Um dente chamado bico / Foto: Tiago Lima

Paraísos imaginários do capital

Se, por uma perspectiva, chamar um dente de bico nos remete a uma pérola do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), por outra, a equivalência proposta entre dente e bico pode ser uma estratégia de dissimulação.

Por essa fresta do jogo da dissimulação é que experimentei a performance Um dente chamado bico, criada pela parceria entre os artistas do grupo Dimenti e Sheila Ribeiro/dona orpheline. A estreia dessa performance aconteceu no foyer e galeria do ICBA – Instituto Cultural Brasil-Alemanha – em Salvador, Bahia.

A performance sugere uma estrutura de stand de vendas e, devido ao contexto do foyer e galeria, ganha um hibridismo potente de stand/vernissage. Nessa tensão entre especulação imobiliária e artística, experimento o stand do Yemanjá Privilege e faço parte de um jogo de dissimulação sutil, irônico e crítico.

O stand de vendas traz em sua organização/pensamento a simulação em rito festivo-higienizado-publicitário do portal de ingresso ao paraíso, ao mundo vip, exclusivo e luxuoso, não só de um apartamento, mas de um estilo de vida. Parafraseando Suely Rolnik, substitui-se Deus pelo capital que, na lógica judaico-cristã, aparece como fiador da promessa do paraíso, e cria-se a promoção ilusória de que podemos comprar o paraíso, o equilíbrio e a cura.

Ao entrar num ambiente encoberto pela ideia do bom gosto, “classudo”, elegante e luxuoso, performo juntamente com os artistas os deslizamentos dos nossos comportamentos e representações. Seguro a taça de vinho branco elegantemente, sem saber sequer a procedência do mesmo e deixo o riso solto, acreditando estar bebendo às custas do evento; aceito educadamente os canapés oferecidos, mas na verdade noto que se trata de comidas como polvilhos, arrumadinho, caruru, os quais, na sua desarmonia com o vinho e com o clima de “sofisticação clean”, tornam-se estranhos, gerando um desajuste no paladar. Em meio a bebidas e comidas, é distribuído o prospecto do mais novo investimento imobiliário da cidade, Yemanjá Privilege. Essas situações acontecem em meio à apresentação de um tecladista (Estevan Dantas) e uma cantora (Vanessa Mello-Dimenti), tocando músicas de fundo com roupagens bossa-jazz. Esse verniz cool aos poucos vai se tornando reconhecível e notamos que as músicas escutadas são sucessos do pagode e axé-music baiana.

Aqui tudo parece mas não é, ou é mas não parece. Essa condição oscilante está presente no que se come, ouve, lê, assim como nas pequenas apresentações que pontuam o stand lembrando shows “étnicos” que apresentam a cultura local. Ao longo da duração do stand, assistimos a alguns performers se apresentando como “orixás” ou “garotos propagandas”, fazendo com que essas posições deslizem por momentos mecânicos, exibicionistas, honestos, violentos ou até mesmo cansados, como se o próprio contexto tivesse exaurido suas energias.

A ironia se faz presente todo o tempo. Nessas situações, quem ri de quem? Os fruidores que, ao experimentarem a obra, ridicularizam cada coisa que comem, escutam e assistem, ou os performers criadores que, num riso irônico, nos colocam para performar a nossa própria hipocrisia? Ou num riso mais dilacerante, todos performam juntos o engodo da espetacularização de cada representação de si e da própria cidade?

Nesse jogo de dissimulação, a performance deflagra várias crises e, dentre elas, o conflito de querermos sustentar (baianos ou não) um layout da diversidade negra, praieira, carnavalesca. E ao mesmo tempo, somos seduzidos e domesticados por um tipo de representação e poder que faz da “diversidade” uma embalagem para venda e não uma postura de relação. Ao ouvir um cântico do candomblé pra Yemanjá, cantado baixinho por Márcio Nonato (Dimenti) e Osório Monteiro (Dimenti) deitados no chão, observando o silêncio e simpatia geral com o cântico, me perguntei: autômatos batendo repetitivamente um tambor elementar com as mãos e a pulseira de miçanga no chão ou atualização minimalista neste canto/fala de um cântico negro que até hoje temos dificuldade de nos identificar?

Sem se furtar à lógica de venda da cura e do paraíso vip presente na dramaturgia dissimuladora do capital, a performance prova deste “remédio” adotando o design/dramaturgia do mix stand de vendas/vernissage (já que, na lógica capitalista, a venda da exclusividade está presente tanto em apartamentos quanto em obras de arte). Porém, ao provar deste “remédio”, os artistas destilam “veneno” em pequenos colapsos no funcionamento desse stand.

Após esses colapsos o corpo está diferente, um outro olhar é possível, ao invés do olhar seduzido pelo véu ou venda do disfarce, o stand de vendas torna-se um instante sem vendas.

Leonardo França é performer e dançarino – atualmente se interessa pelas relações entre dança, intervenção urbana e design. Sua performance mais recente, Brecha, foi apresentada recentemente no Panorama – Rio de Janeiro 2010 e FIAC – festival internacional de artes cênicas – Bahia 2010. Graduando da Escola de Dança da UFBA.