Ten Chi / Foto: Ursula Kauffman

Os passos sem Pina

A coreógrafa alemã Pina Bausch costumava desafiar seus bailarinos com perguntas. As respostas determinavam a criação dos movimentos que, depois, viraram espetáculos referenciais para a dança contemporânea mundial. Desde a morte da criadora, em junho de 2009, aos 68 anos, uma pergunta inquieta a formação: para onde ir sem Pina?

Dominique Mercy, coreógrafo alemão que assumiu a direção artística da companhia ao lado de Robert Sturm, silenciou por dois, quase três minutos, ao tentar responder à indagação, feita semana a passada, antes das apresentações finais no Brasil de Ten Chi (Céu e Terra), realizadas sábado e domingo, em Porto Alegre, depois das temporadas no Rio de Janeiro e São Paulo.

“Pode parecer estranho, engraçado, mas penso que Pina está sempre aqui. Continuar sem ela é estranho, repito. Ela não está aqui, mas ela nos deu muitas informações para sermos capazes de continuar com o melhor de cada um. O que temos que fazer é continuar mostrando aquilo que ela criou. É um dever nosso, diante do tesouro que ela deixou”, disse Mercy, de forma pausada, emocionada.

Mercy parecia não saber exatamente o que responder. A afirmação de que, por ora, o Tanztheater Wuppertal segue apresentando a obra de Pina deixa uma fresta para entendermos que, provavelmente, a companhia sediada na cidade de Wuppertal, na Alemanha, se manterá sob a memória das criações de Pina Bausch, que tratou de carregar a cena coreográfica contemporânea com imagens antológicas, chuvas de flores, palcos inundados de água e poesia, movimentos impactantes, arrebatamentos.

“Ela tinha uma sistemática de trabalho rigorosa, sempre pedia que cada bailarino fizesse assistência de suas montagens, observasse tudo, anotasse tudo, então temos todas as referências de todas as coreografias”, explicou Mercy.

Diante do impacto da ausência de Pina no cotidiano da companhia, a questão é, outra vez, como persistir?

“Eu não sei, para cada um dos que estão na companhia chega a ser meio óbvio. Esse legado, este repertório, tem que continuar sendo exibido. São mais de 30 produções”, ponderou Mercy.

Para afirmar que o Tanztheater Wuppertal segue na ativa, Mercy deu como exemplo o agendamento da apresentação de 10 dos espetáculos criados a partir diferentes lugares do mundo, como o Brasil (Água) e mesmo o Japão (Ten Chi), nas Olimpíadas de 2012, em Londres.

Tudo o que o bailarino e coreógrafo afirmam sobre os caminhos da companhia do é a partir do que já foi feito. Mas, a questão se impõe: o que fazer sem a presença de Pina, sua força criativa? Criar novos trabalhos, como e quando?

“Esta é uma grande questão. É muito cedo para dar esta resposta. O fato é que temos que fazer este repertório e fazê-lo bem. Toma tempo e o fato de sermos requisitados tanto quanto antes, nos impõe esta continuidade. Sabemos que vai chegar um momento que deveremos tomar uma decisão. Será um desenvolvimento natural das coisas. Mas é difícil precisar hoje quando e como esta mudança poderá acontecer”.

Em suas falas, Dominique Mercy parece reverenciar o tempo todo a memória de Pina Bausch e suas instruções de procedimentos.

“Tudo o que ela criou era registrado sistematicamente, em livros de anotações, vídeos. Isso tudo depois que a coreografia ficasse pronta. Depois disso, não havia modificações”, explicou Dominique.

Nesta altura, Robert Sturm auxilia Dominique Mercy:

“Ela comprometia muito o grupo. Cada um dos bailarinos tinha uma responsabilidade, além da dança, da atuação. Nós estamos juntos porque sempre trabalhamos em conjunto. Esta é a força da companhia. Ela pode não estar aqui, mas cada bailarino tem a informação que ela deixou”.

Na memória de todos os integrantes da formação estão as nuances da engenhosidade criativa de Pina Bausch, sempre atenta ao entorno e às ações banais, que podiam virar material de trabalho.

“Quando estivemos em Salvador, no processo de pesquisa para Água, num determinado encontro social, Pina observou uma moça vistosa, que jogava o cabelo de um lado para o outro o tempo todo. Isso entrou no trabalho, numa sequência em que as bailarinas estão sentadas no sofá e batem o cabelo como a tal moça fazia”, lembra Mercy, acrescentando: “A Pina queria ver as coisas boas e não o lado clichê ou turístico. Ela dizia ‘porque falar das coisas ruins’. Isto fez com Água, que foi uma coreografia bem-humorada falando sobre o Brasil, sobre Salvador”.

O Brasil está na memória afetiva da companhia, como afirma Dominique:

“A gente sempre quer ir para Salvador, para Bahia (risos). Pina sempre dizia isso (risos). É sempre fantástico estar no Brasil. Temos um grande público aqui e as reações dele é sempre emocionada. Temos uma relação muito quente, calorosa, com o Brasil”.

O bailarino grego Daphnis Kokkinos, que é assistente de direção na companhia, reforçou que humor e densidade são registros fundamentais da obra da coreógrafa alemã.

“Pina era completamente aberta ao novo. As peças poderiam estar mais alegres, mas mesmo assim sempre falaram de algo sombrio de seu universo interior ou de algum acontecimento marcante no mundo, mas nunca, nada foi criado de forma didática ou moralista. Sempre havia uma seriedade no pensamento artístico e coreográfico dela”.

Mesmo centralizando as decisões, Pina Bausch tinha a capacidade de envolver seus bailarinos no processo de criação, como explica a japonesa Azuza Seyama:

Ten Chi / Foto: Ursula Kauffman

Ten Chi / Foto: Ursula Kauffman

“Eu sou relativamente nova na companhia. Estou há 10 anos. Para mim sempre foi uma grande chance de poder contribuir com olhares diferentes. Ela sempre envolvia a todos e dava voz aos dançarinos, mas sabia o que queria. Se não conseguíamos fazer, ela ensinava ou ela mesmo atuava. Quando Pina me colocava num espetáculo, após muitos ensaios, sabia que estava pronta. Às vezes, nem acreditava que estava lá”.

Um sol a iluminar

A bailarina mineira Regina Advento, 45 anos, que está no Tanztheater Wuppertal há 10 anos, era chamada de ‘sol tropical’ por Pina Bausch. Como os demais integrantes da companhia, ela ainda está em processo de elaboração da perda da coreógrafa. Lembra o momento em que a notícia chegou e o impacto dela:

“Estávamos em turnê na Polônia, em Varsóvia. O cenógrafo Peter Pabst chegou dizendo que ia dar uma notícia que ia mudar a nossa vida a partir daquele momento. E foi isso que aconteceu. Foi como um apocalipse. Para mim foi um choque, pois não participei da última produção que ela fez em parceria com o Chile, tinha feito somente a anterior, Sweet Mambo, e estava há muito tempo sem vê-la. Nos cruzamos apenas duas vezes antes da morte dela”, lembra Regina.

A relação com Pina foi, e ainda é, mesmo sem a presença física da coreógrafa, uma construção marcada por um processo de investigação artístico-pessoal, marcado pelas constantes perguntas que a coreógrafa fazia aos seus bailarinos.

“Foi e continua sendo uma relação curiosa. Ela fazia sempre a mesma pergunta, mas de forma diferente. Uma das últimas perguntas que ela me fez foi algo como ‘mostre alguma coisa que você nunca mostrou’. É algo como ‘ir além dos seus limites’. Pina era muita forte, ela ia sempre além dos limites. Tenho um pouco disso também: sou ciosa, estou aberta a novidades, a experimentos”.

Não tão veladamente como a sensação que perpassa ao ouvir os demais integrantes da companhia, Regina fala sobre a perspectiva, ou temor, do fim do Tanztheater Wuppertal depois da morte de Pina:

“Claro que quando a Pina morreu ficou uma insegurança que atingiu todo mundo. A gente não sabia o que aconteceria com a companhia, que é ligada à cidade de Wuppertal. E Pina era a chave da formação. Como seguir sem a coreógrafa? O que nos uniu foi a responsabilidade de manter a companhia viva. Cada um dos bailarinos e demais integrantes tomou isso para si. Porque a qualidade depende de um todo. O primeiro ano foi meio experimental. Todo mundo estava de olho na manutenção da qualidade do repertório. E acredito que já superamos isso, mostramos que podemos manter esta qualidade, manter o trabalho vivo. Até quanto tempo é a pergunta, a questão. Vai chegar a um ponto que algo deve acontecer”.

O processo ainda é delicado, de reconstrução mesmo:

“Desde a morte dela, cada bailarino tomou para si a responsabilidade de manter vivas aquelas informações que Pina dava a cada bailarino. Robert e Dominique solicitaram a cada um que escrevesse isso agora. É uma forma destas informações não se perderem, de manter isso vivo, caso estas informações sejam necessárias daqui por diante. No método de criação, era preciso sugar as informações (como que degluti-las), transformar isso, me apropriar disso para depois devolvê-lo artisticamente. É algo delicado, mas fundamental no processo”.

Além de se manter em turnês de repertório, os caminhos da companhia ainda são, de fato, nebulosos.

“Não sei quais são os planos individuais do Dominique Mercy ou do Robert Sturm. Dominique não nos disse se quer coreografar. E Robert é diretor de teatro, não coreógrafo. Então, de fato, não sei o que vai acontecer”.

No entanto, segundo Regina, alguns movimentos internos da formação começam a acontecer:

“Neste ano participamos de um festival em Wuppertal, o Ikonoklast, que envolveu 10 bailarinos. Foi um processo coletivo, alguns montaram coreografias, dirigiram, criaram trios, duos, solos. As pessoas estão buscando coisas, mas não tem nada de oficial dizendo que nós, bailarinos, vamos coreografar. Se o primeiro ano foi experimental, este segundo ano a poeira está baixando, os papéis na companhia estão se fixando. Depois da morte da Pina, o marido dela, Ronald Kay, disse para ficarmos tranquilos, pois talvez veríamos novas forças surgindo, novos papéis se definindo”.

Para Regina Advento, os novos caminhos sem Pina Bausch são como um processo orgânico. A metáfora é, mesmo, a da sagração da primavera:

“Tudo foi semeado. Agora vamos ver que flores e árvores vão nascer, que frutos vamos colher”.

Leia também: Companhia de Pina Bausch se apresenta no RJ, SP e Porto Alegre

Um pouco de Brasil em Pina Bausch e Yvonne Rainer

Morre Pina Bausch

# Siga o idança no twitter.