Panorama 2008 – O movimento como motor unificador

Talvez não seja evidente porque é que Qwerty, apresentado a 4 de Novembro no Teatro João Caetano, é um espectáculo tão raro numa paisagem coreográfica que vive embriagada pela tecnologia, esquecendo, a maior parte das vezes, de criar um diálogo efectivo e evolutivo entre esta e o movimento. Ora, Qwerty é raro precisamente porque não parte do movimento para chegar à tecnologia, mas antes inverte esse caminho numa surpreendente gestão dos conflitos que tendem a surgir e que são, normalmente, fatais.

A sua ironia na desconstrução das potencialidades da técnica, através de um movimento fechado sobre si mesmo ao contrário de um mais amplo, como se suporia pela abertura de hipóteses dadas pela realidade virtual, pode ser confundida com ingenuidade e, na verdade, acaba por trazer alguns problemas no remate final. Mas é esta ambiguidade, e a extraordinária capacidade em fazer jogar no mesmo tabuleiro os pontos fortes e fracos quer do movimento quer da tecnologia, que dá à peça a inusitada ambição de não querer criar um terceiro corpo, mais híbrido e volátil como, geralmente, ocorre em propostas do género. Dessa forma, e mesmo que possamos compreender tratar-se de uma estratégia segura – o movimento apresentado é mais rico em termos dramatúrgicos que o vídeo, por exemplo, o que poderíamos considerar como conceptualmente tendencioso -, é-o porque sabe encontrar o ponto de ignição mais adequado.

O enfoque de Ishiyama está no palco, em vez de no ecrã. É a partir do palco, e do movimento dos bailarinos, que o vídeo é activado, oferecendo linhas monocromáticas que atravessam a cena, formas geométricas criadas com efeitos de luz e fortes jogos de contraste entre a abertura do movimento  e o formalismo da tecnologia.

Sem narrativa nem moral, Qwerty assenta solidamente no rigor e da precisão dos movimentos criados por Yuzo Ishiyama, bem como no justo diálogo entre este, o vídeo, a música, oferecendo-nos uma coreografia que explora o movimento como unificador, em vez de o disseminar e procurar réplicas, mais ou menos virtuais, noutras disciplinas. Em Qwerty as longas e geométricas sequências procuram equilibrar o rigor e a precisão da técnica com a estratégica ruptura, sempre cumulativa e nunca instantânea, e é possível encontrar, no mesmo plano, uma série de “paisagens coreográficas” límpidas e visualmente deslumbrantes, e outras mais experimentais, mais “sujas” e até mesmo erráticas, explorando, à semelhança do que acontecia com Bruno Beltrão em H3, o rigor e consistência do movimento e das possibilidades de construção dramatúrgica.

Esta estrutura bipolar sobrepõem-se a uma exploração vazia do espaço e do tempo comandada pela tecnologia que surge aqui não com a intenção de substituir o que o movimento real não consegue fazer, mas para o incentivar a expor toda a sua força e consistência.

O autor viajou a convite do Panorama de Dança 2008.

Entre no canal do Panorama no youtube e assista a trechos de Qwerty.

Textos anteriores:
Um gesto que seja nosso (Crítica do espetáculo Umwelt da Cie. Maguy Marin)
Uma nova territorialidade (crítica de H3, de Bruno Beltrão e Grupo de Rua de Niterói)