Paisagem deserta, paisagem discreta

No último dia 1 de agosto, tive o prazer de assistir à última apresentação de Paisagem Concreta, espetáculo do coreógrafo carioca João Saldanha em cartaz desde 15 de julho no Teatro I do CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.

A disponibilização de um novo lugar para apresentações de dança na cidade é motivo de celebração e também oportunidade de (urgente) reflexão. Chance de aproveitarmos o pontual para pensarmos a conjuntura – a preocupante e, por que não, indigna situação em que se encontram as pautas para a dança naquela que já mereceu o epíteto de “capital da dança contemporânea brasileira”.

Paisagem deserta

Sentada em meio a uma audiência lotada, não pude escapar de certo saudosismo que me habita há alguns meses, conforme já dividi com os leitores do idança. Não há qualquer teor passadista na cena de Saldanha que justificasse essa minha atitude de espírito. Muito pelo contrário, aliás. O que rói os costados de minha saudade não estava sobre o palco, mas na plateia. Afinal, um teatro cheio de gente interessada pela dança nos faz lembrar de um forte e crescente afluxo de público para o setor que teve lugar na cidade do Rio entre 1995 e 2005 (golden age da dança contemporânea carioca?), movimento que retroage a olhos vistos. Mas como fechar essa conta se os espetáculos que hoje conseguem entrar em cartaz estão quase sempre cheios?

Se contrapuséssemos somente o total de apresentações de uma dada iniciativa de dança aos borderôs diários, a presente coluna seria de comemoração, frente ao nosso evidente crescimento. Infelizmente o que retroage vergonhosamente na cidade é o total da oferta de pautas para a dança que, junto a outros dilemas enfrentados pela produção artística nesta nossa cidade pouco maravilhosa, responde por um relativo encolhimento do setor. E todos sabemos que espaço é moeda, seja pelo aporte financeiro que possa vir junto com a pauta, seja pelo quanto uma pauta de dança realizada movimenta na economia do setor.

Uma retroação no tempo de apenas uma década nos permitiria perceber, por comparação entre o outrora e o agora, o quanto andamos para trás. Naquele momento, a dança abandonava o demérito do horário alternativo e conquistava, acreditávamos que definitivamente, pautas no horário nobre dos teatros. Havia excedente de produção de excelência na cena carioca de dança contemporânea; havia mobilização política do setor em torno de suas necessidades crescentes; havia vontade e responsabilidade política por parte dos gestores de cultura. Noves fora zero, havia cerca de oito espaços teatrais pertencentes às redes municipal (Teatro Carlos Gomes; Espaço Cultural Sergio Porto; Teatro do Jóquei), estadual (teatros Municipal; João Caetano; Villa Lobos; Gláucio Gil) e federal (Teatro Nelson Rodrigues) dedicados a pautar dança.

No decurso dessa trajetória, muitas perdas e algumas conquistas: em 2005, a transformação do Teatro Cacilda Becker em um teatro exclusivamente dedicado à dança, abrigando a exibição de espetáculos cariocas e nacionais, fruto dos editais de ocupação perpetrados pela FUNARTE, sua mantenedora; a inauguração do tão aguardado Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, em 2004; a abertura do Mezanino do Espaço SESC, em Copacabana, que, junto com a Arena e a Sala Multiuso, vem oferecendo o mais significativo leque de oportunidades para mostragem dos trabalhos de dança locais; o Projeto_ENTRE, em exercício desde o início de 2010, no Espaço Cultural Municipal Sergio Porto, sob a direção artística de Joelson Gusson e Daniela Amorim e (mal) financiado pela Secretaria Municipal de Cultura da Cidade do Rio de Janeiro.

Sim, todos o sabemos, a conversa mais séria aqui nessa problemática local é com a municipalidade que, em um inacreditável retrocesso histórico-cultural, desde meados da última gestão César Maia atravessando a atual gestão Eduardo Paes, dilapidou a inédita e outrora invejada política municipal de cultura para a dança centralizada no histórico e extinto Instituto Municipal de Arte e Cultura – RIOARTE.

O perverso silêncio que cercou a extinção do RIOARTE, em 2006, com a anuência dos gestores municipais de cultura em exercício à época do decreto do então prefeito César Maia, é central nesse processo. O RIOARTE sempre foi uma incômoda pedra no sapato da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade do Rio de Janeiro. Sua importância e memória ainda estão para ser escritas e contadas. (Que algum pesquisador ainda o venha a fazer!). Sem dúvida que a iniciativa e a vontade políticas de apoiar a dança carioca, em meados da década de noventa, veio da então Secretária de Cultura Helena Severo, mas a operacionalização e o dinheiro vinha do RIOARTE que, dentro dos quadros municipais, gozava de dotação orçamentária própria e certa autonomia (sem qualquer liberalidade corrupta) na gestão dos recursos, possibilitada pela existência da Fundação Rio que lhe dava suporte e razão administrativas.

Mas a questão que importa mesmo é que o RIOARTE dava um rosto à administração municipal e, principalmente, cumpria ano após ano, desde sua fundação (até onde pude cobrir através de depoimentos de antigos funcionários da casa, ocorrera em 1987 em torno da ocupação de um antigo depósito no Humaitá que viria a se tornar o Espaço Cultural Sergio Porto) sua confessa dedicação à arte contemporânea. O RIOARTE nos abrigava e nos dava ouvido. Não à toa foi lá mesmo que a primeira edição do Panorama da Dança Contemporânea pôde ser gestada por Lia Rodrigues, em 1993, e realizada no Sergio Porto.

A aliança entre o Instituto e seu Espaço Cultural respondeu, ao longo de quase vinte anos de existência, pelo inédito casamento entre pensamento e ação. Comparado com a situação que vivemos hoje, os dinheiros municipais tinham endereço claro e vocação evidente. A reunião de todos os teatros e lonas culturais municipais sob a tutela do RIOARTE, na segunda gestão Cesar Maia, formou a Rede de Teatros do Rio. Com o estreito diálogo entre a militância exercida pela forte geração de criadores de dança contemporânea e o RIOARTE, as pautas municipais para a dança cresceram e proliferaram pela cidade ocupando não somente o Sergio Porto, mas outras das tantas casas daquela que já foi a maior rede de teatros municipais da América Latina.

As pautas corroboravam, como é inevitável, o forte movimento que teve lugar na cidade do Rio de Janeiro naquilo que alguns ousam chamar de era de ouro da dança carioca. Junto com os festivais, as pautas multiplicavam, ao longo do ano, o motivo e a oportunidade para o encontro de uma moçada que gostou, durante um tempo, de se reconhecer e de militar como classe.

Em 2001, o Instituto, em iniciativa inédita no país, criava o seu Programa RIOARTE de Subvenção à Dança Carioca pretendendo dar identidade à iniciativa de apoio financeiro anual a companhias de dança contemporânea que existia sem edital e regularização de critérios desde 1996. Curioso notar que a inauguração do Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, em 2004, para onde migrariam todas as iniciativas municipais na área de dança, que eram muitas, tenha coincidido com a subseqüente extinção dessas mesmas iniciativas e, dentre elas, do Programa de Subvenção. A extinção do RIOARTE, apenas dois anos depois, integra essa débâcle que nada mais desenha do que a operacionalização administrativa de usurpação, por parte da Secretaria, do forte orçamento do instituto (cerca de 25 milhões de reais/ano em 2002, dentre os quais 1,5 milhões foram aplicados em dança). Para quais iniciativas representativas de cultura foi o orçamento do RIOARTE? Falando de maneira mais grosseira, para onde foi o dinheiro do RIOARTE?

A existência do Instituto era a garantia de que as destinações dos dinheiros municipais para a área da cultura teriam que atender à agenda de seu presidente, usualmente uma figura de destaque e representatividade intelectual na cidade, e não a acintosos acordos de balcão, de fundo puramente administrativo e eleitoreiro. O dinheiro tinha pensamento de cultura – moeda valiosa na construção da pertença municipal de um povo. Não à toa, o Centro Coreográfico exista até hoje sem dotação orçamentária própria e, portanto, sem real poder de fogo de fazer frente à insípida, para usar palavra inadequadamente doce, política cultural da Secretaria. Desde sua inauguração a Prefeitura não sabe o que é um Centro Coreográfico, nem o que fazer com ele. Atualmente, ele sobrevive graças à fortíssima vontade e compromisso políticos de sua brava gestora, Carmem Luz, a quem essa coluna presta o devido reconhecimento.

Parece que a municipalidade não soube e não quis atualizar-se diante das mudanças significativas que o processo cultural dinâmico, inequivocamente vivo, queiramos ou não, perpetra com o passar do tempo. No caso da dança, a passagem de uma economia de produção desenhada no formato de companhias de dança supostamente estáveis e centradas na figura de um coreógrafo-diretor à existência de projetos independentes conjugando um ou mais artistas da dança pode ter dificultado ainda mais uma vontade de diálogo por parte do governo que era quase nula.

Trata-se de outra parte importante da história da dança a ser contada: a da forte aliança entre o formato e o ideário da companhia de dança e a construção identitária municipal, projetos em alguns casos perpetrados por governos de direita, que teve lugar em várias cidades ocidentais no decurso do século XX. Não à toa a administração César Maia tenha inventado o polêmico projeto de uma companhia de dança municipal em 2001 (o mantenedor da companhia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro é, apesar do nome, o Estado do Rio de Janeiro). Como projeto municipal, a DeAnima foi pontual e não durou mais de dois anos (a companhia existe até hoje de modo independente). Mesmo não tendo sido centralizada em uma única companhia de dança estatal e sim no apoio a companhias de dança independentes, a política do município do Rio voltada para a dança contemporânea carioca pode ser lida também nesse escopo.

Neste caso, a multiplicação dos atores parece ter implicado, entre outros fatores relevantes, em uma desertificação do cenário. Sem saber exatamente com quais nomes lidava, a política cultural para a dança simplesmente desapareceu. Prova de sua inconsistência política cuja agenda se pautava pelas luta e iniciativa particulares dos criadores que tinham mobilização e contavam com o suporte de um conjunto de tantos outros. À luta e à reivindicação dos artistas teria que vir os subseqüentes pensamento e conseqüência de uma política cultural que se quisesse de estado e não de governo. Mais uma vez é a governabilidade (administração) que toma insidiosa e perigosamente o lugar da desacreditada e necessária política, nesses dias ligeiros que correm, como já denunciou Agamben.

Faz-se necessário que pensemos como a municipalidade pode, e pode porque deve, dialogar com a dança nesse novo panorama. Entrar/estar em cartaz é uma política.

Paisagem discreta

Contando com duas iniciativas federais, o Premio FUNARTE de Dança Klauss Vianna e aporte do próprio CCBB, o bravo João Saldanha, figura tão importante em toda essa trajetória de militância da dança no Rio, e seu Ateliê de Coreografia cumpriram temporada com um espetáculo primoroso.

Dança no CCBB inevitavelmente nos lembra também o festival Dança Brasil que o ocupou anualmente, de 1997 a 2004, e que tanta importância teve na cena cultural brasileira trazendo inúmeras companhias nacionais para o Rio de Janeiro, inexplicavelmente extinto pelo emérito Centro Cultural sem qualquer satisfação à sociedade. Nesse período, Dança Brasil significava a única dança que veríamos no CCBB e, assim mesmo, somente no Teatro II. Essa observação vale pelo relativo demérito da dança na economia de divisão de espaços do CCBB, o que sempre implicou também em demérito orçamentário.

Com Saldanha é a dança que adentra o cobiçado Teatro I com a possibilidade de gozar de sua moeda. Ledo engano daqueles que pensam que a vida de Saldanha ia muito que bem por lá: em meados de agosto, não havia recebido ainda a segunda das três parcelas comprometidas pelo CCBB na então encerrada temporada(!), conforme declarou o coreógrafo em um post no facebook.

Apesar dos revezes, a excelência da letra coreográfica de Saldanha está lá intacta. Sorte nossa que sua força continua de homem grande que é e pudemos, assim, nos renovar a partir de suas invenções sempre cercadas de uma equipe também de excelência, tanto nos arredores do palco, como dentro da cena. Saldanha é um desses coreógrafos que soube se atualizar, sempre coerentemente, no movimento incessante da dança de inauguração de novos modos de fazer e de habitar que pedem sempre por novas economias de produção artística. Na verdade, seu Ateliê de Coreografia já nasceu lá atrás, na década de noventa, com vocação de co-labor entre artistas. Isso não impediu que uma forte gramática de dança ali pudesse ter lugar.

No caso de Paisagem Concreta, o diálogo é com Roberto Burle Marx. Boa desculpa para um inteligente jogo de dança feito de movimento e espaço que opera linhas serpentinas nos levando do indoor do teatro ao outdoor da cidade. Boa desculpa para quem tenta aqui algumas mal traçadas linhas que serpenteiam da cidade de volta à dança. Paisagens.

Para Burle Marx: “um jardim faz-se de luz e sons; as plantas são coadjuvantes”. Diferente dos jardins barrocos do Rei Sol, os de Burle Marx são bem proporcionados no limite tênue entre a planta e a planta, entre a natureza e a caneta do projetista. Nada ali é ostensivo de sua própria presença. Sobretudo a presença humana é discreta. Assim, o jardim é uma ambiência e sobretudo uma experiência. Passeio. Somente em vista aérea é possível vislumbrar o design modernista de um poeta do contorno. É isso o que faz Burle Marx: cria contornos para a nossa experiência da cidade.

Paisagem que não preenche, não enfeita, não decora. Cria dinâmicas, enlaça e nos convida, como passantes, ao movimento. Paisagem discreta que nos envolve sem se dar a notar; retira-nos assim da invisibilidade por uma curiosa manobra que não é ótica, mas cinestésica: Dança.
Mas esse Burle Marx quem me deu a ver foi Saldanha. Aliás, isso tudo é Saldanha que não se deixa propriamente influenciar pelo paisagista, mas cuja obra inverte a seta da influência; pede aquela influência. Diálogo de grandes. Burle Marx não antecede, mas é ali inaugurado. Sua paisagem discreta brota concreta de novo. Lemos uma obra pela outra: intertexto.

Diz o paisagista: ”Influências, todos temos pelo simples fato de que estamos vivos. Seu projeto pode ter sido influenciado pelo trabalho de outro, o que não pode acontecer é ficar parecido com o seu próprio trabalho. A morte de um artista acontece quando ele se torna cópia de si mesmo”. Se assim é, Saldanha insiste, resiste. Sua forte gramática de movimento está lá, mas sem fantasmas – nem o fantasma do velho, nem o fantasma do novo. Vemos no decurso de sua carreira, a trajetória de uma obra que se inventa a cada vez. Não há maneirismos de um sotaque de dança que se repete. Não há, entretanto, a sedução fácil da última tendência. Saldanha tem pressa, não perde tempo com bobagem. Ali nada é fácil. E isso, nos dias ligeiros que correm na dança contemporânea, é um elogio.

Aliás, João Saldanha é certeza de que o requinte da composição não concede artisticamente em suas manobras de secura estética, tão caras ao bom senso de um artista contemporâneo atento aos devires de sua própria obra e aos devires da arte. Saldanha sabe ler-se a partir disso. Ali não há lugar para concessão. Estaremos diante de uma obra de arte. Não fôssemos tão colonizados; não fossem as estruturas de produção artística no Brasil tão irregulares, inconseqüentes, cíclicas, mesmo cínicas, saberíamos que na obra de Saldanha estamos diante de um criador da estatura dos grandes que arranham com seu nomes o céu da história da dança ocidental. Não estou exagerando. Saldanha é desses grandões mesmo.

Uma paisagem de dança se compõe quando se torna inextrincável o espaço, o tempo e o movimento. Por isso, naquela economia de criação, Marcelo Braga (Cenografia) e Adelmo Lapa (Iluminação) são autores. O que resulta do triunvirato é uma ambiência. Um modo de habitar e fabricar estâncias temporárias de dança.

Na Paisagem concreta de Saldanha/Braga/Lapa, o espetáculo se recusa a permanecer como tal em uma precisa operação estética. A dança não é propriamente o objeto do ver, mas o enlace perceptivo que nos arranca sinuosamente da imobilidade da cadeira. Passeamos sentados no lugar. Mas somente depois de termos inicialmente nos deslocado ao palco para observar, através de pequenos buracos, o que se passa por trás da parede que recobre toda a boca de cena do Teatro I. Parede-película. Parede-pele. Não é cena. Não é disso que se trata, nem no começo da obra, nem no seu durante. Vertiginoso objeto do ver que se/me aproxima e distancia em uma inteligente manobra de coordenadas cartesianas às quais adicionamos a 4a dimensão do tempo. Relatividade?

O longo trecho de caminhadas na 2a parte da programação, agora com a boca de cena já à mostra, é duração necessária para ajustarmos a percepção àquela dança. Cinco bailarinos (Celina Portella, Fernando Klipel, Jamil Cardoso, Laura Samy e Vivian Miller) constituem, com seus movimentos, um contorno. Essa é sua assinatura de dança. Mais uma vez, é de criadores fortes que se trata. Como dançar no deserto e ali constituir uma paisagem na qual o movimento não é conteúdo, mas operação de dobradura/curvatura do espaço? O movimento vale pelo que dá a ver da massa de vazios, única dança que ali pode se estabelecer. É necessário um intérprete inteligente para ceder de si o que a composição pede como constituição de um lugar-instalação: abertura de frestas.

É Saldanha que contorna Burle Marx que serpenteia na letra de Saldanha através de um Nelson Brissac parafraseado em outro post do coreógrafo no facebook: “Duas pessoas caminhando delimitam um espaço topológico. Os limites da obra são determinados pela distância máxima que podem manter sem se perderem de vista. A linha de horizonte da obra, o seu campo, é determinada pela possibilidade de manter o olhar mútuo. Esta trama de perspectivas – a articulação dos vários pontos desde os quais ele pode ser visto – constitui o seu ‘horizonte interno’. O observador nunca é estacionário: está sempre em movimento”. (Para consulta ao texto de Brissac: http://www.joycebrandao.hpg.com.br/muros.htm)

É preciso temporalizar o ver para que possamos voltar a habitar o lugar. O nosso lugar. E assim, sermos devolvidos modificados à própria etimologia da palavra teatro: lugar de onde se vê. Precisamente devolvidos à condição de espectadores, podemos, no 3o trecho da programação, voltar a assistir à única manufatura de tempo mais familiarizado com uma dramaturgia: a ação progressiva de montagem, folha por folha, de uma gigantesca e belíssima escultura que ocupará 2/3 do palco. Enquanto isso, nome por nome, cada um dos artistas envolvidos são enunciados pela voz de Saldanha em off que lê a ficha técnica do projeto. Leve ironia de um panfleto discreto que denuncia o nome de uma vontade de dança criada em ateliê. Ateliê de Coreografia.

Uma vez que a ambiência tenha se constituído, eles podem, com ações simples, construir algo que lá permanecerá. Assim, a inteligência corporal dos intérpretes pode então deixar o lugar agora ocupado pela obra. Re-significamos então sua dança pela presença pregnante daquele objeto gigante. Depois de pronta a escultura, eles saem e nos deixam ali assistindo a uma planta.

Depois das operações precisas da composição, podemos agora nos flagrar contemplando uma duração contínua de presentes não mais sucessivos uma vez que nada ali evolui. Aquela natureza é viva pela condição estacionária da nossa observação. Assim, a paisagem valeu pelo que inaugurou em termos de experiência, ou seja, pelo quanto conseguiu persuadir o passante de habitar o lugar. Lembramos então da importância das alianças inteligentes entre dança e cidade na abertura de campos de possíveis na percepção. Isso é política cultural. Assim, diante de uma obra necessária da produção de dança contemporânea atual, temos a certeza da força política de resistirmos, de insistirmos em levarmos à cena nossos espetáculos. Temos também a certeza de dinheiro de cultura bem empregado na construção de processos artísticos que importam.

Depois de Paisagem concreta, vamos ler a cidade de novo: um estado de Rio de Janeiro em desaparecimento.