Para não esquecer

Adaptação de matéria publicada na revista Continente Multicultural, Ed. CEPE, Pernambuco, número 79, Julho de 2007.

Recife,Teatro Santa Isabel, 1986, abrem-se as cortinas para a apresentação da ópera de Carlos Gomes, Lo Schiavo (O Escravo- 1889), produzida pela Fundação de Patrimônico Artístico e Histórico de Pernambuco – Fundarpe, com coreografia de Dayse Caraciolo (ex-bailarina do Balé Popular do Recife e fundadora do grupo de dança Retornança) e direção de Lúcio Lombardi.

No elenco, entre os “índios” da trama ambientada no Rio de Janeiro colonial, entra em cena o então bailarino, e hoje apresentador de programa de televisão, Roger de Renor. Mais um passo e o cineasta Lírio Ferreira aparece em 1993 como diretor do vídeo Elástico, em que dançam Maria Eduarda Gusmão e Márcia Tinoco da extinta Cia. Cais do Corpo, considerado primeira videodança do Recife.

Hoje estas cenas podem parecer improváveis, mas basta revirar um pouco as gavetas do esquecimento para comprovar que são reais. A necessidade de ter acesso a registros como estes, motivou Valéria Vicente a pensar na construção de um acervo sobre a memória da dança do Recife, compreendendo também como campo de estudo a Região Metropolitana da cidade. Liana Gesteira e Roberta Ramos juntaram-se a ela para coordenar o audacioso projeto. A imensidão do objeto pedia um recorte no tempo e as décadas mais decisivas foram escolhidas como foco. Assim surgia, em 2004, o acervo digital RecorDança, documentando a memória da dança que se fez no Recife, de 1970 a 2000.

A equipe cresceu e conseguiu importantes apoios como a consultoria do Itaú Cultural, a parceria com a Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ, além do incentivo do Funcultura (Fundo de incentivo à cultura de Pernambuco). “Desde o começo acreditávamos que só colheríamos os frutos do Recordança a longo prazo. E que somente depois de alguns anos perceberíamos a real importância da preservação desta memória, por se tratarem de informações ainda tão recentes. Mas a receptividade das pessoas nos surpreendeu, fazendo nosso trabalho render mais e alcançar também projeção nacional”- conta Vicente. No entanto, o acervo em CD entregue a quatro instituições públicas culturais do Estado ao final da primeira etapa, não conseguiu suprir a crescente demanda e alcançar os objetivos propostos. Então, uma nova fase foi planejada e realizada, graças mais uma vez ao apoio do Funcultura, incentivador do RecorDança On Line, que será lançado no dia 23 de julho.

Os capítulos desta história se juntam agora em forma de website, construído pelos técnicos Hélder Silva, Emerson Diniz e Max Timóteo, com os pesquisadores Tâmisa Vicente, Duda Freyre, Carlos Ferrera, Leda Santos e Marcelo Sena (revisão de texto). O ‘passo-a-passo’ da dança do Recife é contado agora na rede, por 99 registros em vídeo entre espetáculos e coreografias; 170 impressos, entre programas e cartazes; 150 fotografias e 24 entrevistas. No quesito raridade encontramos ‘pérolas’ como o vídeo da coreografia do tcheco, radicado no Recife desde a década de 80, Zdenek Hampl (falecido em março deste ano): A Festa da Pedra (1989). Valéria Vicente diz que só depois do lançamento da primeira fase em 2004, teve acesso a este importante material, que revela o estilo de dança moderna que Zdenek propunha e que teve uma enorme contribuição na formação das companhias profissionais de dança da cidade. Outra relíquia é um LP gravado pela Rozemblit, uma doação da professora Edith Barros, contendo aulas de Vaslav Veltchek, na época residente no Rio de Janeiro, para os bailarinos do curso de ballet, que funcionava no Teatro Santa Isabel, na década de 60.

Mas para que serve tudo isso? E o que fazer com estes vestígios do passado? Liana Gesteira, coordenadora do RecorDança On Line, arrisca uma possível resposta quando, falando de sua experiência, diz que “trabalhar com a memória da dança faz com que a gente reflita sobre a nossa realidade a partir do que vimos no nosso próprio passado e isso pode ajudar os criadores a pensar novas formas de se fazer dança” ou “de estar em cena, de atuar”, como relata Vicente.

Esta preocupação em construir uma história da dança no Brasil é o combustível de muitos pesquisadores, gente que não compreende a separação, que vigora no país, entre criação e memória e para quem cada capítulo é importante, imprescindível, inesquecível. Neste time está o mineiro Arnaldo Alvarenga (UFMG, Belo Horizonte), eleito líder da instituição que representará todos os pesquisadores de dança do Brasil (chamada provisoriamente de Associação dos Pesquisadores de Dança do Brasil). Há mais de 10 anos, Alvarenga assumiu a missão de descobrir, colecionar e sistematizar as lembranças da dança de Minas Gerais e agora parte com seu “baú” em busca de mais capítulos desta história da dança brasileira, inicialmente nos outros estados do Sudeste e na Região Sul.

Estas lembranças e as estratégias para não esquecê-las estiveram em pauta no I Encontro de Pesquisa sobre Memória da Dança Brasileira em Minas Gerais (projeto Fóruns Por Que Dança? – coordenado por Jacqueline de Castro, em Maio), que reuniu profissionais de dança de todo o país com o anfitrião Alvarenga, em Belo Horizonte. Valéria Vicente, coordenadora geral do RecorDança; professor Arnaldo Siqueira (UFPE), um dos pesquisadores pioneiros de história da dança do Recife; Mônica Lira, Marília Rameh, representando o Movimento Dança Recife, e a bailarina Helijane Rocha, do Grupo Experimental (…e esta jornalista que vos fala…), foram a voz de Pernambuco no evento.

Proteger estes acervos para que nenhum arquivo seja involuntariamente esquecido ou intencionalmente queimado é a razão que impulsiona Alvarenga. “É muito perigoso tentar apagar a memória para querer que o mundo comece a partir de quem a mandou queimar. Se a gente está aqui hoje, é porque alguém esteve antes. Precisamos mergulhar nesse lugar da memória sim, buscar inspiração no passado, mas alavancando alguma coisa para frente”- defende o pesquisador.

Mas como tornar inesquecível um espetáculo, o que é que faz com que uma dança se torne memória? Pensar a dança como patrimônio cultural é entendê-la passível de registro, inventário, tombamento, e necessitando de todas as salvaguardas para ser preservada. E quando partimos desta idéia nos deparamos imediatamente com um desafio paradoxal que ronda todos os bens imateriais e particularmente a dança, já que sabemos dos limites impostos pela especificidade desta linguagem que apesar de ter o corpo, tão palpável, como matéria-prima, tem o movimento, tão efêmero e fulgás, como idioma.

Cabe aqui mais um ‘alerta’ de Alvarenga: “esquecer voluntariamente é diferente de ser privado da informação”. E é destes mosaicos de informação que se fazem os arquivos para imortalizar o que é naturalmente passageiro, para saber de onde se veio (e por quais caminhos) e, conseqüentemente para onde se vai.

A memória esteve presente não só nas falas dos debates como nos corpos dos bailarinos que se apresentaram no Encontro, afinal pode-se dizer que é o corpo o primeiro acervo da dança. No espetáculo Por que tão solo?, a intérprete criadora Gabriela Christófaro, da Marcenaria Centro de Criação Cênica, de Belo Horizonte, coloca em cena toda a discussão sobre a importância de preservação desta memória. Além de dançar com imagens projetadas e fotografias de outros bailarinos que construíram e ainda constroem a história da dança em Minas Gerais, ela incorpora literalmente estas informações e oferece aos olhares de hoje os caminhos do ontem, como se trouxesse pra fora os genes de dança daquele lugar. Por que tão solo? nos faz ver que afinal não somos tão “solos”, trazemos no nosso próprio corpo uma coleção múltipla de referências.

Na realidade, o Brasil ainda sofre com a dissociação que há entre criação e memória e alguns coreógrafos, em busca da vanguarda, do novo, destinam as “histórias” a um “arquivo morto” (como se esta memória não estivesse no próprio corpo, por mais que queiram negá-la) e, assim, perdem preciosos elementos do passado que na certa enriqueceriam a produção no presente, tornando-se alicerces para a construção do futuro. Estejamos nós conscientes ou não deste fato, somos ‘museu vivo’ e em movimento. Esta hipótese também nos ajuda a entender o lugar do corpo e da dança na memória coletiva, funcionando como arquivo vivo da sociedade. A partir desta percepção, reafirmar e garantir o ‘lugar’ da dança nas histórias oficiais é uma urgência que não pode mais ser adiada nem tampouco esquecida. E isto não vale somente para os corpos que dançam.