Partir de um desejo e atravessar um delirio

Em seu último trabalho, Fisura nº 2i, criado exclusivamente para ser apresentado no Museu Geggenheim de Bilbao – coincidindo com a exposição de artistas bascos, Chacun à son gôut -, Idoia Zabaleta, bióloga e coreógrafa de Gasteiz, explicava que sua criação surge de um condicionamento duplo: partir de um desejo e atravessar um delírio. Eu gostaria de recuperar essa explicação de Zabaleta e relacioná-la com o que tentamos fazer hoje.

A palavra “delírio”, em sua concepção etimológica, vem de “de-lirare”, em que “lirare” significaria cavar sulcos e “de-lirare” seria sair do sulco ao lavrar a terra, sair em qualquer direção, ou fora da direção estabelecida. Esses sulcos, entendidos como realidades alheias à prática habitual de cada artista, são dispersões, distrações e diversões do corpo, no sentido de que essas experiências são tanto formas de se desviar ou distanciar de si mesmo, como de se encontrar em outro lugar. No nosso caso, esse outro lugar é o da imagem do corpo e sua distribuição através do espaço virtual.

Porém, falar de espaços virtuais para as artes cênicas parece uma contradição, já que essa manifestação artística está caracterizada pela presença direta do artista com um espectador em um mesmo espaço e a uma hora marcada. Como extensão da necessidade de presença da cena atual, o cinema, o vídeo e a Internet favorecem a produção de desvios e realocação dos corpos e seus modos de se comunicar.

Primeiramente, teríamos que diferenciar os arquivos – vídeos e fotografias de caráter documental – de projetos que são criados especificamente para o vídeo, o cinema ou a Internet. Hoje, proponho que partamos do primeiro caso, que são as imagens de caráter documental. Muitos conhecem o Archivo Virtual de las Artes Escénicas (Arquivo Virtual de Artes Cênicas), projeto criado e dirigido por José Antonio Sánchez, em que uma equipe de pesquisadores trabalhou por mais de cinco anos. No início, o arquivo tinha como objetivo recuperar a memória histórica das artes cênicas nos últimos 30 anos. Decidimos que a data de partida para a pesquisa seria 1978, mais precisamente, o começo da democracia na Espanha. Uma democracia que supunha a liberação de um período repressivo marcado pela ditadura militar, caracterizado pela invisibilidade do corpo e pela censura. Nos parece pertinente ter atenção a essas mudanças políticas e ver quais são os sentidos do corpo social. Também nos interessa observar como esses sentidos evoluíram desde aquela epoca até os nossos dias.

No entanto, recuperar a memória a partir de um conceito de “política do corpo” implica deixar de lado a idéia de um corpo definido, fechado, estável, identificavel e restrito. Nesse sentido, a busca da auto-representação é uma forma de delírio, em que a imagem do corpo funciona como estratégia de sobrevivência a situações políticas e culturais concretas.

Assim, em seu trabalho, Idoia Zabaleta encarna um glossário de ícones identitários, símbolos do imaginário comum da realidade basco-espanhola que busca se manifestar como um corpo re-significado e re-significante. Através do jogo, o humor e o excesso de referências – danças folclóricas, manifestações políticas, figuras artísticas, elementos culturais, torcidas de futebol etc – a ação de Zabaleta rastreia as imagens e registros de uma cultura cada vez menos classificável. Ela mostra um corpo nômade, delirante, que transita por imagens de OUTROS corpos.

Em um artigo dedicado a Jacques Derrida, Cristina de Peretti fala do rastro como sobrevivência e explica que o filósofo francês vivia em contato com as câmeras e o registro de sua imagem como uma autêntica transformação do corpo. O rastro sobrevive a aquilo que o produz e por sua vez permite ser reproduzido de novo. A documentação, como rastro de um acontecimento, não só recupera e constrói os traços do passado, como também anuncia o desaparecimento dos atos presentes, “é o que ocorre com qualquer texto, com qualquer fotografia, com qualquer voz gravada. A reprodutibilidade técnica nos mostra, então, a possibilidade futura da nossa ausência, do nosso desaparecimento, da nossa morte”ii.

A imagem (documental) do corpo é uma morte anunciada, é a constatação de que o registrado muda, vive e morre. Se o corpo é uma identidade que transita, que muda, que, como dizia antes, cava sulcos em todas as direções, o trabalho de documentação também tem que transitar e crescer. O trabalho na Internet nos permite pensar em um conceito de arquivo que também se modifica, que acompanha a evolução da cena e compartilha inquietudes com ela. Longe de remeter a uma idéia de arquivo estático, a Internet nos convida a imaginar um território “vivo” e ativo. O que nos perguntamos agora é que vivências podemos oferecer através de um Arquivo Virtual de Artes Cênicas. Graças à Internet, as maneiras de produzir e distribuir conteúdos são mais associativas e descentralizadas. Hoje em dia não podemos pensar em uma teoria das artes do corpo longe da prática dos artistas, principalmente quando esses artistas estão vivos e criam seus próprios espaços na rede, que com certa freqüência estão mais atualizados que os próprios espaços de documentação. Os artistas registram o próprio trabalho e decidem de que forma querem mostrá-lo. A relação entre a arte e a documentação é cada vez mais horizontal e poliédrica e, graças a isso, os espaços na rede potencializam a produção de subjetividades. Por isso, programadores, designers, editores, pesquisadores e artistas deveriam trabalhar juntos na criação de novas metodologias que permitam diálogos entre a prática e a teoria.

É interessante observar como funcionam outras estruturas relacionadas com a arte e o pensamento contemporâneos. Por exemplo, o site do centro de arte Arteleku, em Donostia-San Sebastián, funciona como portal informativo do centro e como arquivo, contendo espaços criados especificamente para projetos digitais, além de seu próprio canal de TV: Arteleku TV. Um aspecto importante do funcionamento da Arteleku é que a própria atividade do centro gera os conteúdos para web e para o arquivo de documentação. Na Internet estão tanto informações sobre os artistas quanto as atividades produzidas para a rede. A web, assim, é uma extensão do centro e não apenas seu meio de difusão. É o que está sendo produzido por La Porta, com a organização do Ciclo Virtual: um espaço compartilhado entre documentos e ações. E é o que vai acontecer, provavelmente, com o projeto de Teatron, que se anuncia como um portal voltado para as artes cênicas ao estilo da Web 2.0, em que os próprios artistas poderão colocar seus trabalhos.

Uma pergunta que podemos nos fazer é: de que maneira o uso desses espaços na Internet influencia na reformulação de sua própria estrutura? A noção de Código Aberto nesse sentido é interessante porque permite que o usuário seja parte ativa do projeto. E se, em lugar de usuários, pensarmos em espectadores em uma sala de teatro (ou estudantes de uma universidade), poderemos redefinir a maneira como nos comunicamos, os modos que temos a nosso alcance de produzir documentos, reescrever a história e gerar auto-representações. Embora o Código Aberto levante questões importantes em torno da propriedade intelectual e dos direitos autorais, será bom pensarmos no que supõe este conceito se o aplicamos a processos de criação fora do espaço virtual.

Uma ação permanente

Vejamos o caso do Performing Arts Forum (PA-F). No fim de 2005, o coreógrafo Jan Ritsema alugou um castelo em Reims, norte da França, e decidiu colocar em curso um projeto que consistia em aplicar os conceitos do Código Aberto à prática artística contemporânea. Nos primeiros seis meses, o lugar recebeu mais de 200 artistas que compartilharam suas metodologias e trabalharam juntos imaginando outras novas. Tal como se anuncia na web: “PA-F é um lugar para praticantes e ativistas profissionais e não-profissionais, artistas visuais, teóricos e produtores culturais, que desejam pesquisar e determinar suas próprias condições de trabalho; que estejam dispostos a guiar sua produção artística e de conhecimento sem necessidade de responder às oportunidades dadas pelo mercado institucional”. O castelo está aberto e disponível durante todo o ano.

Todo mês de agosto acontece um encontro chamado Summer University, aberto ao público. Em aproximadamente 10 dias, os participantes compartilham seus modos de trabalho de forma organizada. O relevante no Summer University é que a estrutura horizontal, que não distingue professores e estudantes, surge na própria prática dos visitantes do PA-F, geralmente artistas independentes, que são, ao mesmo tempo, usuários, espectadores e atores.

Ao final do último encontro, em agosto de 2007, foi proposto considerar o PA-F como uma performance que dura o ano todo. A idéia surgiu da constatação de que os participantes eram, ao mesmo tempo, idealizadores das propostas e atores. Usuários e artistas. Eram os que assistiam e os que eram assistidos. A partir desse momento, o PA-F deixa de ser considerado um castelo que aloja projetos para se converter em uma performance de longa duração. O próprio Jan Ritsema escreveu um texto em referência ao novo PA-F:

“Colocou em funcionamento um edifício, uma espécie de lugar histórico
Convidou colegas e amigos para ocupá-lo
E eles dirigiram a si mesmos
E eles dirigiram eles mesmos
E assim o fizeram
Iam e vinham amigos e colegas e amigos e colegas dos amigos
Discutiam sobre trabalho
Discutiam sobre propostas de trabalho,
Trabalhavam
Trabalhavam juntos
Uma plataforma
De intercâmbio
De fusão
Da mais suave forma de produzir conhecimento
De experimentar e ensaiar
De inventar
Uma performance
Uma performance surpreendente
Uma permanência”iii
Voltando à idéia de arquivo, os processos de documentação também partem de um desejo de permanência. Mas essa permanência – graças às formas de comunicação que a Internet nos proporciona -, não consiste em tentar recuperar ou reconstruir o passado tal como ele foi, mas em dialogar com esses outros corpos gerados, esses corpos mutantes, delirantes, que mostram a vida e anunciam a morte ao mesmo tempo. Essas imagens são lugares intermediários, pontos de partida, oportunidades para o distanciamento e o reencontro. Permanecer neste lugar intersticial supõe que a comunicação e a representação possam estar em constante transformação. Nosso trabalho consiste em tentar compreender de quem falam essas imagens, ou melhor, quem fala através dessas imagens.

i Fisura nº 2 estreou em 11 de dezembro de 2007 dentro do festival Dantzaldia, no Museu Guggenheim-Bilbao, coincidindo com a exposição de artistas bascos Chacun à son goût, a primeira exposição produzida pelo Museu de Bilbao.

ii De Peretti, C. “Su llamativa cabeza de polvos de talco” en ARCHIPIÉLAGO. CUADERNOS CRÍTICA DE LA CULTURA 75 Ed. Archipiélago (Madrid, 2007) pag. 39

iii Ritsema, J. “PA-F A performance”. Texto na versão original en: http://www.pa-f.net/node/98

Isabel de Naverán é licenciada em belas artes e pesquisadora do grupo ARTEA (Artes de la Escena y de la Acción, UCLM, Cuenca). Escreve sua tese de doutorado sobre cinema e nova dança na Espanha a partir do ano 2000 (UPVEHU), graças à bolsa do Departamento de Política Científica del Gobierno Vasco.