A Paixão de “Tira meu Fôlego”

Paixão é o tema da novela, do filme hollywoodiano, do anúncio de aromatizador de ar, de inúmeros posts no Facebook e, recentemente, das propagandas que envolvem a tão discutida Copa do Mundo no Brasil.

Neste contexto de tantos exemplos espetacularizados, seis criadores da dança contemporânea se reuniram em São Paulo para, literalmente, provar que estão loucamente apaixonados.

Tal tarefa é o mote que envolve “Tira meu Fôlego” – concebido e dirigido por Elisa Ohtake que também atua ao lado de Rodrigo Andreolli, Sheila Ribeiro, Raul Rachou, Cristian Duarte e Eduardo Fukushima.

Para provar suas respectivas paixões, o elenco se desdobra em solos, onde dançam ao som de hits românticos, correm, saltam, pedem ajuda, falam sobre seus sentimentos e descrevem as alterações físicas sofridas com as ações extravagantes feitas durante o processo de criação do trabalho.

A escolha em se provar apaixonado se intensifica na dramaturgia cênica através de uma questão embutida nas entrelinhas: que tipo de apatia abateu o cenário profissional das artes cênicas ao ponto de ser preciso voltar às emoções mais básicas como a paixão?

Essa é uma questão implícita para quem acompanha a produção de dança e já ouviu constantes reclamações sobre os resultados tidos como distanciados, ou mesmo, indiferentes ao público – o que alimenta um visível tédio que cada vez mais vem se tornando crônico e imunizante.

No início do espetáculo, escrito em letreiro luminoso, lê-se “Estudos sobre Vitalidade”. Frente a ele, todo o elenco realiza uma coreografia executada com o mínimo esforço e total desânimo declarado em suas expressões. A proposta é um espelhamento caricato de uma situação real na dança e se aproxima do que os bufões (ou bobos da corte) realizavam quando divertiam a plateia por seu tom cômico/exagerado ao mesmo tempo em que faziam críticas ao comportamento social.

Dessa forma engenhosa o espetáculo aborda a problemática do tédio e trata também das emoções capturadas pelo capitalismo que adapta as subjetividades ao mercado. Ao apresentar conhecidas formas de marketing da paixão diluídas em cenas ambíguas, exibem padrões de “como” é estar apaixonado não para apenas afirma-los, mas sim, bagunça-los em um desnudamento dos significados delimitados pela lógica do consumo.

“Tira meu Fôlego” é uma dança que delata um estado crítico de anestesia e testemunha com bom humor a ausência de ânimo e a falência dos recursos sensíveis nas relações. Irônicos, os bailarinos traçam um caminho inquietante na contramão do que foi patenteado como emoção e buscam ações energéticas diante da plateia que ri de suas próprias mazelas.

Como a paixão acontece na contemporaneidade? Talvez não aconteça como em “Flash Dance” ou “Footloose” e, certamente, não se define pelos discursos fáticos nos “Big Brothers” da vida midiatizada.

Já em “Tira meu Fôlego” a paixão é profundamente desesperada, pois é um apelo vindo de um lugar que se transformou no limbo das reclamações sem resolução. À medida que se desenrola, o trabalho revela-se vigoroso por zombar de sua situação de desconforto. Logo, dá fôlego, mais do que tira.

Escolher não ser imune é indispensável no campo da arte que, por excelência, é um dos melhores terrenos para se testar possibilidades de resistência contra o tédio, podendo livremente recorrer ao cinismo, à ironia, ao ridículo.

Portanto, é vital continuar injetando mais e mais oxigênio na cena artística para, dessa forma, redescobrir a paixão a ser notada em sua fisicalidade bruta, sem se apoiar em nenhum estatuto de autenticidade.

Flávia Couto

Crítica, curadora e consultora de dança. Como crítica, colabora para veículos como o jornal Folha de S.Paulo e o site idanca.com. Desde 2012, é curadora de dança no Cultura Inglesa Festival e, também, integra a APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte).
Com graduação em Comunicação das Artes do Corpo nas habilitações de Dança e Performance pela PUCSP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), atualmente, cursa mestrado em dança na UFBA (Universidade Federal da Bahia).

 

“Tira meu fôlego” aparece também em crítica da Helena Katz, no Estadão. Confira aqui