Panorama em expansão | Expanding Panorama

Ao refletir sobre a atuação dos intelectuais, ou de qualquer profissional em uma determinada relação espaço-temporal, o sociólogo francês Pierre Bourdier criou o conceito de campus, consagrando instâncias de divulgação para as idéias que ganham assim o status de bens simbólicos capazes de se manter de maneira autônoma. Aproximar este viés bourdieriano do Panorama RioArte de Dança é apontar o campus que este festival teve a capacidade de instituir ao atuar como elemento organizador e divulgador de idéias no cenário da dança contemporânea não só carioca, mas também, e por que não, nacional. Uma tarefa que, a cada ano, vem desempenhando com vigor renovado, instituindo modos e espaços de intenso diálogo e articulação entre criadores, intérpretes e pesquisadores. Em sua 12ª edição, o festival firmou mais uma vez seu compromisso com a discussão da criação contemporânea, instigando artistas e platéia acerca de um debate que não está restrito aos limites do palco, ou de um teatro, mas se expande além de fronteiras pré-estabelecidas.

Este ano, o Panorama ocupou outros espaços além dos já tradicionais Teatro Carlos Gomes e Espaço Cultural Sergio Porto, com espetáculos acontecendo no Espaço SESC, em Copacabana, e nos arredores da Praça Tiradentes, ao ar livre, como a divertida performance-instalação da alemã Angie Hiesl. Além desses, o Teatro da Maison de France também foi ocupado com a residência do coreógrafo francês Christophe Wavelet, em que criadores brasileiros experimentaram novas propostas para reflexão e improvisação. Outro projeto de intercâmbio foi a recriação de Finale, de Robert Pacitti, com 15 artistas locais.

O público lotou todas as sessões do festival, muitas vendidas antecipadamente, mostrando que a relação que vem sendo estabelecida ao longo destes doze anos baseia-se na confiança da apresentação de uma programação de qualidade. Mais do que isso, esse mesmo público tem noção de que assistir aos espetáculos do Panorama significa sair do tradicional lugar de simples espectador, exercitando também a função de pensar a dança. Não à toa, a relação que se estabelece entre obra e platéia interfere diretamente no modo de fruição de cada coreografia, gerando outros estados que não apenas o de incômodo ou irritação diante do estranhamento a uma determinada obra. O espetáculo Nom donné par l’auteur, de Jérôme Bel, em 1999, e as platéias-foyer realizadas nos anos seguintes podem ser apontados como marcos na transformação desta relação.

A emergência de um modo próprio de operar do Panorama configura-se portanto como uma lógica que visa não apenas fazer circular a informação mas também, e principalmente, intervir na formulação desta. A curadoria de Lia Rodrigues e Roberto Pereira, as residências coordenadas por Nayse López, e o projeto Os Novíssimos, criado e coordenado por Roberto Pereira, apostam nestas ações diretas, ampliando dessa maneira as possibilidades de diálogo entre distintos modos de pensar e fazer dança. A transformação é inevitável, tanto para aqueles que participam quanto para os que assistem.

A noite dedicada ao hip-hop, com curadoria de Bruno Beltrão, explicitou em cena esse intercâmbio de linguagens. Tomando como ponto de partida as seguintes questões: “como provocar e estimular novas propostas a partir do hip-hop? O que ele tem a somar no processo criativo de criadores contemporâneos? Para que propor uma aproximação entre dança de rua e dança contemporânea?”, Beltrão deixou claro que os limites entre estas duas maneiras de se fazer dança encontram-se cada vez mais borrados, gerando um entendimento de corpo que extrapola qualquer tipo de fronteira aleatoriamente imposta. A conversa com a critica Helena Katz, que se seguiu ao espetáculo, mostrou um salutar e importante questionamento acerca destes limites. Refletir sobre os rumos a serem seguidos pela dança contemporânea torna-se assim uma condição para seus futuros desdobramentos.

Temas como memória e identidade estiveram presentes em um grande número de trabalhos, refletindo, talvez, o momento singular de busca por um corpo que pode passar por uma vasta gama de entendimentos, indo do pós-moderno ao pós-humano, colocando em questão a própria idéia de representação. INtime/EXtime, de Alain Buffard, fala sobre esse processo, criando corpos que se reconhecem não apenas por sua fisicalidade humana, mas também pelas formas inusitadas que podem alcançar. Já o solo Good Boy, também de Buffard, coloca em cena o cotidiano do homem para reorganizar-se como tal.

Les applaudissements ne se mangent pas, de Maguy Marin, por exemplo, fala de corpo no coletivo para buscar um reconhecimento, elaborando uma identidade que procura afirmar-se tanto cultural quanto politicamente. Sem ter como ficar imune, o espectador partilha estes estados de tensão, inteligentemente evocados pela trilha sonora e cenografia. Ainda sobre a idéia nuclear de identidade, a companhia de Cabo Verde, Raiz de Polon, com CV Matrix 25 e Duas sem Três; e os trabalhos Haikus, de Sonia Baptista, e Um privilegio característico, de Tânia Carvalho, ambas de Lisboa, evocaram de maneira ora delicada ora bem humorada as muitas facetas que compõem uma mesma identidade.

Denise Stutz, em seu belo e comovente De cor, expôs com inteligência os muitos questionamentos presentes em sua dança, apresentando um corpo-memória que não se solidifica em um processo estéril de simples citação do passado, mas que se atualiza constantemente, tomando o presente como fonte de inspiração para suas memórias. Andréa Bergallo mostrou maturidade, segurança e competência em seu solo Na mão dos pés, criado em parceria com Sandra Meyer, fazendo da memória passagem para a tomada de consciência do corpo. Trabalhos como Jorge, de Gustavo Ciríaco, Intervalo, de Frederico Paredes, e Deslocado-Relocado, de Cláudio Lacerda, além do amadurecimento de suas propostas, demonstram inteligentes maneiras de se organizar cenicamente, guiando o espectador em interessantes caminhos a serem trilhados.

A noite dedicada a Minas Gerais trouxe os criadores-intérpretes Lakka e Adriana Banana. Em Dúbbio, o jovem Lakka mostra grande vigor, mas ainda com a tarefa de aperfeiçoar suas idéias. Adriana Banana, já conhecida do público carioca, apresentou Corpo de Referência, três diferentes momentos de sua investigação coreográfica. Cabe ainda destacar na programação a noite Criadores-Curadores do Panorama, este ano com curadoria de Paulo Caldas, a exibição do belo e instigante filme de dança As cinzas de Deus.

Mais uma vez, o Panorama RioArte de Dança mostrou um amadurecido e inteligente trabalho de curadoria, elegendo a diversidade como ponto de partida para a elaboração de sua programação.Translation by Sarah Hyde, Ccaps Translation and Localization.

In his reflections on the behavior of intellectuals or any professional in a determined space-time relationship, the French sociologist Pierre Bourdier created a concept called campus, dedicating instances of publication for ideas that would therefore earn the status of symbolic goods capable of remaining autonomous. To approach this winding Bourdierian path to the Panorama RioArte de Dança is to show the campus that this festival was able to institute when acting as an organizing element and disseminator of ideas in not only the contemporary dance scene of Rio de Janeiro but also in the national dance scene (and why not?). It is a duty that, each year, is performed with a renewed vigor, instituting methods and spaces of intense dialogue and articulation between creators, interpreters and researchers. In its 12th year, the festival once again fulfilled its commitment to the discussion of contemporary creation, encouraging artists and the audience to participate in a debate that is not restricted to the limits of the stage or a theatre, but which instead expands beyond the pre-established boundaries.

This year, Panorama occupied other spaces in addition to the traditional Teatro Carlos Gomes and Espaço Cultural Sergio Porto with performances taking place in Espaço SESC in Copacabana and outdoors around Praça Tiradentes as an entertaining performance-installation by the German Angie Hiesl. In addition to these spaces, Teatro da Maison de France was also occupied with the visit of French artist Christopher Wavelet, during which Brazilian creators experimented new proposals for reflection and improvisation. Another project of interchange was the recreation of Finale, by Robert Pacitti, with 15 local artists.

The public filled all the festival sessions, and many performance were sold-out beforehand, demonstrating the firm relationship that has been established over these past 12 years. It is a relationship based on the guarantee that one will receive quality programming. Even more importantly, this same public has the notion that watching the Panorama performances means leaving the traditional place of a simple spectator. Instead, the audience is transported, exercising the function of “thinking” the dance. The relationship established between the performance and the audience interferes directly in the enjoyment of each choreography, allowing the spectators to feel something more than uncomfortable or irritated because they do not understand a certain performance. The performance Nom donné par l’auteur, by Jérôme Bel in 1999 and the audience-foyers (talks with the artists) performed during the following years can be highlighted as milestones in the transformation of this relationship.

The emergence of the Panorama’s unique organization therefore aims not only at circulating information but principally at intervening in the formulation of such a circulation. The curatorship of Lia Rodrigues and Roberto Pereira, the residences coordinated by Nayse Lopez and the Novíssimos Project (“The Newest Ones”) created and coordinated by Roberto Pereira risk these direct actions, thus expanding the possibilities of dialogue between different ways of thinking and performing dance. The transformation is inevitable for both those that participate and those that watch.

The evening dedicated to hip-hop, curated by Bruno Beltrão, transformed this inter-exchange of languages into performance. It took the following questions into consideration: “how to provoke and stimulate new proposals through hip-hop? What can it add to the creative process of contemporary creators? Why propose an approximation between street dance and contemporary dance?”. Beltrão made it quite clear that the limits between these two manners of creating dance are increasingly blurry, generating an understanding of the body that extrapolates any type of boundary that is conditionally imposed. The conversation with dance critic Helena Katz that followed the performance demonstrated a salutary and important questioning of these limits. To reflect on the directions to be taken by contemporary dance thus becomes a condition for its future discoveries.

Themes such as memory and identity were present in a large number of performances, perhaps reflecting a singular moment of the search for a body that can pass through a vast range of perceptions, from the post-modern to the post-human, and calling into question the very idea of representation. INtime/EXtime, by Alain Buffard, elaborates on this process, creating bodies that are recognized not only for their human physicality, but also for the unusual forms that they can take. The Good Boy solo, also by Buffard, puts the daily life of man on center stage as a form of reorganization.

Les applaudissements ne se mangent pas by Maguy Marin, for example, describes the body in the collective sense in a search for recognition, elaborating an identity that it aims to affirm both culturally and politically. Without a means to stay immune, the spectator shares these states of tension, intelligently evoked by the scenic and sound tracks. Using a nuclear idea of identity, the Cabo Verde company, Raiz de Polon, with CV Matrix 25 and Duas sem Três; as well the performances Haikus, by Sonia Baptista and Um privilégio característico, by Tânia Carvalho, both from Lisboa, evoke the many facets that compose a single identity in a delicate and humorous manner.

Denise Stutz, in her beautiful and moving work De cor , intelligently exposes the many questions present in her dance, presenting a body-memory that does not solidify into a sterile process of simply citing the past. Instead, it is constantly renewing itself, using the present as a source of inspiration for memories. Andréa Bergallo demonstrated maturity, assurance and competency in her solo performance entitled Na mão dos pés , co-created with Sandra Meyer. The performance uses memory as a passage for raising body awareness. Artistic works such as Jorge, by Gustavo Ciríaco, Intervalo, by Frederico Paredes, and Deslocado-Relocado by Cláudio Lacerda, in addition to the maturity of their proposals, demonstrate intelligent ways of organizing scenically, guiding the spectators along the many interesting paths to be threaded.

The evening dedicated to Minas Gerais brought the creator-interpreters Lakka and Adriana Banana. In Dúbbio, the young Lakka demonstrates great vigor while always striving to perfect her ideas. Adriana Banana, already well-known among the Rio de Janeiro public, presented Corpo de Referencia, which displayed three different moments of her choreographic investigation. Also noteworthy this year was the Creators-Curators night curated by Paulo Caldas with the exhibition of the beautiful and provocative dance film As cinzas de Deus (The ashes of God).

Once again, the Panorama RioArte de Dança demonstrated a mature and intelligent job of trusteeship, choosing diversity as a point of departure for the development of its programming.