Para o assunto corpo não virar password

Colunadezembro

Roberta Ramos

2006, o ano do corpo em evidência. Esse é o título de uma matéria publicada bem recentemente por um jornal local (Pernambuco), com o desígnio de fazer um balanço dos problemas que a relação corpo x moda fez desfilar no ano de 2006 – como os distúrbios alimentares e seus desfechos trágicos -, além de estratégias e reformulações que terão de ser buscadas por atuantes da área para que novas notícias de morte por anorexia não venham a ser divulgadas numa nova temporada de desfiles.

Há muito, no entanto, o corpo já tem estado em evidência. Segundo Foucault[1], para usar suas próprias palavras, o “indefinido da luta” em relação ao papel e ao lugar do corpo na sociedade criou nuances para o controle sobre o corpo que vão do controle-repressão (a vigilância, as proibições do sexo por prazer, etc.) ao controle-estimulação (a pornografia, a publicidade, a moda): “Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu… mas seja magro, bonito, bronzeado!’”.

Desde o surgimento da moda (por volta dos sécs. XIV e XV, segundo Vera Lima[2]), a estreita associação entre moda e corpo também é um viés importante de como o poder entra no corpo. Hoje, a moda é um meio de construção do sujeito de tal complexidade, que não se restringe à indumentária, mas inclui uma gestualidade, um tom, um modo de o corpo ocupar os espaços sociais, um discurso, etc. “A moda torna-se progressivamente um espaço sempre mais abrangente: tecnologia e arte desfilam na passarela”, diz Nizia Villaça[3].

Numa teia nada fácil de tecer, gostaria de pegar o mote dessa autora para tentar dizer que, na arte, em especial na dança, algo interessante e igualmente perigoso acontece: moda e corpo também desfilam na cena. Explico-me: diferentes padrões, formas de treinamento e pensamentos do e sobre o corpo se alternam na história da dança, e, em todas as facetas dessa história, podemos encontrar relação entre esses padrões/formas/pensamentos e o controle que sempre se quis exercer sobre o corpo.

Num panorama bastante útil do pensamento sobre o corpo na dança, fornecido por Sônia Azevedo, em O papel do corpo no corpo do ator[4], vemos esse pensamento evoluir, por exemplo, de uma visão da alma como motor do corpo, em Noverre, identificada com a velha divisão platônica desfavorável ao corpo[5]; para um discurso arstítico, em Cunningham, que, por valorizar o movimento em si, reserva um lugar bem mais generoso para a própria materialidade do corpo.

Essa transformação das idéias sobre o corpo ganha sustentação nas mais diversas áreas de pesquisa[6], inclusive as que atrelam essa discussão à problemática da identidade e polemizam, ou mesmo põem abaixo, o entendimento do corpo como universal. Assim como a identidade não é um dado a priori, o corpo como parte do sujeito que se reconstrói a cada instante, é um sistema em aberto, e, no seu processo de subjetivação constante, natureza e cultura também não se separam.

Susan Foster[7] relaciona diferentes tipos de treinamentos corporais com diferentes corpos a serem construídos (corpos-de-idéias). Fornece os testemunhos distintos do balé clássico e das técnicas de Isadora Ducan, Marta Graham, Merce Cunningham e da Contact Improvisation. Mas mostra, ao final, em contraponto à idéia de um corpo formado numa só técnica, a possibilidade de a experimentação coreográfica mesclar vocabulários ecléticos e gêneros de performance, para superar a distinção de corpos e construir o que a autora chama de “corpo de aluguel”[8]. O corpo de aluguel dá a oportunidade de apreender o corpo como múltiplo e capaz, literalmente, de se formar nos mais diferentes corpos expressivos. Os dançarinos são encorajados a treinar em tudo quanto é técnica sem adotar a visão estética de nenhuma, portanto, sem assumir para si, como definitivo, nenhum corpo-de-idéias.

A ressalva em relação a esse investimento do corpo em diferentes técnicas e conseqüentes discursos é o seguinte: devemos preservar um olhar cauteloso, embora não necessariamente negativo, sobre a possibilidade de essa apreensão de um corpo e de um discurso que o acompanha se fazer operar com a mesma rapidez e superficialidade com que as novas tendências da estação são capturadas. Para isso, não raras vezes, os festivais de dança, através das mostras coreográficas e dos cursos-relâmpago oferecidos, contribuem bastante.

O exemplo mais fresco (embora isso não comece também em 2006) é o número de espetáculos de dança que parecem ter sido oriundos de um processo de cognição instantânea das “mais novas idéias” acerca do corpo. Há uma verdadeira coqueluche de trabalhos que tematizam esse objeto de pesquisa. Isso, no “indefinido da luta” da qual trata Foucault, pode ser visto tanto positiva quanto negativamente. Por um lado, difunde, populariza, democratiza, uma série de conceitos que estariam circunscritos a um número bem menor de pesquisadores, artistas e platéias. Por outro, devido à superficialidade promovida pelos “atalhos”, corre-se o risco de as corporalidades assumidas não virem acompanhadas das conotações ideológicas que as motivaram, ou, ao contrário também, de determinados temas serem abordados limitando-se ao material “extra-corporal”. Ou seja, nesses casos, o discurso assumido pelo programa do espetáculo, bem como pelos textos de divulgação, não estaria materializado na fisicalidade do espetáculo. Falar do corpo, com frases antenadas com as abordagens mais up-to-date, tornou-se, na dança, uma espécie de senha (password) para se legitimar numa “estética contemporânea”.

Nessa encenação dos assuntos do corpo como senha do novo, temos mais uma vertente de como a moda relaciona-se com o corpo. Não sabemos é até que ponto os possíveis desencontros entre corpos e idéias não fazem com que a boa intenção de se estar afinado com as visões mais atuais e “politicamente corretas” acabe por malograr e retroceder para corporalidades que privilegiam o controle, ou para antigos e já combatidos entendimentos sobre o corpo, como aquele que o separa da mente.

[1] Microfísica do poder. 17.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002. cap. IX: Poder-corpo. pp. 145-152.

[2] A construção do corpo nas formas da moda. In: Castilho, Kathia, Galvão, Diana (orgs.). A moda do corpo o corpo da moda. São Paulo: Esfera, 2002. pp. 48-56.

[3] Villaça, Nizia. Alta, média e baixa costura: moda e semiologia cultural. In: Castilho, Kathia, Galvão, Diana (orgs.). A moda do corpo o corpo da moda. São Paulo: Esfera, 2002. pp. 91-104.

[4] São Paulo: Perspectiva, 2002.

[5] Emblemático da visão platônica sobre a dicotomia corpo x alma é o mito da parelha alada, que o autor descreve em Fedro.

[6] Sobre as várias perspectivas teóricas sobre o corpo, vide Greiner, Christine. O corpo: pistas para estudos indisplinares. São Paulo: Annablume, 2005.

[7] Dancing bodies. In: Desmond, Jane C. (ed.). Meaning in motion: new cultural studies of dance. Durham & London: Duke, 1997.

[8] Não estou certa de que essa seja a melhor tradução. A expressão é “hiredbody.