticas públicas, poéticas públicas.

 

Corpo indisciplinado

Corpo maquínico

Corpo informático

Corpo desejante

Corpo…corpo…corpo

Um Xamã flutua no centro de um quarto de hotel em Tóquio enquanto assiste no seu device o corpo nu do velho Ginsberg entoando uma canção como um mantra:

“…Os corpos quentes

brilham juntos

na escuridão,

a mão se move

para o centro

da carne,

a pele treme

na felicidade

e a alma sobe

feliz até o olho –

sim, sim,

é isso que

eu queria,

eu sempre quis,

eu sempre quis

voltar

ao corpo

Em que nasci.”

 

Rubens Velloso é diretor de teatro/ cinema e performer. Nos anos 1970 explorou as diferentes formas de expressão do teatro de vanguarda juntamente com o diretor Joe Chaikin, do grupo americano Bread & Puppet. A seguir, por três anos, trabalhou em pesquisas e montagens de textos clássicos para o Palace Theatre, de Nova York, sob a direção de David George, trabalho esse baseado em linguagens experimentais propostas por Artaud e Grotowsky. É sócio-fundador do Coletivo Phila7 e dirigiu os seguintes espetáculos do Coletivo: Galileu Galilei, Play on Earth, What´s Wrong with the World? WeTudo DesEsperando Godot, Alice através do espelho, A Verdade da Coisa em Si, Occupy all streets, Profanações e Aparelhos de Superar Ausências. Teve vários textos publicados em revistas especializadas como Moringa – Artes do Espetáculo (CCTA-UFPB – Editor José Tonezzi), Revista Antropositivo e no livro Efêmero Revisitado, de Leonardo Foletto.

 

[Foto: Espetáculo Profanações – Êxtase dos começos, com direção de Rubens Velloso. Imagem por Eduardo Fernandes]